Ao ver esta edição, o leitor mais assíduo da Poli pode experimentar uma sensação de déja-vu. Há exatos cinco anos, o nº 68 da revista trazia uma capa praticamente igual a esta, que na chamada anunciava uma reportagem com o mapeamento dos avanços e dificuldades da Reforma do Ensino Médio nos estados. Àquela altura, já tinham se passado mais de três anos desde a Medida Provisória 746, que deu início a uma mudança na última etapa da Educação Básica que até hoje não foi concluída. A princípio, a lei (nº 13.415) estabeleceu que a implementação das mudanças deveria começar em 2020. Depois, a realidade de uma pandemia que teve sérios impactos também sobre a Educação adiou esse início obrigatório para 2022. Feitas as contas, na maior parte do país, os primeiros jovens que cursaram o Ensino Médio com um currículo totalmente adequado à reforma se formaram agora, no final de 2024. Mas já é hora de mudar outra vez.
Isso porque, como você provavelmente já sabe, em 2024 foi sancionada uma nova lei (14.945), que alterou pontos da reforma original. As mudanças que essa legislação impõe são muito menores do que as da anterior. Ainda assim, o impacto sobre as redes de ensino varia muito de um estado para outro. E se a reforma original acabou levando cinco anos para ter sua implementação obrigatória, as modificações de agora precisarão começar a valer no início de 2026, considerando este ano de 2025 que se inicia como um período de transição – embora, como ressalta o presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Cesar Callegari, os estados que quiserem têm a “autonomia e liberdade de antecipar” essas mudanças.
Por tudo isso, esta reportagem é, de fato, um certo autoplágio – ou um esforço de atualização – daquela que foi realizada cinco anos atrás. Seguindo o mesmo caminho, foram entrevistados gestores da educação de estados das cinco regiões brasileiras que analisaram os efeitos das mudanças na realidade educacional das suas redes de ensino e falaram sobre os impasses, as dificuldades e as propostas que estão sendo planejadas ou já estão em andamento para adequar a oferta do Ensino Médio às novas regras. Diferente da matéria anterior, desta vez foram ouvidos também representantes de entidades sindicais dos mesmos estados, que comentaram sobre os impactos das principais alterações desse período sobre o trabalho dos professores e profissionais da educação e suas expectativas em relação às mudanças que estão por vir. A reportagem teve também a preocupação de selecionar, em cada região, estados diferentes daqueles que participaram da edição de 2020. Nesta matéria, você encontrará informações e análises relativas à implementação do novo Novo Ensino Médio no Amapá (Norte), Pernambuco (Nordeste), Goiás (Centro-Oeste), Espírito Santo (Sudeste) e Paraná (Sul).
Orientações e regulamentação: o que há e o que falta
O primeiro documento orientador em relação a essas últimas mudanças foi publicado em novembro: trata-se da resolução nº 2, do Conselho Nacional de Educação, que institui novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, já adequadas às novas regras. Dando maior especificidade e clareza ao texto legal, algumas definições trazidas pelas diretrizes eram fundamentais para que as redes de ensino tomassem suas próprias decisões em relação às novas mudanças no currículo. Tornado público já às vésperas da chegada de 2025, o principal conteúdo das diretrizes, no entanto, não era propriamente novidade para a maioria das redes, já que o texto aprovado pelo CNE e homologado pelo Ministério da Educação (MEC) teve como subsídio um documento produzido por um Grupo de Trabalho (GT) que envolveu representantes das secretarias de educação de vários estados.
Até o final de 2024, quando esta edição da Poli foi fechada, outros documentos de orientação ainda eram aguardados. Dúvidas sobre a organização curricular dos itinerários formativos, sobre a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e sobre o uso de tecnologia e Educação a Distância são algumas das que se destacam nas entrevistas com os gestores que participaram desta reportagem. De todas essas, a “tarefa” que o CNE está considerando como mais urgente, de acordo com o presidente da entidade, é a atualização das diretrizes curriculares para a EJA. E é possível, inclusive, que elas já tenham sido finalizadas quando você estiver com esta revista em mãos – embora não fosse uma promessa, no momento da entrevista, Callegari apontava a possibilidade de esse texto ser apreciado de forma deliberativa já na reunião do CNE de janeiro de 2025. Além da EJA, o texto da resolução nº 2 afirma que a educação para pessoas privadas de liberdade, a educação especial, do campo, quilombola e indígena devem ter “diretrizes e normas nacionais específicas”. De acordo com o presidente do CNE, no entanto, ainda não há um cronograma definido para a atualização dessas normativas.
