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Respeito às questões locais e equilíbrio de um sistema nacional representam os desafios para a harmonização do calendário escolar do país

Cabe aos estados e municípios decidirem quando voltar às aulas presenciais e a condução do ano letivo. Desigualdades regionais e sociais dificultam harmonização de calendário e de conteúdo. Estima-se que a normalização chegue em 2021
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 20/05/2020 18h53 - Atualizado em 01/07/2022 09h43
Foto: Agência Brasil

No dia 15 de maio, passou a valer a portaria 473/20 publicada pelo Ministério da Educação, atualizando outra portaria, de 17 de março que autorizava a substituição das disciplinas presenciais pelo ensino a distância para solucionar a ausência de aulas devido ao isolamento social por conta de pandemia  de Covid-19.

O texto original afirma ainda que “será de responsabilidade das instituições a definição das disciplinas que poderão ser substituídas, a disponibilização de ferramentas aos alunos que permitam o acompanhamento dos conteúdos ofertados bem como a realização de avaliações durante o período da autorização”.  A portaria estabelece também que as instituições de ensino possam alterar o calendário de férias, desde que cumpram os dias letivos e horas-aula estabelecidos.

Ainda na primeira publicação, muitas dúvidas surgiram por parte da comunidade escolar em todo país. As indicações são válidas para o sistema federal de ensino, composto, de acordo com a Lei de Diretrizes Básicas da Educação (LDB), pelas universidades federais, institutos federais, Colégio Pedro II, Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), Instituto Benjamin Constant (IBC) e plas universidades e faculdades privadas.

Volta às aulas e formato. Afinal, quem decide?

Os parâmetros mínimos de carga horária e dias letivos para cada nível educacional, suas etapas e respectivas modalidades estão previstos nos artigos 24 (ensino fundamental e médio), 31 (educação infantil) e 47 (ensino superior) da LDB. O artigo 23 da LDB dispõe ainda que o calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto.  Cabe, portanto, aos estados e municípios, a partir de suas secretarias e conselhos, essa determinação.  A estrutura de cada ente também é determinada na LDB. O sistema estadual é composto por escolas de ensino médio e fundamental públicas e privadas e universidades estaduais, além do conselho estadual. O sistema municipal, por sua vez, é formado por escolas tanto de ensino fundamental quanto médio e de educação infantil públicas e privadas, somado ao conselho municipal.

No entanto, como explica o representante do Conselho Nacional de Educação (CNE) Eduardo Deschamps,  o Ministério da Educação pode baixar determinações para que este calendário seja harmonizado. “Por meio de um parecer do Conselho Nacional de Educação, podemos criar regras gerais. O parecer, vale lembrar, só tem validade quando o ministro o publica como portaria. O CNE normatiza a data de corte para matrículas”, exemplifica.

O presidente da  União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Luiz Miguel Martins Garcia, informa que a autonomia das redes vem prevalecendo até o momento. “Apesar das regulamentações do MEC e do Conselho Nacional de Educação, as redes têm autonomia para organizar algumas coisas, como o calendário. Isso faz todo sentido no momento em que estamos vivendo porque precisamos levar em consideração as condições locais. As realidades locais são muito diversas. É preciso levar em conta o risco de contágio e estrutura do sistema de saúde”, avalia.

Para a presidente  do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) Cecília Motta, as orientações do CNE têm servido como norteadoras, independentemente da realidade de cada estado. “Até o momento temos conseguido garantir um mínimo de harmonização apesar das diferenças grandes de um país continental”, reflete.

Até agora o MEC tem publicado apenas portarias para o sistema federal. “Porque o MEC regula essa alçada. Por exemplo, a última portaria regula sobre a questão das aulas presenciais que podem ser substituídas por aulas online neste momento para a rede federal. Agora, de acordo com essa portaria, não determina, por exemplo, que instituições vinculadas ao sistema estadual faça isso”, explicou Eduardo Deschamps.

Em tese, explica Deschamps, um estado pode suspender o calendário escolar, enquanto outro considera que as aulas online podem ser computadas como período letivo e um terceiro suspende as aulas e reorganiza seu calendário ao longo do segundo semestre de 2020 até 2021. “O que a gente está tentando fazer é harmonizar os processos. Não há nada que impeça que um estado tome decisões diferentes de outros.  Portanto, um estado pode ajustar seu calendário escolar fora do ano base. Mas essa é uma saída difícil porque temos que tentar criar uma harmonização em nível nacional”, informa Deschamps.

O Conselho criou a plataforma Consed.Info para que todos os estados possam apresentar o que têm realizado e trocar experiências de aplicação de conteúdo. Nessa plataforma podemos ver, por exemplo, que estados como Bahia, Acre, Amazonas e Distrito Federal têm usado canais abertos de televisão para teleaulas, enquanto Amapá, Ceará e Mato Grosso do Sul estão distribuindo material impresso. Espírito Santo e Goiás utilizam redes sociais. Até o momento, de acordo com dados disponíveis na plataforma, exceto o Tocantins, que está em período de férias escolares, todos os estados  têm algum tipo de  iniciativa para disponibilizar conteúdos em forma digital. No entanto, a maioria deles indica outras formas de disponibilização do material conjuntamente.

