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Entrevista: 
Luís Felipe Miguel

'Liberdade de expressão é permitir que as pessoas tenham acesso a uma compreensão mais alargada do mundo, não o contrário’

O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para responsabilizar as plataformas digitais por conteúdos danosos que circulem nas redes sociais. A justiça de São Paulo condenou um humorista à prisão por identificar racismo e incitação à violência, entre outros crimes, no seu show de stand up. A prisão de um MC do Rio de Janeiro aumentou a discussão sobre o que pode ou não ser considerado apologia ao crime. Todos esses episódios são recentes – e trazem para o centro do debate público o tema da liberdade de expressão. Nesta entrevista com o cientista político e professor da Universidade de Brasília (UnB) Luís Felipe Miguel, você não lerá opiniões e análises sobre nenhuma dessas polêmicas em particular, embora o pesquisador aborde questões como a regulação das plataformas digitais e dos meios de comunicação de massa e as estratégias de desinformação e disseminação de discurso de ódio. O ponto central dessa conversa, realizada em 2022 para um verbete sobre ‘Liberdade de Expressão’ da Revista Poli nº 84, era explicar as origens do conceito, discutir as adaptações necessárias para o exercício desse direito na sociedade atual e mostrar as dificuldades por trás dos usos que a extrema-direita tem feito desse princípio. Três anos depois, o debate permanece mais atual do que nunca.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 16/06/2025 08h21 - Atualizado em 16/06/2025 16h44

Eu queria começar perguntando sobre as origens da ideia de liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão, que depois vai se tornar um direito, é associado mais diretamente ao liberalismo clássico. Por que a concepção de que opiniões e ideias devem ser expressas livremente se tornou objeto de defesa naquele momento?

Liberalismo é um termo complicado, uma vez que existem liberalismo econômico e liberalismo político. E, embora tenham uma origem mais ou menos comum, eles vão se distanciando. Por isso, é preciso deixar claro que quando falo de liberalismo aqui, estou falando no liberalismo político. Ele afirma que existe uma série de direitos aos quais todos os seres humanos devem ter acesso, que são próprios da condição humana. É claro que na história do liberalismo criam-se brechas e uma série de exclusões para o que se chama de “todos os seres humanos”, mas aqui tratamos do princípio abstrato. E o principal objetivo da afirmação da existência destes direitos, que seriam os direitos naturais dos seres humanos, era a ideia de que o poder político não poderia bloquear o acesso a eles. Então, o exercício do poder do Estado estava limitado pela existência de direitos que não poderiam ser tocados. Para boa parte do liberalismo político, o principal direito a ser protegido é o direito de propriedade, mas a gente tem desdobramentos dentro do próprio liberalismo que vão afirmar com maior centralidade outros direitos e, particularmente, a liberdade de expressão.

Embora haja versões anteriores, eu acredito que, dentro do liberalismo, a grande afirmação da centralidade da liberdade de expressão é o livro do John Stuart Mill, chamado ‘Sobre a Liberdade’. É um livro da metade do século 19, em que ele faz o que ainda hoje é uma defesa clássica da liberdade de expressão, baseada primeiro na ideia de que nós nunca podemos ter certeza absoluta da verdade. Assim, é necessário que afirmações que hoje parecem falsas venham à luz para serem submetidas a debate. E o segundo ponto é que, mesmo se a gente tivesse absoluta certeza da verdade, ganharia mais permitindo que o erro se expressasse, a fim de que a verdade fosse permanentemente revigorada pela necessidade de se comprová-la, em vez de ser simplesmente aceita dogmaticamente pela ausência de qualquer questionamento. Stuart Mill era um filósofo vinculado a uma corrente do pensamento filosófico liberal chamada utilitarismo. Então, a defesa de liberdade de expressão que ele faz é uma defesa utilitária, quer dizer, ele acredita que encontrar a verdade favorece toda a humanidade e que essa busca da verdade ganha quando há liberdade de expressão e perde quando essa liberdade de expressão é eliminada.