Embora a resolução nº 2 seja apresentada como o documento que institui as diretrizes do Ensino Médio, o artigo 1º do texto afirma que ali são estabelecidas também “as diretrizes gerais para os itinerários formativos”. Segundo Callegari, portanto, o que ainda será produzido em relação a essa parte flexível do currículo são parâmetros e, mesmo assim, voltados para “itinerários formativos de aprofundamento”, que envolvem as quatro áreas do conhecimento – linguagens, matemática, ciências humanas e sociais aplicadas e ciências da natureza. Ele lembra que o itinerário 5, que é de formação técnico-profissional, já conta com as diretrizes da Educação Profissional (Resolução CNE/CP nº 1, de 5 de janeiro de 2021), embora elas também devam ser revistas e atualizadas, num trabalho conjunto entre o CNE e a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec), do MEC. Além disso, segundo Callegari, deverá ser produzido ainda um documento que trate especificamente sobre a formação profissional ofertada como itinerário do Ensino Médio.
Mesmo com todo esse processo ainda em andamento, a expectativa do MEC é que já em fevereiro de 2025 todas as secretarias estaduais tenham elaborado seus Planos de Ação para dar início à construção do novo Novo Ensino Médio (NEM). Essa previsão de resposta em nível nacional só é possível porque, como parte do esforço de adaptação dos currículos à nova legislação, o ministério organizou dois cursos, um de especialização e outro de aperfeiçoamento, em Gestão de Políticas de Qualidade Social do Ensino Médio voltado para integrantes das equipes das secretarias de todos os estados brasileiros. “O resultado [dos cursos] será a entrega dos planos de ação para os conselhos estaduais de educação de cada unidade federada e, a posteriori, monitoramento do MEC. Assim, forma-se uma equipe de trabalho em cada Secretaria de Educação para a implementação nos territórios”, explica a Pasta, em resposta enviada à reportagem via assessoria de imprensa. Os cursos tiveram início em setembro de 2024, com previsão de término em fevereiro de 2025. Somadas, 216 pessoas, oito de cada estado, estão participando das duas formações, ofertadas pela Fundação Joaquim Nabuco. Parâmetros para a elaboração desses planos de ação foram publicados já em setembro de 2024, por meio da portaria nº 958, do Ministério da Educação.
Tem fim?
Da parte do governo federal, as modificações instituídas pela lei 14.945 e as normativas que dela derivam estão agora sendo tratadas não mais como uma nova etapa da reforma e sim como parte da construção de uma Política Nacional do Ensino Médio. Mas isso não muda a inevitável sensação de que há oito anos o país atravessa uma reforma que não tem fim. “A gente fez uma mudança de 180 graus dentro da oferta do Ensino Médio. Agora, com essa nova lei, nós temos o resgate de muitos elementos que estavam presentes no Ensino Médio antes da lei 13.415. E isso faz com que a rede precise se readequar de uma maneira muito grande no âmbito pedagógico”, diz, por exemplo, Vanessa Ruthes, coordenadora do Ensino Médio da Secretaria de Estado da Educação do Paraná (Seed-PR). A subsecretária de Educação Básica e Profissional da Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (Sedu-ES), Andréa Pereira, reconhece que as alterações agora não são tão estruturais quanto as da reforma anterior, mas não deixa de realçar os transtornos dos tempos de adaptação. “A gente está enfrentando uma nova mudança em meio ainda à finalização da implementação de uma outra, que foi grande para todas as redes, porque foi uma mudança do ponto de vista da oferta e do conceito de Ensino Médio, que demandou muitas frentes de trabalho para os estados”, explica.
