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Pronatec: nova fase, velhas contradições

Governo anuncia mais dois milhões de vagas no programa, maioria para cursos de curta duração. MEC discorda que ensino técnico esteja sendo, mais uma vez, jogado para escanteio.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 31/03/2016 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No ultimo dia 9 de março, a presidente Dilma Roussef fez o anúncio da nova fase do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego – o Pronatec.  Um dos carros chefe das ações de educação nos dois mandatos da presidente, o programa chegou a ser questionado dentro do próprio governo no ano passado, pelo Ministério da Fazenda, quando se estudavam cortes no âmbito do ajuste fiscal. No entanto, ao contrário do prognóstico pessimista, o anúncio mostra que o Pronatec, embora com números menores do que em anos anteriores, vai continuar crescendo: o governo afirma que estarão disponíveis mais dois milhões de vagas em 2016.

Assim como nas outras fases do programa, os cursos vão ser ofertados pelo Sistema S, outras instituições privadas e pelas escolas públicas. De acordo com o Ministério da Educação, em 2016, o Pronatec também não apresentará mudanças em relação à proporção das vagas entre cursos com carga horária menor, os chamados cursos FIC (Formação Inicial e Continuada), e cursos técnicos. A maior parte das vagas, 1,6 milhão, cerca de 80%, serão na primeira modalidade, enquanto para cursos técnicos estão previstas apenas 372 mil vagas.

Educação para quê?

No anúncio desta nova fase do Pronatec, a presidente Dilma disse que investir em educação técnico profissional é estratégico para o desenvolvimento do Brasil. No mesmo caminho, o Ministro da Educação, Aloizio Mercadante, afirmou que o Pronatec é estratégico para enfrentar a crise. Mas a questão é: de que tipo de formação se está falando? A prioridade dada aos cursos de qualificação profissional em detrimento da formação técnica é uma das principais críticas de pesquisadores da área e vêm sendo feitas desde o início do programa, em 2011. Autora de uma dissertação de mestrado sobre o Pronatec defendida no programa de pós-graduação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Fernanda da Costa aponta a prevalência de uma formação aligeirada. “A falta de formação é justamente o argumento usado para ofertar esses cursos, já que essas pessoas estariam desempregadas. Mas não resolve o problema porque não se eleva a escolaridade, não há oferta de cursos que garantam uma formação profissional sólida, na maioria das vezes é dado um treinamento e ainda na rede privada”, aponta. Fernanda afirma que muitas perguntas precisam ser respondidas quando o assunto é Pronatec. “O grande mote do programa é: ‘oferecemos mais de 8 milhões de vagas’. Mas teríamos que continuar: em que tipo de curso? Em que tipo de instituição?”, questiona.

O discurso da presidente Dilma e do ministro da Educação de que este tipo de programa vai garantir emprego e consequentemente auxiliar o país a se desenvolver e a sair da crise também é contestado pela pesquisadora. “Não existe emprego para todo mundo, mas não se admite isso quando se lança um programa como o Pronatec. O que se diz é que a população está desempregada porque não tem formação, então vamos dar formação para todo mundo. Mas vejamos o exemplo da Espanha: se formação gerasse emprego, não haveria tanta gente na Espanha desempregada. São pessoas com graduação, às vezes com pós-graduação, que estão desempregadas. Então, o Pronatec não atende a esse problema e nenhum programa destes vai atender”, reforça.

A dissertação de Fernanda mostra que as entidades do Sistema S vêm sendo as principais executoras do Pronatec. Em 2013, por exemplo, Senai, Senac, Senat e Senar foram responsáveis por cerca de 70% das matrículas. Quanto aos tipos de cursos ofertados, também tomando como base o ano de 2013, a pesquisadora mostra que entre os dez cursos de qualificação profissional com mais matrículas, nove tinham a carga horária mínima exigida, que é de 160 horas. É o caso dos cursos de auxiliar administrativo, operador de computador, auxiliar de recursos humanos, recepcionista, inglês básico, manicure e pedicure, entre outros. A única exceção é o curso de eletricista instalador predial de baixa tensão, o terceiro em número de matrículas, que tem uma carga horária um pouco maior: 200 horas.