Penso que hoje boa parte das defesas da liberdade de expressão parte de um pressuposto diferente, porque nós não temos mais essa crença, que ele tinha, de que existe uma verdade única que possa ser alcançada. A nossa defesa de liberdade de expressão hoje tem a ver com o fato de que nós temos valores diversos no mundo, pessoas que defendem códigos e valores diferentes, que têm visões de mundo diferentes, e que não se tem como determinar qual dessas visões é a correta e quais seriam erradas, porque todas têm o direito de se expressar.

Mas o debate atual, especificamente quando trata do fenômeno do negacionismo científico e da desinformação, por exemplo, mesmo que não parta do pressuposto de que existe uma verdade absoluta, não recoloca a questão verdade/mentira na discussão sobre liberdade de expressão? Por outro lado, também a questão dos valores passa a ser considerada quando a gente pensa no discurso de ódio que se dissemina nas redes sociais, na incitação à violência, etc. Como você analisa essas questões no debate contemporâneo?

Nenhuma certeza está dada para sempre. Mas não é que qualquer um possa gritar ‘eu acho que a terra é plana’ e todo mundo vai voltar a essa discussão

Uma é a questão da verdade científica e do negacionismo, outra é a questão do discurso de ódio. Muitas vezes a própria argumentação do Stuart Mill é usada para justificar a presença no debate público das afirmações mais disparatadas. Por exemplo, se seguirmos a rigor a ideia do Stuart Mill de que a verdade precisa permanentemente estar enfrentando o erro, a gente teria o tempo todo que justificar novamente que a Terra não é plana. No entanto, a percepção hoje é de que é necessário considerar que alguns debates estão superados porque já existe uma carga de conhecimentos científicos acumulados suficiente para considerar a polêmica encerrada. É não ter que voltar ao básico do básico, não ter que voltar a justificar a lei da gravidade, o fato de que a Terra gira em torno do Sol, o fato de que os seres humanos não foram criados do barro e assim por diante. O que torna essa discussão complicada é que ao longo do século 20 houve uma complexificação crescente da compreensão sobre o tipo de conhecimento que a ciência produz. Aquele positivismo ingênuo de julgar que a ciência é a verdade absoluta é hoje esvaziado por compreensões epistemológicas bem mais sofisticadas, que vão afirmar que você nunca tem uma certeza absoluta, que a ciência sempre trabalha com certezas provisórias. Só que isso foi colocado no contexto de uma sofisticação das compreensões epistemológicas sobre o fazer científico, a fim de que os próprios cientistas, no seu fazer cotidiano, estivessem abertos à possibilidade de revisar suas respostas. Portanto, não é um vale-tudo. Não existe nenhum motivo para revisar a compreensão consensual de que a Terra não é o centro do universo. O que essas visões sobre o fazer científico colocam é que, se surgirem fenômenos que não são explicáveis, você pode recomeçar o debate. Nenhuma certeza está dada para sempre. Mas não é que qualquer um possa gritar ‘eu acho que a terra é plana’ e todo mundo vai voltar a essa discussão.

É necessário seguir as regras de produção de argumentos e estabelecimento de evidências que são próprias do método científico. Qualquer certeza que achamos que temos hoje pode ser desafiada caso novas ideias que obedecem a essas regras sejam apresentadas. O que acontece é que os setores da extrema-direita, primeiro os fundamentalistas religiosos mas também setores motivados por interesses econômicos como, por exemplo, todo o vasto setor da indústria poluente, fazem isso como um processo deliberado que busca gerar dúvida sobre a relação entre o consumo de determinados produtos e doenças, ou sobre o próprio aquecimento global etc. Estes setores vão se apropriar dessas novas epistemologias para dissolvê-las num discurso fácil que de alguma maneira já foi chamado de “populista”: a ideia de que não há nenhuma diferença entre um cientista, uma pessoa que tem um preparo e que dedicou a sua vida a dominar um determinado âmbito do conhecimento, e uma pessoa comum com sua experiência cotidiana, desarmada de qualquer técnica, de qualquer método. É como se não tivesse diferença porque são todos discursos e devessem ser validados igualmente, em nome de uma certa igualdade. A gente vê às vezes, no âmbito da própria ciência, uma tentação de reagir a este estado de coisas voltando a um certo positivismo, para manter do lado de fora esses questionamentos ingênuos ou mal intencionados. É claro que isso não vai ocorrer, porque a ciência ganha com essas epistemologias mais sofisticadas, ganha com uma visão menos ingênua sobre o saber que ela mesma está produzindo. Mas há uma contaminação desse debate. Às vezes a mídia abre espaço para os dois lados como se eles tivessem o mesmo grau de respeitabilidade e fundamentação. Às vezes há pressão sobre as instituições escolares, há uma ação muito agressiva, por exemplo, para que o criacionismo seja ensinado em pé de igualdade com a teoria da seleção natural. E às vezes há embates dentro das próprias salas de aula. São inúmeros os relatos de estudantes dizendo: ‘Eu tenho minha opinião, você tem a sua, e as opiniões se equivalem’.

