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Entrevista: 
José Willington Germano

‘Há uma dimensão pós-colonialista em Paulo Freire’

José Willington Germano é professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, além de estudar, viu e viveu de perto a efervescência cultural que marcava o Nordeste brasileiro nos anos 1960. Quando a experiência de alfabetização de adultos de Paulo Freire aconteceu no pequeno município de Angicos, ele morava numa cidade ao lado. Mais tarde, pesquisou e produziu análise crítica sobre a campanha ‘De pé no chão também se aprende a ler’, que envolvia iniciativas de educação popular e cultura em Natal, mais ou menos no mesmo período das ‘40 horas de Angicos’. Nesta entrevista, ele descreve o ambiente cultural da época no “Brasil profundo” e aproxima o trabalho de Freire de autores que hoje discutem a opressão por uma perspectiva decolonial.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 16/09/2021 11h18 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

Quando a gente vai ler sobre Paulo Freire, encontra referência direta ao Movimento de Cultura Popular do Recife, ao programa ‘De Pé no Chão Também Se Aprende a Ler’, depois chegamos à experiência de Freire em Angicos propriamente... Parece que tinha, naquele momento dos anos 1960, todo um caldo de cultura que envolvia o campo da educação, mas não só. Paulo Freire foi influenciado por isso ou ele influenciou esses movimentos?

O movimento da educação e cultura popular fazia parte das mobilizações da época. Em primeiro lugar, é preciso compreender o que acontecia no Brasil naquele período. Eram os anos 1960, ano do governo João Goulart. Nas eleições presidenciais de 1960 quem ganhou foi o homem da vassoura, Jânio Quadros, mas muitos meses depois ele renunciou e o vice era João Goulart, que era um político do PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro, um partido reformista que, ao longo dos anos 1950 e 60, foi expandido a sua bancada, aumentando as suas votações. E então chegou à presidência através de João Goulart, que era vice de Jânio - naquela época se votava separadamente para presidente e para vice. Jânio era da UDN [União Democrática Nacional] e Jango do PTB. Em meio a uma crise militar, Jango assume e vai fazer um governo reformista, vai abraçar o que chamavam na época de reformas de base, reformas estruturais da sociedade brasileira, tendo em vista enfrentar a desigualdade social. As reformas de base envolviam reforma agrária, reforma educacional, reforma do sistema bancário. Era o período de Guerra Fria e ele não se alinhou automaticamente com o império americano, procurou desenvolver uma política externa independente. Na América Latina, é época da Revolução Cubana, tem muitas mobilizações, além de muitas guerras coloniais na Ásia e na África. Esse era o contexto internacional, que vai repercutir no Brasil. No campo educacional havia uma grande mobilização estudantil, através da União Nacional dos Estudantes. Não à toa quando houve o Golpe de 1964, umas das primeiras ações do regime foi invadir a sede da UNE no Rio de Janeiro e incendiar. A UNE tinha o CPC, o Centro Popular de Cultura. Muitas pessoas, no campo da esquerda mesmo, criticam [essa iniciativa] dizendo que era o autoritarismo das elites, mas o CPC gerou uma série de artistas que hoje estão aí, que passaram por lá, grandes músicos, cineastas...


E por que o Nordeste era um centro dessa efervescência?