Para Fernanda, a grande alocação de recursos no Sistema S e em escolas privadas em detrimento do investimento nas instituições públicas é um dos principais problemas do programa. Comparando os valores gastos em educação profissional de 2004 a 2010, portanto antes do Pronatec, e entre 2011 e 2014, após a criação do programa, a pesquisadora mostra que enquanto nos primeiros anos foram investidos cerca de R$ 7 bilhões, nos últimos quatro anos, o investimento foi de quase R$ 16 bilhões, mas investiu-se muito mais nas bolsas-formação. “Nos dois mandatos do Lula houve a expansão da rede federal de educação profissional. Foi uma expansão de forma precarizada, não está concluída, mas houve a ampliação significativa da infraestrutura física e isso é inegável. Foram construídas escolas técnicas onde não existiam, todas as regiões do país receberam instituições novas de ensino. Essas escolas estão aí, inclusive servindo ao Pronatec para ofertar esses cursos mais aligeirados. Já nos anos do Pronatec, praticamente não houve investimento em infraestrutura, então, quando acabar esse programa e não houver mais destinação de orçamento, não vai ficar nada”, critica.

De acordo com o Secretário de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação, Marcelo Feres, boa parte das 2 milhões de vagas lançadas nessa nova fase do programa será  ofertada pelo Sistema S mas sem que haja novos repasses de recursos do governo para as entidades. “São os recursos que as instituições do Sistema S já têm no seu próprio orçamento e que estão dedicando mediante um decreto publicado recentemente pela Presidência da República. Então, é um processo inverso: ao invés de o governo passar recurso para o Sistema S, é o Sistema S que está usando o seu recurso próprio para fazer acontecer vagas do Pronatec”, explica. Por essa razão, segundo ele, o valor total a ser investido ainda não está definido. “Nós também temos o recurso do MEC, cujo orçamento, particularmente para a bolsa-formação, é da ordem de R$ 1,6 bilhão, mas isso envolve tanto a continuidade das matrículas iniciadas anteriormente, quanto as novas matrículas que serão realizadas este ano”, explica Feres. O secretário disse não ter ainda o cálculo do quanto será investido em cada tipo de formação nesta nova fase do Pronatec. A bolsa-formação, mencionada por ele, é o principal pilar do programa no qual o governo repassa às instituições executoras – públicas e privadas – os valores referentes à formação dos estudantes.

O decreto mencionado por Feres foi publicado no dia 10 de março e dispõe sobre “a cooperação para implementação e execução de programas e ações de interesse público entre a Administração Pública federal e os serviços sociais autônomos”. De acordo com o documento, a cooperação não contempla o repasse de recursos do governo para as instituições. Entretanto, um dos artigos indica que não está totalmente descartado o aporte financeiro do governo às entidades do Sistema S ao apontar que em caso de “execução parcial por parte do serviço social de programa ou ação de interesse recíproco o órgão ou a entidade da Administração Pública federal poderá complementar a execução de forma direta ou indireta”. O Sistema S, composto pelos serviços sociais ligados às entidades patronais, como a Confederação Nacional da Indústria e do Comércio, é sustentado basicamente pela contribuição compulsória descontada da folha de pagamento das empresas. Por isso, esses recursos são considerados por muitos analistas como parafiscais, o que significa que os serviços prestados por essas entidades devem ser gratuitos. (Leia mais sobre o Sistema S aqui e aqui).