Eu acho que isso não tem a ver só com o negacionismo. Você deixa de levar em conta as diferenças dos espaços sociais, as fronteiras do campo científico que são importantes para que o debate possa avançar. Existe uma pressão para que elas sejam dissolvidas em nome, mais uma vez, de uma democratização, mas o fato é que existem diferenças na maneira como se efetiva o princípio da liberdade de expressão de acordo com os espaços em que você está falando. A liberdade de expressão do jornalista é limitada por uma deontologia profissional que tem a ver com o grau de respeito à realidade factual. Assim, a liberdade de expressão do ficcionista é diferente da liberdade de expressão do jornalista. A liberdade de expressão do cientista está vinculada ao respeito às normas do trabalho científico, de produção de dados e evidências. Não é um vale-tudo. Então, é importante levar isso em conta, porque ter liberdade de expressão não é um valor abstrato uniforme, tem a ver com o tipo de discurso, o tipo de diálogo que ocorre em cada um desses campos.

O Movimento Escola Sem Partido, por exemplo, argumentava que, como o lugar do aluno é um lugar cativo dentro de sala, ele não escolhe estar ali, logo, não existe liberdade de expressão para o professor dentro da sala de aula. Com isso eu quero dizer que em dado momento esse argumento de que o lugar faz diferença no grau de liberdade de expressão também foi apropriado por esses grupos conservadores de extrema-direita. Esses grupos defendem a liberdade de expressão de quem faz um discurso violento contra o STF, por exemplo, mas também pregam essa ideia de que o lugar faz diferença para censurar o professor. Como se responde a isso?

Mas o lugar faz diferença. Como formulação abstrata, é óbvio que a liberdade de expressão do professor tem limites. A questão é quais são esses limites e o que é necessário para que o professor exerça efetivamente a sua função. O professor de matemática não pode entrar em sala de aula para falar das suas férias. Todo mundo tem um exemplo de professores que faziam isso lá no seu passado, mas não é correto, o professor tem que levar adiante um determinado currículo vinculado àquele nível de ensino e à matéria que ele está ensinando. A questão é que o Escola Sem Partido institui uma camisa de força que significa, na verdade, simplesmente reproduzir um conteúdo predeterminado, que seria considerado um conteúdo “neutro” do ponto de vista político ou ideológico, sem nenhuma abertura para visões críticas. Eu li o material que esse pessoal escreveu, li o livro ‘Professor não é Educador’, em que se diz basicamente isso, quer dizer, nada que seja polêmico pode ser colocado em sala de aula. O livro tem exemplos bizarros. Por exemplo, seria proibido discutir violência sexual na sala de aula porque isso é polêmico. E, na verdade, não é, porque o professor está em sala de aula ajudando os estudantes a se tornarem críticos, capazes de pensar com a sua própria cabeça e, para isso, a polêmica é necessária. E como eles mesmos são levados a reconhecer que não existe possibilidade de uma aula que seja absolutamente neutra, porque todo conhecimento embute valores e visões de mundo, acabam enxertando aquela fórmula de que a família é superior à escola e, portanto, na sala de aula, o professor deve se curvar à posição das famílias. Isso está no slogan ‘Meu filho, minhas regras’ que eles adotam, e que se tornou uma bandeira importante para o avanço do ensino domiciliar, que é um subproduto deste processo. Mas, na verdade, a escola cumpre o papel exatamente contrário a isso: ela é parte importante da socialização das crianças, inclusive para libertá-las da família, para elas terem acesso a uma pluralidade de visões do mundo, para entenderem que a posição particular da qual elas partem é apenas uma entre outras, seja para que repensem a sua vinculação com essas visões, seja para que mantenham essa vinculação com as visões familiares, como em geral acontece – mas aí elas já estão capacitadas para viver num mundo plural, sabendo que vão ter que conviver com visões do mundo e valores diferentes. E isso se faz com a liberdade do debate no ambiente escolar. Então, não há uma liberdade de expressão no sentido de que o professor chega e fala o que quer, mas sim de que o professor faz diálogo com um projeto de construção de mentalidades independentes e críticas, num processo em que as diferenças de posições vão surgir. Existe uma forma capciosa do Escola Sem Partido de dizer que o professor não tem liberdade de expressão porque ele não pode chegar em sala e falar qualquer coisa, mas é claro que a liberdade de expressão do professor é a liberdade de expressão necessária para avançar no trabalho pedagógico. E isso não se faz com mordaça, mas com debate mais aberto e o mais franco possível, seguindo diretrizes curriculares pedagógicas, é claro.