Isso não significa, no entanto, que haja um lamento geral em função das alterações promovidas pela nova legislação. “Se é verdade, de um lado, que o Novo Ensino Médio foi muito discutido até o momento da lei, também é verdade que ele foi aprovado em um momento um pouco mais complexo do Brasil. E isso fez com que houvesse uma resis
tência política, que é natural. De outro, [houve] uma aprovação que acabou obrigando [as redes de ensino] a se adaptarem sem ter um apoio efetivo do Ministério da Educação”, analisa o secretário de Educação de Pernambuco, Alexandre Schneider, que completa: “Essa mudança agora, de alguma forma, responde à própria demanda da política, mas também ao fato de que a implementação do Novo Ensino Médio nas redes públicas foi um pouco açodada, na medida em que você não teve um outro pedaço da reforma que deveria acontecer, que é a mudança no sistema de avaliação”. O fato de não ter havido alteração no Exame Nacional do Ensino Médi
o (Enem) foi, segundo Schneider, determinante para que se instituísse nesse período uma diferença entre as escolas públicas, que tiveram que se adaptar à reforma, e as privadas, que “jogaram na retranca”, investindo menos nos itinerários e mais na Formação Geral Básica dos seus estudantes, com os conteúdos que seriam cobrados no Enem. “A gente teve uma geração de alunos nas redes públicas que tiveram que estudar sozinhos, caso quisessem prestar um vestibular ou fazer o Enem. Nesse sentido, acho que a [nova] reforma vem em bom tamanho e a decisão do Conselho Nacional de Educação de prorrogar o prazo até 2026 também. Agora, certamente, isso cria uma série de questões para as redes estaduais”, conclui. Destacando que o mais importante desse processo é garantir que os estudantes do Ensino Médio consigam aprofundar os conteúdos que aprenderam até o 9º ano, a coordenadora de Educação Básica e Profissional da Secretaria do Amapá, Arnanda Oliveira, também arrisca algum otimismo: “Quando a gente não consegue consolidar uma determinada implementação, isso impacta negativamente, com certeza, mas também a gente tem alguns ganhos no meio de todo esse movimento: por exemplo, as equipes das redes vão amadurecendo mais”.
De fato, se para a maioria das redes de ensino a avaliação mais sólida sobre a implementação concreta da reforma só poderia ser feita ao final de 2024, a experiência daquelas que começaram as mudanças mais cedo ganhou as páginas dos jornais e o debate público, principalmente a partir de 2023, levando à constatação de problemas que pareciam demandar uma intervenção urgente. E a verdade é que, para muita gente, isso não era novidade nenhuma: afinal, como você também já leu em edições anteriores da Poli (ver, por exemplo nos 48 e 77), muito antes dessas evidências concretas, não faltavam pesquisadores, educadores e movimentos sociais ligados à Educação para alertar que a concepção pedagógica por trás da reforma promoveria um esvaziamento do currículo. Por tudo isso, apesar dos problemas causados por tantos anos de mudanças incompletas, as alterações mais recentes têm sido em grande medida compreendidas como uma correção de rumo necessária. Na verdade, a julgar pelo volume e profundidade das críticas que vêm sendo feitas ao NEM desde que ele foi apresentado na forma de Medida Provisória, as mudanças que a lei 14.945 trouxe não foram tantas quanto se esperava. Mais do que isso, elas não atenderam à principal reivindicação da sociedade civil organizada que, na Conferência Nacional de Educação (Conae) extraordinária realizada em janeiro de 2024, defendeu nada menos do que a revogação da reforma. Ainda assim, não se pode negar que alguns dos pontos considerados mais danosos da legislação anterior foram alterados. E que mudanças foram essas?
Vai ter mais formação geral
A principal mudança instituída pela lei 14.945, que atende a uma das mais fortes demandas de pesquisadores e movimentos sociais da Educação, foi a ampliação da carga horária da Formação Geral Básica (FGB): enquanto a legislação anterior estabelecia um máximo de 1,8 mil horas, a atual determina um mínimo de 2,4 mil. Isso significa que, das 3 mil horas que os estudantes devem cursar ao longo dos três anos que normalmente compõem essa etapa do ensino, 80% devem ser de “componentes curriculares obrigatórios e das áreas do conhecimento que compõem o Ensino Médio”, como descreve o texto das novas diretrizes. Trata-se, portanto, de conteúdos compreendidos como essenciais no processo de formação de todos os estudantes desse segmento – não por acaso, eles estão previstos num documento chamado Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Já os outros 20% (600 horas) devem ser distribuídos pelos itinerários formativos, que são a parte flexível do currículo e podem ser de aprofundamento – definidos pela resolução nº 2 como “percursos educacionais estruturados, de livre escolha dos estudantes, que permitem aos educandos o aprofundamento de suas aprendizagens e de seu desenvolvimento em uma ou em mais áreas do conhecimento” –, ou de formação técnico-profissional.
