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Entrevista: 
Luiz Carlos Freitas

‘É o contato com a vida, com a realidade, com as contradições, que engravida o conhecimento’

Nesta entrevista, realizada originalmente para a produção de uma matéria sobre Escola Unitária, publicada na edição especial da Revista Poli, comemorativa dos 35 anos da EPSJV/Fiocruz, Luiz Carlos Freitas conta a experiência da Escola Única do Trabalho na Rússia pós-revolução. O professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) mostra que há diferenças entre os princípios dessa concepção, elaborados pelos Pioneiros da Educação, e a forma como eles foram postos em prática, analisa as dificuldades de adoção desse‘modelo’ nos dias de hoje e comenta o quanto a Reforma do Ensino Médio brasileiro se distancia dessa perspectiva, ao aprofundar a dualidade educacional.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 25/08/2020 16h42 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

O que é Escola Única do Trabalho?

A Escola Única do Trabalho é uma construção feita nos primeiros anos da Revolução Russa. Até um pouco antes [da revolução] esses autores, esses revolucionários, estavam trabalhando na construção das mudanças que vão ser implantadas na Rússia. A [Nadejda] Krupskaya [pedagoga russa] está escrevendo em 1915 uma proposta para as escolas e ela vai falar da necessidade de passarmos de uma escola de estudo, livresca, para uma escola do trabalho. E esses conceitos compõem o que depois vai ser oficializado como Escola Única de Trabalho. Quando acontece a revolução, eles são sistematizados e tornados política pública. Logo em 1917, um documento chamado Proclamação da Escola Única de Trabalhoé feito pelo [Anatoli] Lunatcharski, já empossado como comissário popular da educação. Há de se lembrar que esse é um período de guerra civil, que se seguiu à revolução. A revolução foi, digamos assim, rápida, mas a guerra civil depois foi muito longa, foram três anos, pelo menos, de guerra civil interna. Logo em 1918, um ano depois, sai uma espécie de regulamentação, um regimento de funcionamento dessas escolas, que, quase simultaneamente,  é seguido por uma declaração dos princípios da Escola Única de Trabalho. Tenta-se levar para a prática esses princípios e essa abordagem até por volta de 1929, quando então, o Lunatcharski e esse grupo todo do comissariado são substituídos ou vão para postos menos relevantes dentro da estrutura, preparando já o que aconteceria em 1931, que é a primeira reforma educacional russa. Então, é esse o período em que a Escola Única do Trabalho tenta se concretizar, com inúmeras dificuldades. Porque, se até 1921, 1922, você tinha uma situação de guerra no país, e depois disso você tem todo um trabalho de reorganização das próprias escolas, muitas já estavam até destruídas, muitas serviam para abrigo de órfãos da guerra civil, esse processo implicava não só uma mudança formal da escola, dos seus princípios, mas também um amplo programa de formação de professores que deveriam ser requalificados para trabalhar dentro dessa perspectiva. Também toda uma mudança curricular precisava ser feita. No primeiro momento, até 1921, por aí, tenta-se trabalhar sem programas curriculares centrais, mais isso não funcionou e então, mais ou menos em 1923, 24, o comissariado popular da educação faz os programas do conselho científico estatal, que tinha uma subcomissão diretamente presidida pela Krupskaya. E ela é que, junto com um grupo de colaboradores, entre eles, Viktor Shulgin, [Moisey] Pistrak, vai construindo essa abordagem da Escola Única de Trabalho e a construção curricular que dava base também para fazer a formação dos professores. As tentativas, portanto, vão ocorrendo até 1928, quando a relação entre o Lunatcharski e o [Josef] Stalin se deterioram por conta exatamente do conceito de revolução cultural que o Stalin vai implantar. Segundo Sheila Fitspatrick, há um desentendimento e o Lunatcharski pede demissão do comissariado. Isso tudo desemboca, em 1931, em uma primeira reforma educacional, em que esses princípios são mantidos mas muito relativos e tomam outro caminho para o desenvolvimento da educação. Os pioneiros [da educação russa] trabalham a escola única a partir da proposta [de educação] omnilateral do [Karl] Marx, da associação entre a educação intelectual, educação física e ensino tecnológico. E eles vão desenvolver uma abordagem curricular que vai tomar como base o princípio da Escola Única.