A realidade dos 5.570 municípios também é diversa, como exemplifica o presidente da Undime. “Nós temos um tempo diferente para os municípios. Há municípios, como o meu [Sud Mennucci (SP)], que estão iniciando atividades não presenciais agora. Teve município que suspendeu as aulas, outro que antecipou o recesso, teve município que antecipou férias e outros que anteciparam recesso e férias. Essas iniciativas foram no sentido de ganhar tempo para que pudéssemos construir algo que fosse coerente e razoável e, sobretudo, com princípios de equidade. Não havia, até agora, metodologia pedagógica que pudesse dar respostas a um momento como esse. Nós tivemos municípios que acompanharam suas redes estaduais e desenvolveram as mesmas estratégias. Algumas redes estaduais primaram pelo uso das tecnologias digitais, o que não é realidade para a maior parte dos municípios nem para alguns estados”, exemplifica.

Plano de garantia do calendário e ENEM

A polêmica manutenção de data do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) estava sendo usada como pressão para a harmonização do calendário nacional. Um pouco antes do fechamento desta matéria, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) anunciou que adiaria por 30 a 60 dias o exame. Anterior a isso, uma campanha denominada #AdiaEnem organizada por estudantes, pesquisadores e sociedade civil já estava pressionando para a mudança de data, inclusive com votação do projeto de lei 1.277/2020, aprovada no Senado. De acordo com Eduardo Deschamps, governos terão de estar alinhados para que consigam alcançar o calendário para a aplicabilidade da prova de maneira regular. No entanto, afirma ele, isso também é incerto. “A questão do adiamento do Enem também impacta no calendário das universidades. Se adiarmos para fevereiro, as universidades não poderão começar suas aulas nesse período, e assim sucessivamente. Isso é um trabalho a ser feito a muitas mãos entre o governo federal, governos estaduais, as entidades, as secretarias de educação… Todos precisam entrar num acordo desse assunto de tal forma que organize o calendário para não ter muita disparidade do ponto de vista de retorno”, diz.

Para a Undime, a necessidade de adiamento é mais clara. “A gente tem um entendimento genérico que vale para o Enem também, de que todo impacto que a gente tem sentido e está gerenciando passa pela equidade. Diante desse cenário, é muito razoável que a gente repense essa data. O calendário nacional precisa ser repensado e pode entrar no ano civil de 2021. O ano letivo pode ser diferente do ano civil”, afirma o presidente.

Para Cecília Motta, do Consed, esta determinação ainda está sob avaliação. “Todos os secretários estaduais têm atuado no sentido de não criar muita disparidade no calendário, portanto, a mudança de data do Enem deve ser avaliada coletivamente. Estamos vivendo uma realidade única. Estamos construindo conjuntamente respostas”, afirma.

Como recomendações de planos de adaptação do ano letivo, o Parecer nº 5/2020 do Conselho Nacional de Saúde sugere, por exemplo, que para a manutenção do  calendário escolar sejam computadas  atividades pedagógicas não presenciais. O documento tem caráter orientador e dispõe que a competência para definir a reorganização dos calendários e a realização de atividades pedagógicas não presenciais é dos sistemas de ensino. “O CNE recomenda que sejam permitidas formas de reorganização dos calendários utilizando as duas alternativas de forma coordenada, sempre que for possível e viável para a rede ou instituição de ensino, do ponto de vista estrutural, pedagógico e financeiro”, diz o documento.

Na redação do parecer são apresentadas, por exemplo, possibilidades de cumprimento da carga horária mínima. Entre os apontamentos estão a reposição da carga horária de forma presencial ao fim do período de emergência;  a realização de atividades pedagógicas não presenciais (mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação) enquanto persistirem restrições sanitárias para presença de estudantes nos ambientes escolares, garantindo ainda os demais dias letivos mínimos anuais/semestrais previstos no decurso; e  a ampliação da carga horária diária com a realização de atividades pedagógicas não presenciais (mediadas ou não por tecnologias digitais de informação e comunicação) concomitante ao período das aulas presenciais, quando do retorno às atividades.

Luiz Miguel avalia que o uso da tecnologia deve ser considerado, mas com consciência sobres os seus limites. “A prefeitura da cidade de São Paulo optou por fazer um material impresso porque foi constatado que mais de 40% dos alunos da cidade não têm acesso à internet. Temos que combinar metodologias. A grande dificuldade que a gente tem e para a qual ninguém conseguiu achar uma solução é criar uma forma que pudesse analisar o alcance e a eficácia das ferramentas digitais. Em função disso, a Undime defende que não haja um processo direto e automático de validação disso. Entendemos que não dá para contar com recursos limitados dessa maneira”, afirma.  O presidente da Undime defende que apenas conteúdos já apresentados pelo professor possam ser incluídos nesse processo de aprendizagem. Conteúdos novos devem ser trabalhados após o retorno da normalidade das aulas. “Precisamos explorar o que os estudantes já viram porque o processo de aprendizagem junto ao professor é essencial. Não posso cobrar da família o papel que é da escola, além de perpetuar de maneira exponencial as diferenças regionais e sociais. A transformação da sociedade começa pelo acesso à educação e este deve ser equânime”, afirma.