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Entrevista: 
Carmen Moraes

‘A discussão do Ensino Médio tem motivado que as pessoas falem e discutam a concepção de Educação Profissional’

Foi como parte do debate sobre a Reforma do Ensino Médio – a grande ‘vilã’ do encontro que reuniu mais de 2 mil pessoas em Brasília – que a Educação Profissional provavelmente mais apareceu nos debates da Conferência Nacional da Educação (Conae) 2024. Se, por um lado, isso reforça a concepção de quem há muito tempo defende que esse segmento precisa ser entendido e desenvolvido como parte da Educação Básica, por outro é inegável que o documento final do evento, de fato, tem pouco conteúdo específico sobre a formação técnica de jovens, adultos e trabalhadores. Foi para tentar entender esse cenário que a Poli conversou com a professora Carmen Moraes, da Universidade de São Paulo (USP), durante a Conae, realizada entre 28 e 30 de janeiro. Nesta rápida entrevista, ela relembra um pouco da história de separação entre a Educação Profissional e o que se considerava Educação ‘de verdade’ e analisa os efeitos do Novo Ensino Médio sobre essa formação.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 08/03/2024 14h16 - Atualizado em 04/04/2024 16h32

Como reação à Reforma, a Conae 2024 está tematizando muito o Ensino Médio. Por outro lado, são poucas as referências à Educação Profissional no documento e nos debates. A que isso se deve?

Eu concordo com você mas, como eu não participei da organização da Conae, não sei exatamente por que isso aconteceu. Historicamente, havia essa dualidade estrutural da escola brasileira, entre a Educação propedêutica, a Educação que forma para a universidade; e a Educação Profissional, que era voltada para a formação dos trabalhadores. Então, eu acho que esse afastamento organizacional promoveu um desconhecimento dos professores com relação à escola profissional. Eram dois mundos completamente diferentes, e havia uma tendência a encarar a Educação Profissional como se não fosse Educação: aquela da escola ‘regular’. E a Reforma [do Ensino Médio] reafirma e fortalece essa concepção de que Educação Profissional não é Educação. Quando cria um itinerário [de formação profissional] que desqualifica a habilitação técnica de nível médio e transforma aquilo numa formação continuada, ela tenta desescolarizar a Educação Profissional. Isso já aconteceu uma vez no governo Fernando Henrique, quando ele separou a Educação técnica do Ensino Médio.

A sra. se refere ao decreto 2.208, de 1997?

Isso. Eu acho que todo esse contexto levou a que o pessoal da Educação não se preocupasse com Educação Profissional. Acho que agora, com essa ‘imposição’ – porque se tornou prioritária a escolha do itinerário formativo de formação profissional [no Novo Ensino Médio] –, os educadores começaram a se preocupar com essa questão. A gente brigou muito na década de 1990 para mostrar que a Educação Profissional é um objeto dos trabalhadores, que ela é central na formação dos trabalhadores. Alguns sindicatos achavam que formação profissional era coisa do patrão, que ia render mais-valia, que era para melhorar o trabalho e conseguir mais lucro, então, eles que se virassem. Foi um processo longo de convencimento entre os pares e entre os trabalhadores para mostrar que não, que Educação Profissional é central na formação, que ela não deve ser substitutiva e sim complementar à Educação básica. Até que a CUT [Central Única dos Trabalhadores] tirou no seu Congresso Nacional, uma posição definida dos trabalhadores [sobre Educação Profissional].

A gente defendia o Ensino Médio integrado à Educação Profissional. E claro que tinha um projeto redondo, do qual o Instituto Federal era o centro, não só certificador, mas também responsável por uma política de verticalização [que garante aos estudantes ascender nos níveis de ensino na mesma instituição], em que o trabalhador podia fazer o Proeja FIC [Educação de Jovens e Adultos integrada a cursos de Formação Inicial e Continuada] no Ensino Fundamental 2, depois esse conhecimento seria reconhecido no Ensino Médio, e depois ele poderia chegar ao Ensino Tecnológico no Instituto Federal. Era uma proposta maravilhosa.