O que significa dizer que uma escola deve ser única e do trabalho?

Tem dois conceitos envolvidos nessa denominação. O que é única para eles? Não é que ela seja uniforme para todo mundo e do mesmo jeitinho. Não é pensamento único. Esse primeiro documento do comissariado diz que isso significa que todo o sistema de escolas regulares, desde o jardim de infância, consiste de uma escola que avança em uma progressão contínua, que todas as crianças devem poder estar em um mesmo tipo de escola e começar e terminar a sua educação igualmente. E que todas elas têm direito de prosseguir até os seus níveis mais altos. É por isso que ela é única, ela quer quebrar a dualidade da escola capitalista, que trabalha com duas vertentes: uma que vai afastando os alunos mais pobres ao longo da formação e outra que reserva [para os mais ricos] aquela linha direta para a universidade. Ela quer quebrar essa ideia de dualidade de classe, ou seja, as pessoas podem seguir caminhos diferentes, desde que esse caminho não seja determinado pela sua condição econômica. Não precisa ir todo mundo para a universidade, sem dúvida nenhuma, mas que a ida seja possível. E que [quem não for] o faça por aptidão ou por opção própria, não porque não tem condições econômicas para chegar até lá.

A vida em geral é um palco de aprendizagem e ela pode ser assim tomada pela escola, como o lugar onde a criança tem que se ver, tem que ser inserida nessa realidade

Sobre ser uma escola “do trabalho”, os documentos vão ser claros nessa formulação. Primeiro, é preciso entender que a conexão com trabalho não significa colocar as criancinhas na fábrica nem esperar o ensino médio para que ela possa ter algum contato com o trabalho. Essas duas questões precisam ficar advertidas de antemão. Eles lá tinham dois níveis de ensino, de oito aos 13 e dos 13 aos 17, o primário e secundário. No primeiro bloco, o sentido de trabalho era apresentado da seguinte maneira: “o primeiro fundamento é psicológico”. Dentro desse ponto de vista, o princípio era o trabalho dirigir para o conhecimento do “mundo criativo, vivo e ativo”. Então, para o primeiro bloco de educação, de 8 a 13 anos, a proximidade com o trabalho tem essa significação de tornar o ensino ativo, de modo que ele não seja livresco, um ensino que não seja de ouvir o professor falar em sala de aula. Já no segundo nível, que vai dos 13 aos 17, há uma mudança, que é colocada da seguinte maneira: “a escola de segundo nível pode ser muito variada em relação aos tipos de trabalho colocados na base do estudo da cultura Politécnica”. Essa politecnia ali novamente não significa especialização em uma profissão. Era uma cultura Politécnica que familiarizava o estudante com os principais ramos da produção, não era uma especialização para uma profissão. O trabalho tem aí um duplo sentido, ou até um triplo sentido. Primeiro, ele é genericamente a vida. Porque quando se fala que o primeiro bloco de formação de 8 a 13 anos é uma formação baseada no trabalho, isso quer dizer que ele é conexão com a vida, a vida em geral é um palco de aprendizagem e ela pode ser assim tomada pela escola, como o lugar onde a criança tem que se ver, tem que ser inserida nessa realidade que está do lado de fora da escola. Não pode ser uma escola isolada da vida. Agora, isso vai se modificando quando chega ao segundo nível, de 13 a 15 anos. Já é uma escola da cultura Politécnica, então aí o trabalho está mais formalmente presente, mas ainda na forma de oficinas escolares: de metal, madeira... E também como que será desenvolvido como trabalho socialmente necessário, ou seja, um conjunto de atividades de conexão da escola com a vida do bairro, em que os estudantes se conectam com essa vida para resolver problemas concretos que estão acontecendo na comunidade, dão sua contribuição. E, depois dos 15 anos, ele vai desenvolver já alguma especialização ou então segue para níveis superiores [de formação], conforme seu desejo.