Para a maior parte dos gestores ouvidos pela reportagem, a ampliação da carga horária da FGB não é um dos principais desafios dessa nova etapa de reforma. “A mudança entre as duas leis foi a parcela de carga horária que aumentou para a Formação Geral Básica e diminuiu para o itinerário, mas, no cômputo geral, a carga horária do Ensino Médio permanece a mesma, que é de 3 mil no mínimo, então, para nós, não vai haver impacto”, diz Andréa Pereira, da Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo. No caso de Goiás, sequer será necessária mudança, já que a nova matriz curricular do estado, que começou a valer em 2024, já ampliava a Formação Geral Básica para 2,4 mil horas. Além disso, de acordo com Vanessa Carvalho, chefe do Núcleo do Ensino Médio da Secretaria de Educação de Goiás, mesmo na contramão do que incentivava a lei 13.415, a rede manteve sempre os 12 componentes curriculares que compõem o Ensino Médio – artes, educação física, inglês, português, matemática, biologia, física, química, história, geografia, sociologia e filosofia. “Então, não teve esse impacto na nossa rede”, diz. De acordo com o documento de diretrizes pedagógicas da Seduc-GO, no entanto, o estado conta com dois modelos distintos de matriz curricular para o Ensino Médio: um deles, de fato, não precisará sofrer alteração; já o outro define que 100 horas da FGB e outras 500 horas dos itinerários devem ser oferecidos à distância, o que é vetado pela nova legislação e pelas diretrizes curriculares nacionais atuais.
Pernambuco já tem pronta uma matriz curricular de transição que foi, inclusive, posta em consulta pública entre os meses de outubro e novembro. E, embora, como todas as outras, a rede aguarde as orientações mais específicas sobre os itinerários formativos para bater o martelo sobre o currículo definitivo que valerá a partir de 2026, a ampliação da FGB já foi equalizada. Segundo o secretário de Educação, o esforço será de contemplar também os estudantes que ingressaram no Ensino Médio ainda sob a vigência da legislação anterior e, portanto, tiveram uma “formação geral básica mais tímida”. “Nossa maior preocupação hoje é trazer os estudantes do 2º e do 3º ano para que eles não fiquem numa situação de abandono em relação aos demais”, diz. De acordo com Vanessa Ruthes, o Paraná também vai oferecer uma matriz de transição em 2025 que já garante as primeiras 800 horas de FGB, de modo que, mesmo sendo obrigatória a adaptação só a partir de 2026, o estudante que ingresse no Ensino Médio este ano possa já cumprir as três séries com o currículo novo.
A dúvida maior: itinerários formativos de aprofundamento
É quase unânime entre os gestores entrevistados a compreensão de que a principal mudança instituída pela nova legislação e pelas novas diretrizes se dá em relação aos itinerários formativos, que, com exceção da formação técnico-profissional, agora são definidos mais claramente como percursos de aprofundamento dos conteúdos da Formação Geral Básica. “O impacto grande que vai ter agora [em 2025], que é quando a gente vai elaborar o currículo, é na parte dos itinerários formativos”, diz Andréa Pereira, da Sedu Espírito Santo. E eram, portanto, essas orientações mais específicas que, pelo menos até o fechamento desta reportagem, eles esperavam ansiosamente. “Nós estamos aguardando a consolidação dessa publicação das orientações do MEC a respeito dos itinerários”, diz Vanessa Carvalho, chefe do Núcleo do Ensino Médio da Secretaria de Educação de Goiás, que integra o GT do Ministério que está produzindo subsídios para a elaboração desse documento pelo CNE.
Num exercício de interpretação a partir da regulação que já se tem hoje, Andréa Pereira, do Espírito Santo, ressalta que as diretrizes curriculares do Ensino Médio afirmam a possibilidade de que o diálogo entre os itinerários e a FGB se dê por meio de projetos integradores, o que, na sua avaliação, significaria uma mudança menor em relação à lei anterior. Mas o mesmo texto apresenta o que ela considera uma alteração mais ampla, que requererá um esforço maior de adaptação das redes: a delimitação mais restrita das combinações possíveis de serem feitas nesses itinerários formativos de aprofundamento. O que o texto das diretrizes parece reforçar é a importância de que a oferta dos itinerários garanta ao estudante a escolha de aprofundamento em todas as áreas de conhecimento. Por isso, o parágrafo único do artigo 19 estabelece que as redes podem oferecer quatro, dois ou apenas um itinerário, desde que abranja todas as quatro áreas de conhecimento: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas e sociais aplicadas. “A gente não sabe muito bem como é que vai ser o desenho das diretrizes operacionais dos itinerários formativos de aprofundamento, se vão ter essa ideia de autonomia dos estados para escolha do aprofundamento, como foi na linha anterior, ou se vai ter menos autonomia. Ainda não está claro”, diz.