O que acontece hoje? Com a imposição da Reforma [do Ensino Médio], começou a haver uma preocupação com o que é ‘essa tal de Educação Profissional’. Só que aquilo que está sendo imposto não tem nada a ver com Educação Profissional, é um desmonte. O que eles estão colocando lá não é habilitação técnica, é um tipo de qualificação rebaixada - porque existe qualificação profissional que é complementar e necessária para o trabalhador que está no mercado, que precisa se qualificar, se certificar. A qualificação é uma demanda dos trabalhadores, mas não dessa maneira. Mas eu acho que a discussão do Ensino Médio, que é um avanço de qualquer forma, tem motivado que as pessoas falem e discutam a concepção de Educação Profissional, porque a nossa não é a dos empresários, não é a do Sistema S.

E que concepção de Educação Profissional é essa?

É aquela que dá formação integrada, que faz o que a gente chama de ‘formação humana’, que atende todas as dimensões do ser humano, inclusive o cidadão trabalhador que vai ter que enfrentar o mercado de trabalho no Brasil e precisa ter autonomia intelectual para se mover nesse mercado cada vez mais competitivo. E aí a empresa que cuide depois de dar e pagar essa formação, não é mesmo? Porque eles têm que pagar a formação do seu trabalhador. A escola forma e, depois, o trabalhador deveria poder se qualificar no mercado de trabalho, na empresa. Mas ele precisa ter fundamentação para aprender rápido e ter autonomia, poder escolher, se defender, atuar bem, produzir bem. Essa é nossa concepção de Educação Profissional.

Por muito tempo se falou em Educação Profissional como uma Educação que não poderia integrar o currículo, que era para pobre, como se fosse uma redução

Não é papel da escola fazer essa formação específica para o trabalho?

O papel da escola é formar integralmente e atender também essas necessidades. Por muito tempo se falou em Educação Profissional como uma Educação que não poderia  integrar o currículo, que era para pobre, como se fosse uma redução. A Educação do que hoje são os IFs e do Centro Paula Souza [de São Paulo], no início era para os filhos de trabalhadores, para os pobres. Depois mudou: a escola ‘regular’ que ficou para os filhos de trabalhadores e as escolas profissionais passaram a ser disputadas, têm vestibulinho etc. É um dualismo às avessas. Até que o pessoal começou a lutar pelas cotas, tentando democratizar o acesso. Mas por que [essas instituições] são de qualidade? Porque tiveram condições materiais, tudo que a escola ‘regular’ nunca teve.

[A Educação precisa oferecer] os fundamentos teóricos, a formação técnica embasada pelas teorias científicas, pela física, química, biologia, ao lado das humanidades. Assim, se forma o trabalhador como tem que se formar e depois ele vai para o mercado com capacidade para aprender lá, se ajustar, se adaptar às mudanças tecnológicas. Ele também vai ter condições para virar um cientista, pode ir para a universidade. Só que a gente sabe – eu vou falar isso com calma para ninguém ficar bravo – que nem todo mundo pode entrar na universidade pública, sólida… Não estou dizendo que todas as faculdades particulares são ruins, estou dizendo que quando a gente defende a entrada na universidade, a gente quer que se tenha a melhor formação acadêmica possível, para que se possa dizer: é formação universitária. Mas também não precisa [ir para a universidade], necessariamente, desde que você tenha uma formação sólida no Ensino Médio, como acontece em outros países. Podemos pegar o modelo da Finlândia para mostrar que tem gente que não precisa ir para a universidade para conseguir um posto no mercado de trabalho. Você vai fazer universidade quando gostar, quando quiser estudar, se aprofundar, quiser fazer arte, fazer literatura, fazer ciência, não necessariamente por ser uma exigência ocupacional, para manter ou conseguir emprego, para ter mobilidade ou para ganhar dinheiro.