Formação técnica

Para a pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, Marise Ramos, os dados relativos às instituições ofertantes e tipos de cursos com mais matrículas no Pronatec reforçam também que a prioridade não é a educação profissional técnica de nível médio, que garantiria uma formação com mais qualidade a uma população que não concluiu o ensino médio. “Isso acontece porque a educação técnica de nível médio, e em especial a integrada ao ensino médio, é muito mais cara. Nesses termos, a mensagem que o governo federal passa é que o governo federal, e provavelmente nem os governos estaduais, se dispõem a aumentar os recursos com esse tipo de formação. Como os cursos de educação profissional na forma FIC são mais baratos, as instituições se interessam mais por eles, porque se aumenta com tranquilidade o número de formandos com baixos custos. É uma formula para aumentar em quantidade sem necessariamente estar conjugada com a qualidade”, explica.

Citando o Plano Nacional de Educação (PNE), que aponta como meta aumentar a taxa líquida de matrículas no ensino médio, a pesquisadora lembra que existe um grande contingente de trabalhadores que sequer concluiu esta etapa de ensino e com os quais o país tem uma dívida na área educacional. “Não só essa população requereria, mas teria o direito de ter acesso a uma educação profissional integrada ao ensino médio. Ao se expandir a oferta da qualificação, alguns pressupostos poderiam estar embutidos nessa política. Primeiro, pode-se considerar que é uma população que dificilmente vai prosseguir os estudos, até porque a lei hoje para a obrigatoriedade do ensino médio é apenas para a população de 4 aos 17 anos. Então, ao invés de se incentivar e garantir a essa população a conclusão do ensino médio, o governo se acomoda ao fato de eles não terem acessado essa etapa e lhes dá uma compensação com a qualificação profissional. Quer dizer, o país aceita com tranquilidade que para esses dois milhões de pessoas basta a qualificação profissional”, critica.

MEC contesta prioridade dos cursos de qualificação

O secretário Marcelo Feres rebate as críticas quanto à prioridade dada pelo governo a uma formação mais superficial. Segundo ele, o investimento nos cursos técnicos também é significativo, uma vez que uma vaga nesta modalidade representa um esforço muito maior do que uma vaga em um curso FIC. “Eu reafirmo aqui a importância desse esforço na formação técnica. Na média Pronatec, um curso técnico tem 1200 horas e um curso FIC está em torno de 200 horas, o que significa dizer que o esforço para fazer um curso técnico é seis vezes maior do que para fazer um curso de qualificação. Então, se estamos anunciando um terço [das vagas] de cursos técnicos, significa dizer que o esforço que está sendo feito para a formação técnica é muito maior do que para a formação de FIC, porque você não consegue formar um aluno de curso técnico em alguns meses, muitas vezes você precisa de alguns anos”, defende. O secretário reconhece que não está no horizonte deste governo ampliar massivamente o número de cursos técnicos: “É impraticável você criar uma expectativa de que vai fazer dois milhões [de vagas] em cursos técnicos”.

De acordo com o MEC, no entanto, muito esforço tem sido empregado nessa modalidade de ensino. De 2007 a 2014, o número de matrículas em cursos técnicos dobrou, passando de 700 mil para 1400 matriculados. Para Marcelo Feres, o Pronatec avança também ao popularizar a educação profissional para diferentes tipos de públicos. “Pensar em públicos distintos nos permite entender que não se trata de concorrer cursos de qualificação profissional com cursos técnicos. Temos que olhar o crescimento dos cursos técnicos que está havendo no Brasil historicamente e nós temos a meta de triplicar essas matrículas em relação ao que chegamos em 2014”, diz. E completa: “E sobre a qualificação profissional, é importante dizer que o Pronatec na verdade estruturou o que já acontecia no país, e que antes era feito por um conjunto de ministérios de forma separada. Nós começamos a ter um ordenamento da formação profissional garantindo carga horária mínima de 160 horas, garantimos também a participação de diversos ministérios, interiorizamos a oferta, envolvemos todas as redes”. O secretário acredita que investir nos cursos de curta duração também é uma demanda da sociedade. “Se não eu estaria excluindo, por exemplo, o pescador que não teve a oportunidade de fazer o ensino médio. Ele é tão importante para a sua formação profissional dentro da sua especificidade quanto o lado da indústria, quanto o jovem que esta fazendo o ensino médio. Então, o Pronatec consegue integrar esses diferentes públicos que existem na sociedade e que demandam formação profissional”, defende.