Veja só, esses movimentos ganharam intensidade em todo o país, principalmente no Nordeste, por quê? Porque aqui, além de uma grande mobilização social que existia em todo o país, existia o movimento de Ligas Camponesas, uma novidade muito forte na história do país, uma organização dos trabalhadores do campo. Alguns governadores e prefeitos ficavam no campo da esquerda, como o Miguel Arraes, em Recife, e Djalma Maranhão, em Natal. Tudo isso contribuía para essas mobilizações.  E o movimento de educação e cultura popular saiu daí. Veja a força da palavra cultura! Havia um processo de reconhecimento da cultura dos excluídos por consensos históricos perversos. O fortalecimento desse movimento no Nordeste, a meu ver, se deveu a essas mobilizações. Paulo Freire desenvolveu o trabalho dele em Recife - em Pernambuco tinha o Movimento de Cultura Popular com o qual ele tinha vinculação. E aqui, no Rio Grande do Norte, vários movimentos surgiram. Aqui, a Igreja, nos finais dos anos 1950, promoveu as escolas radiofônicas, que no princípio dos anos 1960 foram transformadas em Movimento de Educação de Base, MEB. Isso surgiu aqui na época de Dom Eugênio Sales, que depois se tornou um arcebispo conservador aí no Rio de Janeiro, mas na época era um arcebispo reformador. Ele tinha uma ação social muito grande e criou um movimento de educação básica que era a escola radiofônica, sobretudo no campo, em praias, pequenas cidades, lugarejos, sertões etc. E ao lado desse movimento de educação de base tinha também o movimento de sindicalismo rural que surgiu aqui e a partir daqui se disseminou para diversas partes do país.

Eleito em 1960 [para governar a cidade de Natal], Djalma Maranhão era um prefeito nacionalista de esquerda. Seu irmão Luiz Maranhão, cujo centenário também está sendo celebrado este ano, era uma espécie de político da esquerda no Brasil e morreu torturado. O próprio Djalma Maranhão foi deposto da prefeitura e morreu no exílio, em Montevidéu, Uruguai. Este ano se completam 50 anos da sua morte. O principal projeto de Djalma Maranhão na prefeitura era a educação e a cultura. Na campanha eleitoral foram formados o que chamavam de comitês nacionalistas, entre os mais populares. E a ideia de escola de barro batido, coberta de palha, como eram as escolas de pé no chão, surgiu num bairro de pescadores aqui em Natal chamado Rocas, cujo presidente do comitê nacionalista era um pastor protestante chamado José Fernandes Machado, o Pastor Machado. Era uma figura queridíssima, que também foi preso duas vezes, em duas ocasiões. Numa reunião do comitê nacionalista das Rocas, com o prefeito falando da dificuldade de construir prédios de alvenaria e desenvolver uma política educacional mais eficiente, um popular disse: “Por que não faz uma escola coberta de palha com um chão de barro batido, como são as casas populares?”. E aí começou a campanha ‘De Pé no Chão se Aprende a Ler’, uma bem-sucedida articulação entre política educacional e cultural, que redundou numa completa organização cultural da Cidade de Natal. Por um lado, existia a educação de crianças e adultos e, por outro lado, todo um movimento cultural que começava nos acampamentos. Essas manifestações culturais eram expressões da cultura tradicional do povo, mas não somente, porque junto com esse movimento de cultura tradicional foram criados o teatrinho do povo, a galeria de arte, com uma grande interlocução entre artistas de formação erudita e acadêmica, pintores, poetas, escritores, e essas expressões populares. Existia essa troca entre saberes, entre formas diferentes de conhecimento. Em Pernambuco, a mesma coisa: Francisco Brennand fez desenhos para o projeto de Angicos. Os artistas se alimentavam da seiva popular. Esse movimento ainda faz parte do imaginário da cidade.
Então, o contexto da época, antes do golpe, era de esperança. Por isso havia um forte engajamento do movimento estudantil. Quem fazia parte do Círculo de Cultura do projeto de Paulo Freire em Angicos eram estudantes da UFRN [Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. Na campanha ‘De pé no chão’ e no movimento de educação de base, o MEB, também boa parte dos integrantes eram estudantes. As pessoas se sentiam participando de um processo de mudança.


E como é que Paulo Freire entra nessa história?

