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Entrevista: 
Camila Grassi

‘A ideia é fazer com que seja implementada uma política que agora é obrigatória, mas que tem uma ampla resistência’

O Ministério da Educação (MEC) publicou no Diário Oficial da União no dia 14 de julho a portaria 521, que institui o Cronograma Nacional de Implementação do Novo Ensino Médio. Entre outras medidas, a normativa adiou para 2024 o prazo para que as redes estaduais implementem as mudanças trazidas pela lei 13.415/2017, a chamada reforma do ensino médio, que inicialmente previa um prazo de cinco anos para que fosse implementada, que terminaria no ano que vem. A medida já era esperada pelas redes estaduais em meio aos desafios trazidos pela pandemia de Covid-19, com o fechamento de escolas e o agravamento da crise econômica que afetou diretamente a arrecadação tributária dos estados. Nesta entrevista, a pesquisadora do Observatório do Ensino Médio da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Camila Grassi analisa os efeitos da portaria 521, que segundo ela exemplifica a articulação existente no conjunto de mudanças instituídas na esteira da aprovação da reforma do ensino médio, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) e o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) 2021. Processo que, como lembra Camila, vem sendo realizado segundo a concepção educacional dos agentes que compõem o que ela chama de redes de governança, nas quais se articulam institutos privados que representam os interesses de diferentes frações do empresariado no campo educacional.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 30/07/2021 09h53 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

Quais os efeitos dessa portaria tendo em vista o processo de implementação da reforma do ensino médio?

Veja só, a gente teve a aprovação da reforma do ensino médio em 2017. Não vou fazer um histórico muito longo para não fugir do contexto presente, mas se lembrarmos, foi uma reforma implementada de forma autoritária, por meio de Medida Provisória, o que reverberou em ampla resistência dos estudantes secundaristas, dos profissionais da educação e da comunidade científica brasileira. Essa resistência continua forte nesse momento, ela ainda existe, haja vista que apesar de ter se tornado uma política de caráter obrigatório, ela não representa o projeto educacional pleiteado pela base social a qual se destina. Mesmo assim, como foi aprovada a revelia, encontra-se no momento presente, em percurso de implementação. 

O que ocorre neste momento é que, devido ao contexto da pandemia, em que houveram alguns impeditivos para que a implementação pudesse ocorrer conforme aprovado em lei, o MEC retoma através da normatizaçao aqui tratada, o calendário de sua implementação.  Neste sentido,  a Portaria 521 exemplifica  a articulação da reforma do ensino médio a um conjunto mais amplo de reformulações curriculares que foram produzidas no mesmo período.


Por exemplo?

Por exemplo, a BNCC. Ou seja, ela articula a reforma do ensino médio à implementação da BNCC, que também está lá na lei da reforma. O MEC traz ali na portaria uma articulação da reforma do ensino médio à reformulação da elaboração dos materiais didáticos do PNLD, do Programa Nacional do Livro Didático. São vários. Ela também faz ali uma articulação com a reformulação do Saeb [Sistema de Avaliação da Educação Básica], que faz a avaliação da educação básica brasileira. A portaria traz um conjunto de elementos desse cronograma pressupondo que a partir da implementação da reforma do ensino médio vai haver um monitoramento, e a partir desse monitoramento, vai ser feita uma reformulação do sistema de avaliação da educação básica. Tais elementos demonstram a unidade do projeto educacional empresarial que perpassa a formação da juventude, a formação de professores, a produção de materiais didáticos e  a reformulação do sistema de avaliação nacional.

Demonstra ainda a articulação das avaliações nacionais como mecanismo de monitoramento destes processos de implementação.  Dentre os elementos que a Portaria trata, está por exemplo, o cronograma de reformulação do Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], de modo a alinhá-lo  a implementação da reforma e da Base Nacional Comum Curricular.

É uma portaria que exemplifica a conexão desse conjunto de reformulações curriculares construídas no período mais recente da política educacional brasileira.

O que a gente pode colocar em relação a uma leitura do contexto passado e agora? Enquanto política obrigatória em implementação a qual representa o projeto educacional das redes de governança - que são redes de agentes que operam na produção da política educacional brasileira como o Movimento Pela Base e o Todos Pela Educação -, busca-se, pela via institucional, produzir nos processos de implementação, algum ganho de legitimidade da atual política frente as resistências.
Estas redes tem uma forma própria de atuação. Dentro destas formas, colocam-se como entidades produtoras de políticas  com base em evidências, e trabalham no caminho de produzir de diferentes formas a validação da política curricular por elas produzida. Este é um das estratégias com elas encontrado para tentar produzir algum grau de legitimidade daquilo que produziram.

O que as pesquisas mais recentes demonstram é que os dados provenientes do monitoramento de políticas, tem sido utilizado por estas redes, com vistas a produzir pesquisas com vistas a produzir uma possível "validação" do produto por elas produzido.


Em que sentido?

Quando na portaria articula-se as várias reformulações curriculares;  institui-se um cronograma que aproveita a implementação da reforma do ensino médio para poder avançar outro conjunto de elementos (como a implementação da BNCC, da implantação da BNC para formação de professores, da reformulação dos materiais didáticos) e propõem testagens deste processo com vistas a reformular os processos de avaliação nacional, pode-se destacar o potencial para o uso destes dados de monitoramento para tentativa de  validação futura destas políticas.
 

Este elemento fica melhor exemplificado no artigo 4º da Portaria em que destaca-se o processo de monitoramento da reforma do ensino médio seguido do processo de validação pedagógica de novas matrizes para o Saeb. A ideia de validar a implementação da reforma para reformular o Enem, pressupõe a lógica de produção em termos "técnicos" de algum grau de legitimada da política. A técnica não pode ser compreendida, portanto, como neutra.

Não há aqui a idéia de uma disputa entre público e privado, há aquilo que as próprias redes de governança chamam de colaboração. É a privatização do público a partir da atuação direta do setor privado, no sentido da concepção da política.

 

Qual é o papel desse monitoramento?

As reformulações curriculares aqui destacadas têm uma dimensão de similaridade a aquilo que  denominamos na ciência da política educacional de  Reformas Educativas Globais. De forma sintética, pode-se apontar três grandes pilares principais destas reformas: são definidas por meio de currículos organizados com base em competências e com alto grau de prescrição (como seria, por exemplo, a BNCC); articulam-se a lógica de monitoramento das avaliações padronizadas (o que em muitos países tem sido utilizado como mecanismo de controle sobre a aplicação dos currículos) e são implementas a partir de programas estruturados, viabilizando a implementação da política. Em geral é por  meio destes elementos que abrem-se os caminhos para a produção daquilo que estas redes chamam de "políticas com base em evidências".

Contudo, apenas pela análise desta Portaria, não é possível detalhar como ocorrerá este processo de monitoramento, haja vista que ele  não está explícito no conteúdo da Portaria.   

O fato é que estas redes vem demonstrando atuar nas agências da política educacional de modo que a implementação da política e sua progressiva geração de dados possa ser utilizada para a produção de novas políticas que se articulam umas com as outras, que amarram umas as outras.


Você citou as chamadas redes de governança. Pode falar um pouco mais sobre elas e o papel que elas vêm tendo nesse processo da reforma do ensino médio?

É importante que a gente entenda que estamos falando de uma política em que há aquilo que Stephen Ball vem denominando de uma comunidade política de governança.  Está é constituída  por agentes de natureza pública e privada organizados por meio de redes. Estas redes de governança têm um conjunto de valores, de técnicas, de ações, que lhes é própria.

A BNCC, a reforma do ensino médio, a Base Nacional Comum para formação inicial e continuada de professores, a aplicação dos três pilares que vem constituindo estás reformulações curriculares exemplificam parte do produto produzido por estas redes.  Representam parte do projeto educacional destas redes.
Elas atuam tanto na instâncias nacional como nos estados e municípios.

A rede do Movimento pela Base Nacional Comum, a rede do movimento Todos pela Educação, do Movimento Colabora Educação, a Rede de Evidências são exemplos importantes destas redes.

Elas atuam conjuntamente no presente com vistas  a implementar a política que agora é obrigatória, mas que tem uma ampla resistência da comunidade educacional e científica. É importante colocar que existe uma concepção diferente, por isso que existe essa resistência.


Olhando o monitoramento de implementação da reforma do ensino médio realizado pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), é possível ver que alguns estados listam o envio de seus referenciais curriculares para “leitura crítica” por parte do “Instituto Reúna” como uma das etapas cumpridas no processo de implementação da BNCC nos estados. É um exemplo da atuação dessas redes de governança?

Veja, o Instituto Reúna e outros institutos privados que estão auxiliando nesse processo compõem as redes de governança. Essas redes são compostas por agentes ligados a entidades de natureza pública e privada, mas os agentes mais atuantes são entidades do terceiro setor que representam frações do capital, frações do empresariado comercial e financeiro. São entidades que por meio das redes conseguem atuar em várias localidades do território nacional, ou seja, elas atuam conjuntamente.

O Consed a a Undime [União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação] compõem por exemplo a rede do Movimento pela Base Nacional Comum. Essas entidades têm ali um papel estratégico, uma vez que permite que essas entidades privadas possam atuar conjuntamente com os estados e municipios na implementação da reforma. Não há aqui a idéia de uma disputa entre público e privado, há aquilo que as próprias redes de governança chamam de colaboração. É a privatização do público a partir da atuação direta do setor privado, no sentido da concepção da política. É a operativodade da concepção da gestão privada aplicada a gestão pública.

É importante colocar o papel das assistências técnicas que os institutos privados vêm fazendo junto aos estados e municipios, com a ideia de viabilizar o avanço do projeto educacional defendido pelas redes de governança.

É importante destacar que há projetos distintos sendo disputados.   As comunidades científicas ligadas a educação são contrárias, por exemplo, à concepção de formação docente que está na presente. A BNC de formação  inicial e continuada de professores. Pesquisadores e educadores defendem inclusive um projeto que é oposto ao que está definido no presente em termos de lei. A primazia da prática sobre a teoria, sobre a aplicação do princípio de homologia de processos, fere substancialmente a ideia da docência como trabalho intelectual, prático e criativo. Fragmenta está dimensão. Esvazia a dimensão científica da formação docente.  O uso e aplicação  de técnicas prontas destinadas a apenas aprendem como se deve implementar a BNCC, a reforma do ensino médio, aproximam a formação docente a uma espécie de neotecnicismo educacional. 

Este é apenas um dos exemplos  que marca a oposição entre o projeto educacional defendido pelos profissionais da educação e a comunidade científica brasileira  frente o projeto que as pelas redes de governança vêm implementando.

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