Marise Ramos discorda. “Os dados mostram que houve expansão de emprego em outro momento que não é esse agora, especialmente nos setores de baixo valor agregado, baixo valor tecnológico, científico, e até mesmo econômico. A equação nesse período é que teria havido o crescimento de empregos desse tipo e que o Pronatec estaria formando para esse tipo de emprego. Havia uma lógica coerente internamente. Então, para trabalhos baratos, uma formação barata. Acontece que nem isso parece ter sido tão perfeito, já que agora temos um aumento do desemprego.Essas pessoas estão se formando para que e para o quê?”, questiona.

Um estudo apresentado pelo Ministério da Fazenda em setembro de 2015 citado no início desta matéria reforça a argumentação de Marise. Tendo como referência o período de 2011 a 2013, a pesquisa mostrou que desempregados que participaram de cursos do Pronatec na modalidade FIC não tiveram vantagem na reinserção no mercado de trabalho em comparação aos trabalhadores que não tiveram acesso ao programa.

Educação de Jovens e Adultos

Durante o anúncio desta nova fase do Pronatec, o MEC anunciou também que entre os esforços do programa em 2016 haveria cursos voltados para os alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) com vistas a atender a meta 10 do PNE. A meta diz que até 2024, 25% das matrículas de EJA devem ser oferecidas de forma integrada à educação profissional. No entanto, segundo Marcelo Feres, o que vai ser incentivado nesta fase é que os estudantes de EJA tenham prioridade nos cursos oferecidos pelo Pronatec nas diversas modalidades e não necessariamente uma expansão da formação profissional integrada à Educação de Jovens e Adultos. “O que nós estamos fazendo é garantir que quem faz EJA tenha prioridade para ser atendido também na parte profissionalizante”, diz.

Embora a meta do PNE diga que o avanço deve ser no sentido de possibilitar mais matrículas integradas à educação profissional (pelo menos 25%), o secretário considera que é preciso flexibilizar a visão de integração. “É importante não ter um olhar muito restritivo ao que significa integrado. Integrado não é tradução de uma única matrícula numa única escola. É você ter tanto EJA quanto a parte da formação profissional juntamente para que o estudante tenha condições de estar fazendo o seu curso. Porque seria irreal eu considerar as mais de três milhões de matrículas de EJA e tornar obrigatório que essas instituições tenham formação profissional. Então, entendemos que essa dimensão da integração é extremamente importante porque dá sentido, mas não é numa leitura estrita da palavra integrado”, argumenta.

Para Marise Ramos, a meta do PNE é clara ao apontar a necessidade de integração como já vinha acontecendo com o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Proeja), criado em 2006, mas que vem ganhando pouca atenção do Ministério da Educação. Segundo a pesquisadora, provavelmente o MEC está se amparando nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Profissional, que apontam a possibilidade de oferta de educação profissional “articulada” concomitante em instituições distintas, o que vem sendo interpretado como integração. Ela explica por que a classificação é equivocada: “Integração implica o mesmo currículo e um processo interno de integração entre conhecimentos gerais e conhecimentos específicos. Isso não é possível acontecer com instituições diferentes por mais que se tenha uma disposição de buscar uma unidade de princípios pedagógicos”.

Marcelo Feres garante que o Proeja não está sendo descontinuado. “O Proeja continua existindo, na verdade o Pronatec é um processo que vai induzir o fortalecimento dessa relação entre a EJA e a parte profissionalizante. Ele não nega em absoluto o Proeja, o que ele faz é, no processo de pactuação, a indução para que as instituições que venham participar do Pronatec priorizem o público da EJA”, afirma. O secretário não apresentou dados mais precisos sobre a distribuição e valores empregados no Proeja, mas disse que apenas 4% das matrículas da Educação de Jovens e Adultos atualmente são integradas à educação profissional. Realidade, portanto, bastante distante da meta do PNE.