Essas dúvidas e questões práticas expressam diferenças que, mesmo sutis, transparecem na redação que as diretrizes atuais e as anteriores, de 2018, apresentam sobre as duas partes que compõem o currículo do Ensino Médio – e, em última instância, também sobre o que se espera dessa etapa de ensino. Um exemplo é que, na versão anterior das diretrizes (resolução nº 3/2018), produzida para subsidiar a reforma original, embora também se falasse de aprofundamento, tanto a definição de FGB quanto a de itinerário formativo destacavam aspectos mais práticos, como, por exemplo, promover no estudante a capacidade para resolução de problemas. Além disso, nas diretrizes de sete anos atrás a FGB é definida como “conjunto de competências e habilidades das áreas de conhecimento” previstas na BNCC, enquanto o conceito adotado no documento atual, embora também faça menção a essa forma de estruturação curricular da Base, enfatiza os “direitos e objetivos dos alunos de aprendizagem e desenvolvimento” e a “oferta de componentes curriculares obrigatórios”. “Nós vamos ter uma mudança de concepção curricular muito forte para o Paraná”, diz Vanessa Ruthes, da Secretaria de Educação do estado, que detalha: “O principal ponto de mudança que nós vamos ter agora é a questão da concepção. Porque nós aprofundávamos áreas do conhecimento a partir de eixos estruturantes que traziam habilidades das áreas do conhecimento. O documento que ainda não foi votado pelo CNE, mas que são as diretrizes operacionais dos itinerários formativos, vai vir com uma pegada do aprofundamento por áreas e por componentes [curriculares]. Então, quando falamos de aprendizagem por áreas e por componentes, nós estamos, de certa forma, ‘disciplinarizando’ [reorganizando por disciplina] o currículo”. Também reconhecendo que a transformação dos itinerários será um dos grandes desafios que vêm pela frente, mas positivando essa mudança, o secretário de Pernambuco ilustra a situação do estado: “Para nós aqui em Pernambuco é bem evidente [o tamanho da mudança]: eram 14 itinerários com mais de 400 unidades curriculares e nós vamos mudar para quatro itinerários, mais o quinto do técnico. E esses itinerários vão estar voltados para o aprofundamento, não teremos mais aula de brigadeiro gourmet”, brinca, referindo-se a um exemplo citado em várias matérias jornalísticas que denunciaram o esvaziamento do currículo do Ensino Médio.
A exceção nas dúvidas sobre esse tema, fica por conta do Amapá. “Para nós, a resolução está muito clara relacionada aos itinerários formativos”, diz Arnanda Oliveira, explicando que, mesmo sob a legislação anterior, o estado já organizava os itinerários formativos como aprofundamento de áreas de conhecimento. Por isso, segundo ela, a expectativa da Secretaria é que a matriz de transição que será implementada em 2025 para os 1º e 2º anos do Ensino Médio possa permanecer em 2026.
Educação profissional: tem muita ou pouca formação básica?
A maior dificuldade apontada pelos gestores de algumas redes estaduais de ensino na mudança da carga horária da Formação Geral Básica estabelecida pela nova legislação é exatamente na situação em que ela foi menos ampliada. Para entender esse dilema, é preciso primeiro lembrar que a vitória da reivindicação dos principais movimentos sociais da Educação em relação à ampliação da carga horária da FGB teve uma exceção: nos casos em que o estudante cursar o itinerário formativo 5, de formação técnico-profissional, o currículo da formação geral pode ter apenas 2,1 mil horas. O objetivo foi facilitar que as redes de ensino oferecessem itinerários com cursos técnicos de 800 – que é o mínimo que a legislação brasileira estabelece – e 900 horas sem precisar ultrapassar a carga horária mínima total do Ensino Médio. Esse arranjo, no entanto, parece não ter agradado muito ninguém.