A defesa do direito à liberdade de expressão tem aparecido como argumento de vários episódios, projetos ou movimentos diferentes ligados aos grupos conservadores. Grupos ligados à extrema-direita argumentam, por exemplo, que será uma violação da liberdade de expressão se as plataformas digitais bloquearem postagens nas redes sociais que contenham desinformação, discurso de ódio ou incitação à violência. Eles estão certos?

A propagação de informação falsa dificilmente pode ser julgada como coberta pela liberdade de expressão porque há manipulação da consciência dos outros

A propagação de informação falsa dificilmente pode ser julgada como coberta pela liberdade de expressão porque há manipulação da consciência dos outros. O princípio da liberdade de expressão é permitir que as pessoas tenham acesso a uma compreensão mais alargada do mundo, não o contrário. O discurso de ódio acabou se tornando aceito mais universalmente como o limite da liberdade de expressão hoje, nas vertentes mais avançadas do próprio liberalismo político. O Elon Musk compra o Twitter [atual X], e daí esse espaço muda as regras porque o novo dono está alinhado à extrema-direita. Mas, então, depende de quem tem dinheiro? O [Mark] Zuckerberg corta tanto as contas de neonazistas quanto dos defensores dos direitos do povo palestino, proíbe imagens de mulheres amamentando como se fossem equivalentes à pornografia. Isso é um problema de privatização do espaço de debate, que já ocorria por causa do controle privado dos meios de comunicação de massa profissionais, e piora com o advento das mídias sociais. E aí está o que eu acho que é a grande diferença entre os debates clássicos sobre a liberdade de expressão do século 17 até o século 19 e o de hoje. Porque para eles a grande ameaça à liberdade de expressão era a censura estatal. Então, a defesa da liberdade de expressão era, em primeiro lugar, uma afirmação de que era necessário impedir que o Estado censurasse as manifestações da esfera pública. Hoje, embora a censura estatal ainda seja um problema, muito mais sério normalmente é o domínio de interesses econômicos privados que exercem pressão política.

A bandeira da democratização da comunicação, que os meios empresariais apresentam como se fosse uma ameaça à liberdade de expressão, na verdade tem o objetivo de efetivar a liberdade de expressão no seu sentido mais profundo

Porque esse é um outro ponto, que hoje está meio nas sombras: a grita principal é sobre essa entrada das redes sociais, mas o fato é que a gente tem aqui no Brasil também um sistema de mídia extremamente concentrado, com meia dúzia de empresas controlando a maior parte dos discursos que chegam à esfera pública – empresas, aliás, todas alinhadas em geral aos mesmos projetos políticos e afirmando que qualquer tentativa de mudar essa situação tem que ser impedida porque violaria a liberdade de expressão. É preciso reiterar a crítica de que a liberdade de expressão é vista como uma liberdade de empresa. É a ideia de que a liberdade de expressão significa que cada um fala o que bem entender com os meios de que dispõe. Se eu tenho uma rede de televisão, falo na rede de televisão, se não tenho, eu grito no meio da rua e a liberdade de expressão está protegida porque cada um falou o que quis com os meios de que dispunha. É uma espécie de ‘estado de natureza’ do debate público. Mas quando a gente vai ler a defesa que os próprios autores liberais, como o John Milton ou o Stuart Mill, fazem da liberdade de expressão, a gente percebe que para eles a liberdade de expressão é um direito do público muito mais do que um direito de quem fala. O público tem o direito a ter acesso a discursos diferentes. Isso é liberdade de expressão. Então, para proteger a liberdade de expressão, é necessário intervir nos meios de acesso ao debate público para permitir que vozes diferentes tenham acesso a esses meios. A bandeira da democratização da comunicação, que os meios empresariais apresentam como se fosse uma ameaça à liberdade de expressão, na verdade tem o objetivo de efetivar a liberdade de expressão no seu sentido mais profundo, que é fornecer ao público acesso a diferentes perspectivas, a diferentes interesses, a diferentes vozes que estão presentes na sociedade.

É necessário abrir essa caixa preta do funcionamento desses sistemas [das plataformas digitais] a fim de garantir maior isonomia e maior pluralidade no debate

Isso significa que o principal gargalo para a liberdade de expressão hoje é o controle privado do debate. E daí a gente volta à questão das plataformas. A grita da extrema-direita é evidentemente interessada, é enviesada, mas toca num ponto importante: quem define essas regras? Como a gente define quais são as regras, quais são os discursos que podem legitimamente ser levados ao público e quais não podem? Não tem solução fácil para isso, mas eu acho necessário investir esforço na regulação pública a fim de que essas plataformas tenham transparência e sigam diretrizes definidas publicamente sobre os seus conteúdos. A gente está falando não só de censura, de exclusão das contas, está falando também de visibilidade. Porque se pode ter conteúdos que não foram censurados, então parece que a liberdade de expressão está sendo garantida nesse caso, mas a programação algorítmica pode fazer com que eles praticamente não apareçam, ao passo em que outros conteúdos ganham maior destaque. Com isso você está influenciando mais uma vez o debate público de uma forma bastante séria. E a diferença principal desses novos meios em relação à mídia tradicional é a capacidade de focalização do escopo, o fato de que você pode adaptar o discurso a públicos-alvo definidos de uma maneira às vezes milimétrica. É possível induzir comportamentos de acordo com o interesse de quem está pagando por isso, como no caso da vitória de Donald Trump na eleição dos Estados Unidos, em 2016, com uma publicidade direcionada que pode levar, por exemplo, a aumentar a taxa de abstenção eleitoral das mulheres negras que votariam no Partido Democrata. É necessário abrir essa caixa preta do funcionamento desses sistemas a fim de garantir maior isonomia e maior pluralidade no debate. Eu acho que esse é o ponto.

Qual a relação entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa? Elas são complementares? Historicamente, como esses dois direitos se associam?

A leitura que eu faço é de que a liberdade de expressão é o direito do público de ter acesso a diferentes posições e discursos. Isso está claro na leitura do Stuart Mill e se a gente for lá atrás, no John Milton, na ‘Aeropagítica’, isso também está bem evidente. Da maneira como eu leio, a liberdade de expressão anda grudada com a liberdade de imprensa. Para os autores liberais, nesses textos fundadores, a liberdade de expressão é em primeiro lugar a liberdade de imprimir. Quando a gente vai ler o John Milton, a questão dele é impedir a censura prévia aos impressos. Isso na metade do século 17. É o texto fundador do discurso liberal sobre a liberdade de expressão. Embora existissem questões que se vinculavam à possibilidade de uma expressão absolutamente localizada, individual, interpessoal e direta, a grande questão eram discursos que tinham acesso ao público em geral. Então, a liberdade de expressão vem grudada com a noção de liberdade de imprensa. O fulcro central da ideia de liberdade de expressão era, então, a liberdade de disponibilizar ao público os panfletos, jornais, livros, etc. com visões que seriam dissidentes ou heterodoxas sobre os mais diferentes assuntos. Embora eu entenda que se vá fazer essa distinção, acho que quando a gente vai às origens da compreensão da liberdade de expressão do próprio liberalismo político, fica claro que a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa associada a ela não são de forma nenhuma incompatíveis com a regulação dos meios de comunicação, muito pelo contrário. Assim como a liberdade de comércio não é incompatível com as regras de proteção da concorrência. Mesmo dentro do ambiente intelectual liberal, a regulação da mídia é uma necessidade para a liberdade de expressão se efetivar. Porque o que os autores lá dos séculos 18 e 19 afirmavam era que o público tinha condições de, pela sua própria cabeça, chegar à conclusão sobre o que era certo e o que era errado. Da mesma forma como não era necessário um controle do Estado sobre os tomates que são vendidos na feira porque o público saberia escolher quais são os bons e deixar de lado os ruins, não seria necessário um controle sobre as mensagens que são proferidas porque o público saberia escolher as boas e deixar de lado as ruins. Mas isso não serve mais hoje. Por exemplo, precisamos do controle do Estado para não vir um tomate cheio de agrotóxico. Então, eu acredito que liberdade de expressão e liberdade de imprensa na maior parte dos contextos podem ser usadas de maneira quase que intercambiável, desde que a gente amplie a noção de liberdade de imprensa para pegar aquelas maiores plataformas.

Eu queria que você comentasse sobre o limite do aceitável como liberdade de expressão. O Pacto Internacional dos Direitos Civis, por exemplo, quando fala da liberdade de expressão, diz que ela deve ser respeitada para ideias de qualquer natureza, o que abre um bocado esse espectro do aceitável. Mais recentemente, em 2017, já diante do contexto da eleição de Trump e da disseminação de Fake News, uma declaração conjunta da ONU defendeu que a liberdade de expressão pode sofrer restrições quando o objetivo for proibir a apologia ao ódio. Como se mede isso? Existe algum relativo consenso sobre qual é esse limite?

Como acontece com muitas coisas, o consenso é maior em relação à formulação abstrata do que na compreensão de como se aplica isso, de como se interpretam os casos concretos. O exemplo que sempre foi dado é que a liberdade de expressão não contempla o direito de gritar ‘fogo’ numa sala cheia de pessoas porque essa expressão vai causar danos a essas pessoas. Um ponto importante é que esse dano é entendido tipicamente como sendo um dano material, dano físico, porque, inclusive, um dos pontos centrais no pensamento de Stuart Mill é que a liberdade de expressão não pode ser limitada pelo argumento da angústia moral. Então, se eu sou religioso e ver pessoas blasfemando me causa angústia moral, isso não justifica que eu censure essas pessoas. O dano tem que ser físico. Para pensar num caso do Brasil, já bem mais antigo, quando aquele bispo da Igreja Universal chutou a santa na televisão e a Globo fez um carnaval em cima daquilo, porque estava na época incomodada com a audiência da Record, a rigor, da maneira como eu entendo, o bispo estava coberto pela liberdade de expressão naquele momento.

Mas, nesse caso, o que hoje a gente considera como injúria racial também não justificaria a violação da liberdade de expressão?

Isso é mais complicado. O fato de você deixar de ter uma hierarquização legal entre o racismo como discriminação efetiva e a injúria racial com palavras, eu acho supercomplicado. Agora, a questão é que a injúria racial tende a justificar ou promover comportamentos discriminatórios. Esse é que é o problema da efetivação da ideia de discurso de ódio. Vejamos como exemplo o episódio em que o Rafinha Bastos fez aquela piada que foi lida como apologia ao estupro, que falava que mulher feia tinha que agradecer ao estuprador. Isso foi nos meados do governo Dilma [Rousseff]. Foi aberto um processo contra ele. Ele dizia: ‘Gente, aquilo era só humorismo, era liberdade de expressão’. