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Cadê a Educação Profissional?

Conae teve pouco debate e propostas sobre esse segmento. Na EJA, articulação com cursos técnicos e de qualificação está na mira das entidades empresariais
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 08/03/2024 14h24 - Atualizado em 08/03/2024 16h36
Foto: José Cruz/ABr

Claro que o método não é lá muito preciso, mas talvez ajude a perceber o ‘tamanho’ da discrepância: enquanto a expressão ‘Ensino Superior’ aparece mais de 5 mil vezes no documento final da Conferência Nacional de Educação (Conae) e ‘Educação Básica’ tem nada menos do que 17,4 mil referências, o termo ‘Educação Profissional’ está presente no texto em meras 37 ocasiões. E não adianta muito mudar os termos da busca: outras combinações de palavras com significado semelhante, como ensino técnico, curso técnico ou educação técnica, não são citadas sequer uma única vez. Nos debates que antecederam as plenárias da etapa nacional, o vazio foi ainda maior: dos 20 painéis que aconteceram ao longo de um dia e meio, nenhum tinha esse segmento educacional como tema. “Educação profissional, acho que foi a principal ausência”, reconhece Daniel Cara, professor da Universidade de São Paulo (USP) e ex-coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

O lamento pelo pouco espaço que a Educação Profissional ganhou na Conae uniu até quem estava em lados opostos em relação nos temas que se tornaram centrais na Conferência. “A gente entende que o documento-base veio muito fragilizado em relação à Educação Profissional”, diz Elenira Vilela, coordenadora geral do Sinasefe, o Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica, que apoiou a proposta de revogação da Reforma do Ensino Médio e aponta a experiência dos Institutos Federais como o “modelo” de Educação Básica e Profissional a ser perseguido no país. “A gente fica entristecido do fato de não se falar tanto sobre Educação Técnico-Profissional”, concorda Wisley Pereira, gerente executivo de Educação do Sesi Nacional, que representou a Confederação Nacional da Indústria (CNI) como delegado na Conae  e, embora tenha tentado enfatizar muito mais as convergências do que as divergências durante a entrevista à Poli, se posicionou a favor do Novo Ensino Médio e das parcerias público-privadas que envolvem o Sistema S e outras instituições, na contramão do que a maioria dos delegados decidiu nas conferências.

O cenário piora se levarmos em consideração que, dessas 37 citações, várias estão em notas de rodapé que apenas apresentam dados sobre as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) atual. Nesse conjunto, há ainda trechos que tratam da discussão sobre outros temas, como a necessidade de se garantir o acesso de estudantes da Educação Especial à Educação Profissional ou o apontamento de que a Educação Profissional não deve ser o único caminho para viabilizar a Escola de Tempo Integral. Há ainda situações em que esse segmento apenas aparece listado entre outros: por exemplo, numa parte da redação que fala sobre “financiamento adequado”.

Proposição mesmo, daquelas que têm maior potencial de se tornar meta no texto do próximo PNE, o documento final traz apenas uma sobre Educação Profissional, no parágrafo 582. Em termos de ampliação do segmento, a proposta repete o desafio posto – e não cumprido – pelo PNE atual de “triplicar as matrículas de Educação Profissional Técnica de nível médio”. Mas, dessa vez, está afirmado, já no enunciado, que esse crescimento deve se dar “preferencialmente na modalidade integrada [ao Ensino Médio]”, que remete à experiência exitosa dos Institutos Federais. A mesma concepção está reforçada em outros trechos do documento, que defendem conceitos como “escola unitária” e “politecnia”, apontando a importância da Educação Profissional também para a melhoria da Educação Básica. Mas a proposta vai além e joga todas as fichas contra o que a Conae caracterizou como processos de privatização da Educação, determinando que nada menos do que “100% da expansão” desses cursos deve se dar no “segmento público até o final de vigência do Plano” – a meta 11, do PNE em vigor, falava em 50%. Em outro trecho, o documento ainda exige que, quando fizer parte do Ensino Médio, a Educação Profissional seja ofertada de forma integralmente presencial – numa clara recusa à transigência com a Educação a Distância no itinerário 5, de formação profissional, que a Reforma do Ensino Médio instituiu.

EJA com Educação Profissional

Embora apresentada como estratégia – e não como proposição –, o documento final da Conae traz também uma atualização – e um upgrade – no conteúdo da meta 10 do PNE que ‘vence’ este ano, que trata da Educação de Jovens e Adultos integrada à Educação Profissional. Agora, a estratégia redigida no parágrafo 538 do texto que resultou da Conferência amplia de 25% para 50% as matrículas de EJA que devem ser ofertadas nessa modalidade. “A EJA integrada à Educação Profissional e Tecnológica é, para nós, uma questão central”, diz Rita Gonçalves, que participou de todo o processo da Conae pelo Fórum Nacional de EJA.
Mas ela não está sozinha. Mais até do que as políticas de Educação Profissional para os jovens em idade ‘regular’, foi a oferta de cursos articulados com a Educação de Jovens Adultos que o gerente Executivo do Sesi, Wisley Pereira, destacou como a “maior preocupação” da CNI neste momento. “Hoje somos 70 milhões de brasileiros, uma Itália inteira, de pessoas que não têm a escolarização na idade correta e não terminaram a Educação Básica”, descreve, defendendo que elas também “têm direito” a uma “certificação” que aumente as oportunidades para o “mundo do trabalho”. “Nós defendemos muito uma EJA que faça uma qualificação técnica e profissional na direção de emancipar esse sujeito para o seu projeto de vida”, diz Pereira. E um exemplo exitoso de resposta a esse desafio, segundo ele, estaria no ‘Nova EJA’, uma experiência desenvolvida pelo Sesi, que ele considera “a melhor metodologia de ensino de jovens e adultos” do país. “Hoje, um estudante que procura a rede Sesi de ensino consegue fazer o seu curso em até 13 meses, mas não é porque a gente abre mão da qualidade, é porque a gente certifica habilidades e competências que ele já adquiriu ao longo da vida”, anuncia. De acordo com informações do site do Sesi São Paulo, o curso se desenvolve com 80% dos “estudos a distância” e apenas 20% de “encontros presenciais”.

A autorização para que a Educação de Jovens e Adultos possa ser ofertada com até 80% de carga horária à distância foi feita pela Resolução 01/2021, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que se tornou um dos principais focos de crítica do movimento social de EJA. “É cruel, é desrespeitoso o que a Resolução 01/21 fez com a EJA”, diz Rita Pereira, explicando que a prioridade do Fórum hoje é mobilizar o MEC e a sociedade pela revogação desse documento, que, segundo ela, atende aos interesses privatistas. Por um lado, diz, tem crescido o número de oferta de EJA à distância, por meio de convênios firmados entre os governos e a iniciativa privada. Por outro, existe uma pressão empresarial para que o modelo do Sesi se expanda com financiamento público. “O Sistema S tem lá na mesa do ministro uma proposta tentando transformar essa experiência numa proposta referência. Mas não é. Referência pode ser a oferta dos Institutos Federais que, de fato, têm capilaridade nacional, com escola pública em todos os municípios desse país”. “Entendemos que a EJA é um direito, e como direito, deve ser ofertado pelo Estado, conclui.

 

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Foi como parte do debate sobre a Reforma do Ensino Médio – a grande ‘vilã’ do encontro que reuniu mais de 2 mil pessoas em Brasília – que a Educação Profissional provavelmente mais apareceu nos debates da Conferência Nacional da Educação (Conae) 2024. Se, por um lado, isso reforça a concepção de quem há muito tempo defende que esse segmento precisa ser entendido e desenvolvido como parte da Educação Básica, por outro é inegável que o documento final do evento, de fato, tem pouco conteúdo específico sobre a formação técnica de jovens, adultos e trabalhadores. Foi para tentar entender esse cenário que a Poli conversou com a professora Carmen Moraes, da Universidade de São Paulo (USP), durante a Conae, realizada entre 28 e 30 de janeiro. Nesta rápida entrevista, ela relembra um pouco da história de separação entre a Educação Profissional e o que se considerava Educação ‘de verdade’ e analisa os efeitos do Novo Ensino Médio sobre essa formação.
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