De um lado, esse foi um dos aspectos mais criticados da nova legislação entre os pesquisadores e movimentos sociais que lutavam por uma transformação mais profunda em relação à reforma original. Na carta escrita ao Senado ainda durante a votação do Projeto de Lei (nº 5.230) que se tornaria a lei 14.945, o Coletivo em Defesa do Ensino Médio de Qualidade, por exemplo, argumentava que essa redução gerava “condições desiguais” entre os estudantes que cursassem o itinerário 5 e os outros, podendo, inclusive, se refletir no acesso deles ao ensino superior. De outro, esse caminho não solucionou o problema da oferta de cursos técnicos com carga horária maior – todas as habilitações da área de saúde e meio ambiente, por exemplo, precisam ter pelo menos 1,2 mil horas.
“Eu não consigo ofertar 2,1 mil [da FGB] mais mil horas [de um curso técnico]. Isso ultrapassa 3 mil horas. E muda completamente a carga horária do aluno, o transporte... Aí a gente começa tudo de novo”, diz Andréa Pereira, do Espírito Santo, explicando que, devido a essa “complexidade”, a matriz curricular de transição que o estado vai experimentar para novos alunos em 2025 não vai contemplar o itinerário formativo 5. Também no Paraná, segundo Ruthes, essa vai ser uma das mudanças com maior impacto para a rede. “A gente vai ter uma dificuldade muito grande de implementar”, diz. Em Pernambuco, a decisão foi que, pelo menos nesse primeiro momento, a formação técnico-profissional como parte do Ensino Médio será oferecida apenas nas escolas de tempo integral. “[O aumento da carga horária da FGB] tem um impacto muito especial nas escolas regulares e nas escolas de sete horas [diárias]. A gente dificilmente consegue fazer o ajuste do quinto itinerário para esses estudantes. Então, muito provavelmente, a gente vai ter o quinto itinerário oferecido exclusivamente nas escolas de 45 horas ou nove horas diárias”, explica Schneider. Essa mesma estratégia, de limitar o itinerário 5 às escolas de tempo integral, já vem sendo desenvolvida no Amapá, segundo Arnanda Oliveira, e, exatamente por conta da dificuldade de fechar a carga horária da FGB com o itinerário 5, por enquanto, deve continuar assim.
Para diminuir essas dificuldades – e ao mesmo tempo agravar a crítica de quem já denunciava a desigualdade entre os estudantes do itinerário 5 e dos outros em função da FGB menor –, as novas diretrizes curriculares permitiram uma situação excepcional. No seu artigo 25, o texto autoriza que, no caso da oferta de cursos técnicos de mil ou 1,2 mil horas em turmas de Ensino Médio parcial (que não é em tempo integral), até 300 horas podem ser consideradas como de “contabilização simultânea” da FGB e do itinerário. Como o cobertor curto nesse caso está na obrigatoriedade de cumprir o mínimo estabelecido para cada habilitação técnica específica, na prática a tendência é que essas horas sejam deslocadas da Formação Geral Básica, fazendo com que os componentes curriculares obrigatórios possam acabar se reduzindo novamente às 1,8 mil horas da legislação anterior. O desenho atual do currículo de Goiás – que ainda não se sabe se será o definitivo para 2026 – é um exemplo concreto dessa situação. “O que o Estado vai fazer é a formação de 1,8 mil horas, 300 de articulação e as 900 do curso técnico”, diz Vanessa Carvalho, referindo-se à oferta de habilitações com 1,2 mil horas. E nesse caso, explica, os responsáveis pelo conteúdo das 300 horas seja os professores da formação profissional e não da Formação Geral Básica. “Se tiver alguma mudança [na normatização], é claro que a gente vai ter que fazer ajustes para 2026, mas a orientação até aqui para a construção da nossa matriz de 2025 é essa”, resume. De acordo com Cesar Callegari, a preocupação do CNE sobre esse aspecto foi deixar explícito na resolução que esses conteúdos considerados de “articulação” devem ser ministrados obrigatoriamente por “profissionais habilitados para o exercício do magistério”, o que, segundo ele, causou, inclusive, “um certo ranger de dentes”. Não há, portanto, qualquer determinação sobre de que área de conhecimento devem ser os docentes. Perguntado sobre o risco de, no itinerário 5, isso acabar significando a volta das 1,8 mil horas de FGB que eram previstas na reforma original e foram modificadas pela nova legislação, o presidente do CNE afirmou que, se esse se mostrar um ponto de dúvida das redes de ensino, deve ser apresentado ao Conselho para ser discutido e respondido de forma colegiada.
Educação a distância: pode ou não pode?
É também um modelo adotado pela rede de ensino de Goiás para responder ao itinerário 5, da formação técnico-profissional, que ilustra de forma mais clara o estado da arte do debate sobre a Educação a Distância no Ensino Médio a partir da nova legislação. Para as turmas de Ensino Médio parcial, o estado só oferece o itinerário 5 na forma de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC), qualificações mais rápidas, que garantem certificação mas não uma habilitação técnica. A cada ano do Ensino Médio, o estudante faz um curso FIC da sua escolha, todos com 600 horas, das quais apenas 100 são ministradas presencialmente. As outras 500 são desenvolvidas à distância, por meio de plataformas. E é sobre essas que recaem as dúvidas.
A lei 14.945 é clara ao estabelecer, no artigo 35-B, que “o Ensino Médio será ofertado de forma presencial, admitido, excepcionalmente, ensino mediado por tecnologia, na forma de regulamento elaborado com a participação dos sistemas estaduais e distrital de ensino”. Seguindo essa determinação, dois artigos da resolução 2 do CNE autorizam, sempre em condição de excepcionalidade, o uso de Educação medida por tecnologia apenas para o ensino noturno e para a EJA em “regiões de difícil acesso”. Ainda assim, na parte que
dedica à definição dos conceitos utilizados na resolução, o texto caracteriza a Educação mediada por tecnologia como aquela que é realizada “ao vivo”, com educandos reunidos em sala de aula e um professor, que mesmo estando em outro lugar, tem sua aula transmitida em tempo real, em interação com os estudantes. Imediatamente abaixo, no entanto, aparecesse a definição de outro conceito, de “educação híbrida”, apresentado como “atividades pedagógicas” que, nesse caso, combinariam educação presencial e não presencial. Não por acaso, foi esse o trecho da resolução que a chefe do Núcleo do Ensino Médio da Secretaria de Educação de Goiás leu durante a entrevista para respaldar a expectativa da gestão de manter os cursos FIC à distância como parte do itinerário 5 mesmo sob a nova legislação. Acontece que, curiosamente, para além do tópico em que é definido a expressão ‘educação midiática’ não é utilizada nenhuma vez na resolução.
Vale destacar ainda que, embora a excepcionalidade a que a lei se refere para a Educação de Jovens e Adultos e o ensino noturno esteja restrita à Educação medida por tecnologia, tudo indica que uma parte das redes de ensino esteja contando com permissões mais amplas. A subsecretária de Educação Básica e Profissional do Espírito Santo, Andréa Pereira, explica que hoje cerca de 30% do Ensino Médio oferecido no turno da noite se dá por EaD. Com muitas dúvidas sobre o que as novas regras consideram como excepcionalidade, ela tem esperanças de que haja uma “abertura” para manter essa parte da carga horária à distância. Da mesma forma, a coordenadora do Ensino Médio da Secretaria Estadual do Paraná conta que todo o Ensino Médio noturno e a EJA, em particular, são ofertados de forma híbrida, num desenho em que o educando tem contato com o professor uma vez por semana e em todos os outros estuda por meio de uma plataforma. Considerando as mudanças a esse respeito como um “ponto de atenção importante”, ela espera que a regulação específica do CNE sobre a EJA aponte “algum tipo de caminho” para viabilizar a Educação de Jovens e Adultos não presencial. Arnanda Oliveira aponta dificuldades da rede do Amapá de fazer caberem todos os componentes da FGB no ensino noturno. Ela também lembra que a legislação anterior permitia até 30% de EaD nesses casos, mas garante que estão “fazendo um esforço” para ‘fechar’ as contas sem comprometer o ensino presencial.
Nas respostas enviadas via assessoria de imprensa, o MEC explica que “a lei determina que será elaborado um regulamento com a participação dos sistemas estaduais e distrital de ensino”, destaca que “a mediação por tecnologia já é utilizada em algumas realidades em função da peculiaridade geográfica do Brasil” e informa que “haverá ações regulamentares para as redes de ensino”, mas reforça que “não se está autorizando o uso de EaD”. O presidente do CNE adiantou para a reportagem que a Secretaria de Regulação do Ensino Superior (Seres), do MEC, estava finalizando um documento dedicado à definição de várias categorias relacionadas à Educação mediada por tecnologia para uso tanto na Educação Básica quanto na Educação Profissional e cursos de graduação. Até o fechamento desta edição, a publicação não tinha sido ainda anunciada. Em relação ao debate desta matéria, no entanto, Callegari é conclusivo: “A EaD no Ensino Médio está vedada”.