Foi o governador do Rio Grande do Norte, Aluízio Alves, que trouxe Paulo Freire para cá. Havia certo conflito entre Aluízio e Djalma Maranhão, embora tenham sido eleitos na mesma coligação política. Depois houve uma separação porque o Djalma ficava mais à esquerda e Aluízio era da UDN, embora não tenha sido eleito pela UDN. Tinha uma política tradicional, era um político conservador, mas modernizador. Paulo Freire foi [desenvolver o projeto de alfabetização de adultos em Angicos] com o financiamento da Aliança para o Progresso. Foi o que ele desenvolveu lá em Angicos que começou a projetá-lo no mundo e hoje tem esse reconhecimento internacional da sua obra. Eu diria que foi esse clima de mobilizações, de luta por reforma agrária e trabalhista, de político de esquerda assumindo cargos de executivos, etc. que fez com que aquele movimento brotasse aqui e fosse particularmente importante no nosso estado.

Há uma dimensão pós-colonialista em Paulo Freire, porque o colonialismo não desapareceu com as independências nacionais.


E qual o efeito do golpe de 1964 sobre essas experiências?

A educação e a cultura são alvos prioritários dos regimes autoritários. Aqui a acusação principal sobre o prefeito era de corrupção e subversão, o que aconteceu com vários agentes que se intitulam no campo da esquerda ou do campo reformista no Brasil. João Goulart também foi acusado de corrupção e subversão. Mas a acusação principal eram a educação e a cultura. Isso era uma interdição ao trabalho do pensamento, não é? É interditar, fazer com que as pessoas não tenham capacidade de discernir e de fazer a leitura crítica do mundo. As escolas de ‘pé no chão’ foram fechadas, bibliotecas foram desmontadas. Em um dos meus livros há uma testemunha ocular de como o exército entrou no ginásio municipal onde existia uma biblioteca e saiu carregado de livros. Houve apreensão dos livros, exposições em praça pública dos livros apreendidos, boa parte deles de grandes nomes da literatura. Teve acampamento foi incendiado. Um grupo que trabalhava com Paulo Freire aqui no Rio Grande do Norte foi dar um treinamento em Sergipe, na volta estourou o golpe e eles foram presos na estrada. Veja que perigosos bandidos! Qual era o crime deles? Alfabetizar as pessoas.


Mas, naquele momento, Paulo Freire era a inspiração ou resultado desses movimentos? Ou as duas coisas?

É um movimento de mão dupla. Ele é resultado dessa situação, mas também foi uma inspiração na medida em que falava em educação libertadora no sentido de se libertar da opressão e da colonização. Por isso eu faço até uma ligação entre Freire e o Boaventura Santos, com aquela ideia de pós-colonial. Há uma dimensão pós-colonialista em Paulo Freire, porque o colonialismo não desapareceu com as independências nacionais. Paulo Freire sempre se posicionou a favor dos condenados da terra, que é uma expressão de [Frantz] Fanon. E aqueles movimentos tinham um viés nacionalista de esquerda, porque o nacionalismo também é um caleidoscópio, tem um nacionalismo de direita, que nós estamos vendo o que está fazendo hoje na Europa e em outros lugares, mas também todo aquele nacionalismo da África, da Ásia, do processo revolucionário de descolonização. Havia uma compreensão de que o processo de libertação da opressão não era apenas econômico porque havia uma dominação cultural. O pessoal da campanha ‘De pé no chão’, o Moacyr de Góes, tinha contato com o Paulo Freire. Então, claro, ele é um resultado desse contexto, mas também foi um inspirador.


Vários textos que tentam contextualizar Paulo Freire mostram que a prioridade da alfabetização de adultos como política pública remete ainda à década de 1940 e que mesmo a concepção mais ampla de que isso deveria se dar a partir da melhoria das condições de vida da população analfabeta é anterior ou concomitante a Paulo Freire, se fortalecendo ali pelos anos 1950, com o Iseb, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros, principalmente. Como o sr. avalia isso? E qual o diferencial de Paulo Freire nesse processo?

Eu acho que é uma análise empobrecedora. É muito pouco para quem viveu aquela época. Olha, eu sou uma pessoa aqui do interior do Rio Grande do Norte. Quando ocorreu a experiência de Angicos, eu morava na cidade vizinha, chamada Assú. Naquele momento, nos fundões do Nordeste, você não pode imaginar o que era uma mobilização de sindicato e de estudantes nesse Brasil profundo. Eu acho que isso é uma análise empobrecedora, tendo em vista o que acontecia aqui nessa mobilização, nesses tempos de esperança, com os pobres do campo se organizando. Não se usava a expressão ‘periferias’, mas era isso. E por isso houve o golpe e os sujeitos pagaram com cadeia, com exílio e com morte. Então, eu acho que é uma análise que não dá conta da riqueza que existia no país naquele momento. Há muitas críticas a João Goulart, que foi um governo fraco, isso e aquilo outro. Mas eu lembro também uma frase de Darcy Ribeiro no seu livro de memória, ‘Confissões’, em que ele diz que João Goulart caiu não pelo que ele tinha de ruim, mas pelo que ele tinha de bom. Isso se aplica a Maranhão, a Miguel Arraes, a Leonel Brizola, todos esses políticos. Por mais fragilidade teórica que tivesse, por mais erros que praticassem, eles estavam envolvidos nesse processo e por isso foram ceifados, não à toa, porque eles levavam uma chama de esperança, forneciam uma possibilidade de entender o contexto que estavam vivendo, de transformar. Tanto que Paulo Freire vai usar na sua prática educativa as palavras do cotidiano para, a partir delas, localizar as pessoas no mundo.


Houve alguma resistência ao desmonte dessas experiências a partir do golpe?

Não, praticamente não houve.  Muitos foram culpados por nada. Primeiro, eu acho que talvez não houvesse um nível de organização nesse nível. E também, quem tinha as armas, os canhões, as metralhadoras? Escolas foram invadidas, cadernos foram rasgados. Pessoas simples tiveram sua casa invadida. Na região salineira do estado [do Rio Grande do Norte] houve alguma resistência. É uma região marítima, que produz muito sal: Macau, Areia Branca, Mossoró, sobretudo em Macau e Areia Branca, houve um sindicalismo muito organizado. Lá, houve certa reação ao golpe, mas claro que isso foi desfeito.
Eu trabalhei no Movimento da Educação de Base, o MEB, já depois do golpe de 1964. As aulas radiofônicas eram censuradas, tinham que mandar as aulas para o censor. Mas tinha as linhas de fuga: se as aulas radiofônicas eram censuradas, nos trabalhos que eram feitos nas comunidades se procurava dizer outra coisa, desconstruir e procurar discutir com eles a realidade em que estavam inseridos.

Como é que o povo pode andar com os próprios pés se não se reconhece a sua cultura, os seus saberes, a sua palavra?


Quando se fala no ‘método’ de alfabetização de adultos de Paulo Freire, ele sempre vem associado a um processo de conscientização. Isso também estava presente na campanha ‘De pé no chão também se aprende a ler’?

Sim. Porque essa era uma palavra-chave da época. Por exemplo, se você pegar o livro da campanha ‘De pé no chão’, vai ver a importância do voto. Isso é uma conscientização, não é? Em um contexto de dominação ‘coronelística’, qual é a importância do voto? Qual é a importância do trabalho? Então, isso era revestido pelo conceito de conscientização, que é um conceito-chave de Paulo Freire para que as pessoas tivessem consciência do contexto em que estavam envolvidas e da possibilidade de transformá-lo. Isso estava em todos aqueles movimentos e também no CPC da UNE: a arte para conscientizar.

Aí eu pergunto: o que Paulo Freire, Djalma Maranhão, Miguel Arraes faziam não era uma política de reconhecimento dessas expressões culturais nas quais o sujeito se identificava? E se eles se identificavam, tinham voz, porque quem não tem voz não age. Era para eles se reconhecerem como sujeitos que foram inviabilizados por um passado histórico excludente e perverso. Como é que o povo pode andar com os próprios pés se não se reconhece a sua cultura, os seus saberes, a sua palavra?


O sr. e outros pesquisadores defendem que Paulo Freire antecipa, de certa forma, um pensamento decolonial ou pós-colonial, que hoje está muito mais desenvolvido. Eu queria que o sr. falasse um pouquinho sobre isso. Quem é o oprimido da Pedagogia do Oprimido?

Eu não sei se ele antecede porque são mais ou menos da mesma época e eu não sei o nível de conhecimento que Freire tinha da obra de Fanon. Mas ele conhecia as experiências de descolonização que existiam na África, na Ásia e as lutas dos povos aqui no Brasil e América Latina. Então, eu acho que ele é tocado por isso e pela convicção de que a dominação não é apenas econômica, mas também cultural. E por isso ele falava em libertação.

Paulo Freire foi atualizando o seu pensamento. Ele foi para Guiné Bissau, Chile... Ele fala em pluralidade, Boaventura fala em ecologia de conhecimento, Edgard Morin fala no diálogo de saberes e no pensamento do Sul. Boaventura talvez seja mais rico nesse sentido porque ele fala em epistemologia do Sul, em saberes plurais, em instrumentos plurais. Aí vem o reconhecimento de outras culturas, um germe que já está lá atrás, em Paulo Freire. Paulo Freire tinha essa dimensão pós-colonialista que vai se firmando ao longo do tempo, na medida em que isso se encerra na própria África, América Latina e vai bebendo em outras fontes.

Quando ele diz que se identifica com os esfarrapados do mundo aí será que não estão Fanon e os condenados da Terra?

Paulo Freire naqueles movimentos não queria apenas ensinar a ler, escrever e contar. Queria que as pessoas tivessem capacidade de discernir, de fazer julgamentos morais: é a ideia de conscientização.


Em uma entrevista, o secretário de educação de Natal na época da campanha ‘De pé no chão também se aprende a ler’, Moacyr de Góes, citou críticas suas ao programa, considerando-as corretas. De que balanço crítico essas experiências precisam?

Olha, eu fiz essas críticas lá atrás. Os tempos mudam. Eu falei que existia muito nacionalismo, que não existia claro um projeto de sociedade, etc. Eu acho que essas críticas ainda se mantêm. Mas eu quero salientar mais os pontos fortes desse movimento. Se fossem tão frágeis assim, por que não se apagaram? Por que nós recorremos a eles? Eu falo muito numa visão nacionalista, mas o nacionalismo desse movimento era um pouco diferente do nacional-desenvolvimentismo, a meu ver, apesar de existir influência. Agora, eu queria hoje, com toda essa estrada, todo esse percurso, ressaltar o seguinte: eles não se apagaram, Paulo Freire vive, ‘De pé no chão’ vive, MCP vive. Tanto que você está fazendo uma matéria sobre isso agora. Paulo Freire é reconhecido internacionalmente. Veja a potência de Paulo Freire: mesmo morto, está sendo perseguido na atualidade. Por quê? Pela sua potência, pelo potencial que ele tem de fazer com que as pessoas façam o discernimento, pensem e, ao pensar, sejam capazes de fazer escolhas morais, de saber discernir o bom do mau.


Durante a ditadura, foi instituído o Mobral, com foco principalmente na alfabetização de adultos. É possível comparar o método, os objetivos, os resultados com o que vinha sendo construído antes, no governo Jango, com a participação de Paulo Freire?

A diferença principal é que Paulo Freire e todos aqueles movimentos tinham em vista mudar a sociedade: a reforma agrária e outras reformas, o aprofundamento da democratização, a busca da justiça social, o enfrentamento da desigualdade etc. E o regime militar foi justamente o contrário: era uma escola para adestramento. Não tinha uma dimensão de transformação, mas de conservação. É da água para o vinho. O movimento estudantil nos anos 1960 estava participando dessas lutas, de todo esse movimento da educação e outros mais, daí os militares criam o projeto Rondon. Ou seja, de  certa maneira, eles incorporam uma necessidade da sociedade brasileira mas as desfiguram. Paulo Freire naqueles movimentos não queria apenas ensinar a ler, escrever e contar. Queria que as pessoas tivessem capacidade de discernir, de fazer julgamentos morais: é a ideia de conscientização.

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