No painel intitulado ‘O direito à educação sob ataque no Brasil: reformas educacionais e alternativas de ação’, que aconteceu no segundo dia da Conae, a Monica Ribeiro, coordenadora do Observatório do Ensino Médio, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), afirmou que a Reforma do Ensino Médio é também uma reforma da Educação Profissional. A sra. concorda?

Eu acho que ela tem razão, porque essa concepção de Educação profissional que está presente na Reforma fragmenta e fragiliza. Quando a Reforma impõe o itinerário formativo, ela também fragiliza o Instituto Federal. O Gaudêncio [Frigotto] falou na Revista Poli [em entrevista à edição nº 91] que eles estão tentando transformar os Institutos Federais num Sistema S estatal, quer dizer, cada vez menos público. É perfeito isso que ele fala. E ele diz também que a proposta dele, que é a nossa proposta, é generalizar o modelo dos Institutos Federais no Brasil. Mas para isso você tem que ter estrutura e recurso orçamentário. E isso ainda é uma utopia, no sentido de historicamente possível. Mas, pode ser construído como parte de um projeto de nação.

Há duas coisas importantes nessa contrarreforma empresarial. Primeiro, é essa questão de recursos mesmo: o fundo público está sendo posto à disposição [do setor privado]. E a segunda é a conformação da subjetividade do trabalhador num momento em que você tem o país desindustrializado. A gente precisa revitalizar economicamente o país, industrializar - com um desenvolvimentismo aliado às novas tecnologias de proteção ambiental. Porque precisa criar emprego qualificado para que a escola tenha sentido, para que a gente discuta Educação integrada e dê sentido para o jovem. Essa Reforma é para conformar o jovem a essa situação, de perda de mobilidade social, de perda de direitos com a Reforma Trabalhista... Citando [o historiador Erik] Hobsbawm, [estamos falando de] meninos que não conseguem enxergar o passado – porque tiraram deles todas as condições de apropriação do conhecimento que lhes permitiria se situar historicamente no presente e construir sua identidade – e que não veem futuro, porque não têm mobilidade, não têm nada. Eles têm um presente contínuo. Eu fico muito consternada com isso. O modelo da competência funciona justamente para arrancar o conhecimento e substituí-lo por um saber operacional, que responde às necessidades práticas e é consonante com o mercado de trabalho. Essa geração está sendo violentamente desapropriada de todos os seus direitos: direitos trabalhistas, direito à educação, direito de moradia, tudo que foi conquistado na sociedade salarial. Eles estão marginalizados e, como existe uma população de jovens sobrantes, para os quais não há demanda de trabalho, você precisa reduzir as suas aspirações e sua capacidade crítica.

Na sua avaliação, o que deveria constar como deliberação dessa Conferência em relação à Educação Profissional, para que apareça no PNE?

Para mim, o modelo é o Instituto Federal. Nós temos que expandir esse modelo. Eu acho que é para isso que nós tínhamos que caminhar em todos os eixos [da Conae]. Qual o modelo de Educação que nós queremos? É o modelo de currículo integrado, é o modelo integral de formação humana. E ele inclui Educação Profissional integrada e Educação ‘regular’ Básica. O conceito de escola básica também está em disputa: ele não pode ser fragmentado do jeito que está sendo. Eu acho que nós temos que entender como está na Constituição: o Ensino Médio é a última etapa da Educação Básica, de formação geral, comum, ampla, consistente.

O neoliberalismo acabou com essa visão que nós tínhamos, que veio do pós-guerra, da Educação democrática, que começou como resistência ao Fascismo na França e veio para o Brasil - é uma longa história. O neoliberalismo cortou isso em vários lugares. Na Inglaterra a reforma foi terrível, lá também reduziram o currículo a poucas disciplinas. E, vê que absurdo: uma delas é religião. Tiraram a formação docente da Universidade, que é outro aspecto importante que está se discutindo aqui, porque eles não se preocupam só em desmontar a escola, fragmentar tudo, a formação docente também é esvaziada, o professor perde o controle do seu processo de trabalho, vira um replicador de manuais e Power Point.

 

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