Pelo próprio programa do Partido Comunista Russo, a especialização numa profissão só poderia acontecer depois de 17 anos. Mas, como há um crescimento brutal da grande indústria na Rússia neste período - de 1929 para frente a Rússia está industrializada -, há uma pressão sobre o aparato escolar para que se antecipe de 17 anos para os 13 anos [a profissionalização], para que se pudesse apoiar o processo de industrialização. E aí há uma grande confusão, um debate muito acirrado, o Lenin tem que intervir. E Lenin negocia então que, provisoriamente, em caráter emergencial, se possa antecipar para 15 anos. Então vamos encontrar essa afirmação de que depois de 15 anos já pode ter uma especialização profissional, mas isso foi um arranjo de Lenin para que se resolver esse impasse, em caráter emergencial só.
E em algum momento se volta a praticar o que era a proposta original, de profissionalização só a partir dos 17 anos?
Não, só piora. Depois de 1928, a situação fica muito ruim até mesmo do ponto de vista conceitual, do ponto de vista técnico. Depois de 1931, quando se faz a primeira reforma educacional, as coisas ficam mais complexas, fica mais difícil levar adiante esses princípios. Em minha opinião, volta-se a adotar modelos mais próximos à forma de escolarização vigente no mundo capitalista. Mas o período que vai além de 1931 precisa ser investigado mais a fundo para ver quais foram os impactos dessa mudança de orientação.

Mas, voltando aos princípios da Escola Única do Trabalho, quais eram suas outras características relevantes?

Havia, por exemplo, uma menção explícita ao que se chamava de disciplinas estéticas: modelagem, desenho, canto, música... Ou seja, as artes sempre tinham que estar presentes. Para os pioneiros, isso não era um luxo da vida. Estava presente a educação física... A escola era integral, era laica e introduz-se a coeducação - porque a escola na Rússia antes era separada para meninos e meninas. A revolução estabelece imediatamente a coeducação, meninos e meninas estudando juntas no mesmo local. E, além disso, ela introduz um desafio para a escola que é central: a concepção de educação que está por trás da Escola Única doTrabalho visa à formação do novo homem e mulher socialistas, portanto, quer preparar esse estudante para o trabalho coletivo. Então, além de ser trabalho, é trabalho coletivo. A Krupskaya tem um trecho de 1926 em que afirma que “se quisermos que o nosso país siga pelo caminho da cooperação, então junto com as medidas que contribuem para o florescimento material da cooperação de todos os tipos, nós devemos usar amplamente todas as oportunidades disponíveis para a superação ideológica da psicologia do pequeno proprietário”. Um dos pontos fortes da escola nessa luta deve ser a formação e o desenvolvimento do espírito coletivo. Ora, se esse é o objetivo, então a organização da escola não poderia imitar a escola capitalista, não é só o conteúdo, não é só uma questão de acesso ao conhecimento sistematizado que está em jogo. Está em jogo que esse conhecimento precisa não só abrir os olhos, mas fazer com que essas pessoas sejam ativas na sociedade, um ativismo coletivo, não um individualismo como nós temos hoje. Por isso, você tem que ter uma organização da escola que seja diferenciada dessa estrutura autoritária que temos aqui no ocidente. Por exemplo, o próprio documento de declaração dos princípios da escola dizia o seguinte: “as crianças devem participar de toda a vida escolar, para isso, elas devem usar o direito de auto-organização e manifestar ajuda e atitude ativa coletiva”. Tem um foco aí que é a auto-organização, que vem do fato de que, na sociedade socialista, o trabalhador deixa de ser um assalariado e passa ser o senhor da produção, portanto, ele tem que saber se organizar não só para si, mas para participar do coletivo. Então, essa auto-organização jamais pode ser interpretada como um processo de aprimoramento pessoal e individualista. A auto-organização tem simultaneamente essa dupla face: ela prepara o indivíduo, mas ao mesmo tempo também reconhece o papel do coletivo e prepara para fazer com os problemas que existem sempre sejam vistos dentro da ótica do coletivo. Isso é fortemente presente nos pioneiros da educação.

Essa é uma face importante da Escola Única do Trabalho: os coletivos administradores das escolas eram tripartites, reuniam todos os trabalhadores da escola, um número igual de pessoas representantes da comunidade e um número também igual de estudantes. Isso está explícito na regulação do conselho da escola. O segundo aspecto é que a auto-organização não era sob tutela - um professor organiza os alunos, ouve o que os alunos querem ou coordena a representação que os alunos estão construindo. Não, era uma representação puramente de alunos. E mais: os cargos que os alunos ocupam nessa representação eram obrigatoriamente de curta duração, permitindo que um maior número estudantes se exercitasse nas várias posições: hoje, líder, amanhã liderado.

Claro que isso tudo cria uma grande conexão com as instituições políticas da juventude que permeiam a sociedade, há uma interação muito grande entre os estudantes e também a participação deles em outras organizações coletivas fora da escola. Mas tem um outro elemento: ao aluno deve ser dada completa liberdade na organização de qualquer tipo de associação temporária ou contínua. Essas são características, portanto, que marcam uma forma escolar que está vinculada ao desenvolvimento emancipatório do indivíduo, que está querendo colocá-lo numa perspectiva de olhar para o coletivo e assumir que o coletivo era uma responsabilidade dele também. Isso tudo com uma determinação de que não poderia ter mais do que 25 alunos em sala.

O sr. está relatando uma experiência que se deu na Rússia no início do século 20. A ideia de Escola Única do Trabalho faz sentido hoje ainda como esforço na educação? Como fazer essa adaptação ou relativização do que significa ser “do trabalho” num contexto que não é o revolucionário?

Nos marcos da nossa sociedade, isso é sempre difícil pelo sentido que tem o trabalho em sua forma assalariada. Mas algo, ainda que com objetivo estratégico, pode-se aprender com esta experiência. Eu gosto muito do conceito do Viktor Shulgin de “trabalho socialmente necessário” porque ele quebra essa questão da conexão da educação ter que ser necessariamente com uma profissão, com o trabalho obrigatoriamente em aparatos produtivos. E mesmo já nos escritos lá atrás, da Krupskaya, ela usava o seguinte exemplo: o bairro está cheio de poças d'água, quem se importa com isso? Ninguém? Não está atrapalhando ninguém? Está, e existe um trabalho social que eliminará aqueles buracos que enchem de água. Então, não é um trabalho especializado, não é um trabalho que se vai fazer sempre, você não vai virar auxiliar da prefeitura. Mas, naquelas condições, era importante, principalmente se a poça estivesse na frente da escola, que os estudantes refletissem sobre algo que incomodava todo mundo. Então, eles tinham, no trabalho, essa preocupação com um sentido coletivo. Outro exemplo: questões de saúde, de repente determinadas doenças que apareciam, a escola se envolvia no trabalho de esclarecimento das medidas sanitárias porta a porta. São trabalhos socialmente necessários, independentemente de acontecerem dentro ou fora da fábrica, de necessitarem de uma especialização. Mas note só que eles exigiam que um grupo de estudantes se organizasse para resolver o problema. Havia uma aprendizagem aí. Todo o trabalho tinha que ter um objetivo pedagógico e não apenas instrumental. Houve um momento na história da Escola Única do Trabalho em que as condições fora da escola eram tão dramáticas que se encaminhou para o que se chamava de auto-serviço: se você está alojado em uma escola, você tem determinadas responsabilidades com a vida da escola. Então, você não vai deixar o seu dormitório para alguém ir lá e arrumar, você vai levantar e arrumar o seu dormitório, você vai ajudar na cozinha, fazer a comida para todos... Isso não era uma proposta da Escola Única do Trabalho, a questão do auto-serviço, mas era algo que a necessidade obrigava. E, portanto, como não se podia fazer muitas coisas além disso, aproveitavam-se essas experiências para tirar delas algum sentido educativo. Isso depois evoluiu para a noção de trabalho socialmente necessário, sempre caracterizando que o importante é inserir o estudante na atualidade, porque a atualidade contém contradições importantes e, sem isso, o conhecimento do estudante fica teórico, fica passível de se perder, de não ter o significado correto. É o contato com a vida, com a realidade, com as contradições que engravida o conhecimento.

O sr. falou da necessidade de um certo tipo de trabalho no contexto específico da Rússia pós-revolução. O fato de a experiência da Escola Única do Trabalho ser datada, e de ter sido uma influência também para o conceito de Escola Unitária que Antonio Gramsci desenvolve em seguida, gera, ainda hoje, uma polêmica, por exemplo, sobre se o ensino médio integrado à educação profissional é necessário ou se representa uma profissionalização precoce. Como o sr. avalia isso?

Eu não sou um estudioso do ensino médio. Aliás, também não sou historiador. Apenas me interessei por caracterizar a organização do trabalho pedagógico russo como portador de uma forma mais avançada de educação – esse é o meu campo. O que posso agregar é o que percebo dos impasses da revolução russa – até onde examinei. Veja só: é fato que houve na União Soviética essa inclinação por apoiar o processo de industrialização que avançava rapidamente, mas é fato também que isso foi à revelia dos Pioneiros da Educação russa. Ou seja, profissionalizar antecipadamente não era a proposta da Escola Única do Trabalho. Muito pelo contrário: Krupskaya, Pistrak, todo esse povo brigou intensamente [contra isso], a ponto de a questão ser colocada para decisão de Lenin. E o Comitê Central dirigido por Lenin concordou em antecipar para 15 anos mas só emergencialmente, então a antecipação foi ditada pelas circunstâncias. Os que conceberam a Escola Única do Trabalho não a viam como uma antecipação da profissão, o que não significa que não se pudesse falar dos principais ramos da produção e daquilo que era comum a eles, trabalhando essa questão na própria escola - no caso, a escola secundária, de 13 a 17 anos. Pistrak tem um livro chamado ‘Ensaios sobre a escola politécnica’ [Expressão Popular], que relata bastante detalhadamente essa luta pela cultura politécnica, que não envolvia o processo de profissionalização. E o Pistrak é uma pessoa muito detalhista, muito cuidadosa nas explanações, e vai mostrando em detalhe todos os conflitos que vão aparecendo com o magistério, enfim, as dificuldades práticas que vão aparecendo. Isso está muito bem documentado. Fica registrado também ali uma desavença entre o Pistrak e Shulgin, porque o Shulgin é essa pessoa que está entusiasmada com o desenvolvimento industrial acelerado, enquanto o Pistrak é mais cuidadoso e vê diferenças, por exemplo, entre a escola na cidade e no campo. Eu diria que essa discussão o já marca exatamente um afastamento do que se concebeu como Escola Única do Trabalho.

O sr. conhece experiências contemporâneas que considere como inspiradasna Escola Única do Trabalho, ainda que com todas as limitações compreensíveis? Na educação profissional integrada à educação básica, a Rede dos Institutos Federais costuma ser uma referência, mas são um exemplo de esforço de aplicação desse conceito?

Olha, eu não sei o que estão fazendo nos Institutos Federais, então não sei dizer. Na escola urbana eu também não saberia dizer para você quem estaria trabalhando dentro de uma perspectiva como essa – mesmo que fosse, digamos, apenas como horizonte estratégico e não curricularmente, porque na escola de hoje é muito difícil você falar em escola conectada com a vida, pensando em uma escola que queria se conectar com a comunidade dos bairros, por exemplo. Você não pode nem tirar crianças da escola hoje se não tiver uma carta do pai autorizando, não pode nem andar com as crianças fora da escola, a violência dos bairros, é uma loteria... O próprio Pistrak, em um determinado momento em que está escrevendo, vai dizerque a escola do trabalho podia ser concretizada mais facilmente, mais rapidamente no campo porque era típico do campo já essa conexão com a vida, enquanto que nos centros urbanos era mais demorada essa relação.

A minha experiência é com o MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra]. E ali aí nós temos belíssimas experiências, porque o MST tem também essa possibilidade de conectar a escola com a vida, pois redefine os parâmetros da vida localmente. Ele vai conectar-se à vida local desde o próprio momento da ocupação. E a vida local passa já a ser trabalhada de maneira comunitária, com a preocupação do coletivo, ou seja, dos trabalhadores, do assentamento ou da ocupação. Eles já estão organizados coletivamente, então a escola encontra um campo muito favorável para isso. E, nos assentamentos mais avançados, você já tem também a introdução de práticas, por exemplo, agroecológicas ea agroecologia é um elemento de conexão fantástico para você fazer com a própria escola. Não estou falando, aqui, de fazer canteirinho no pátio da escola, é claro. O MST trabalha isso muito bem. Agora, trabalha muitas vezes sem condições de fixar essas experiências no campo da educação porque, claro, depende do município, de o professor estar ou não mudando toda hora, você investe na qualificação do professor que está trabalhando no assentamento para que ele desenvolva essa dimensão toda e dali a seis meses, um ano, ele já não é mais professor... Então, nessa conexão com os municípios é difícil conseguir uma estabilidade, mas mesmo com esses elementos que jogam contra, mesmo com a precariedade da vida que está ali constituída, mesmo com tudo isso, que faz com que essas experiências tenham grande dificuldade para avançar, se fixar ou para se radicalizar como a gente gostaria, eu ainda acho que foi o MST quem avançou mais nessa dimensão de uma Escola do Trabalho com essas características.

O sr. se refere às escolas públicas de educação básica que ficam em assentamentos do MST e das quais o movimento participa com a sua pedagogia, certo?

Sim, mas temos também a escola de formação [do MST] que até agora estava localizada em Veranópolis, no Rio Grande do Sul, e está indo para uma localização mais próxima de Porto Alegre (além da Escola Nacional Florestan Fernandes, aqui em São Paulo) e que foi precursora de todo um trabalho nessa direção que, aliás, está descrito no livro ‘Escola em Movimento’ [Expressão Popular]. Ali se desenvolveram e se aprofundaram muitas dessas ideias, acrescentando-se inclusive características próprias. Não há uma cópia. Eles tomam como referência, mas agregam.Temos ali brilhantes formuladoras, como Roseli Caldart,que é uma grande conhecedora dessas teorias todas. Eu acho que é o lugar mais avançado que nós temos, nas nossas condições, para produzir algo próprio, não descartando as lutas do passado. Nós temos um cacoete na área. Cada um acha que tem que ir a [Karl] Marx ou a Gramsci para reconstruir a educação de novo. É como se não tivesse sido produzido nada na luta dos povos e você toda vez precisasse ir lá nos fundadores, pegar um conjunto de princípios e ir deduzindo o que deve ser a educação. Ora, eu acho que a pedagogia socialista é o acúmulo das lutas da classe trabalhadora mundial pela construção da sua educação. E não precisa ser chamada de outra coisa além de Pedagogia Socialista. Ela vem sendo acumulada em uma série de tentativas ao redor do mundo No caso da União Soviética, não podemos jogar fora, por mais que compremos as ideias do Ocidente sobre o que foi a Revolução Russa, e colocar tudo em um pacote para  apenas dizer que “fracassou”.

É possível analisar as mudanças recentes na política de educação brasileira à luz desses princípios da Escola Única do Trabalho? Me refiro mais diretamente à Reforma do Ensino Médio e à construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Esta é a luta. Mas a Pedagogia Socialista russa fornece sim uma perspectiva estratégica, de envolvimento com o trabalho, a partir de uma concepção mais ampla de trabalho do que simplesmente a profissionalização. No caso da nossa reforma do ensino médio, ela é destinada a aprofundar o dualismo na educação. Os tais itinerários [formativos] são isso, [têm o objetivo de] desviar as camadas populares dos níveis superiores de educação, dirigi-los à profissionalização e colocar mão de obra disponível de uma maneira até sintonizada com realidades locais em cada município Então, é um desastre essa reforma. Mas ela mostra o aprofundamento dessa característica dualista em um momento em que ainda está em jogo a educação básica do indivíduo.

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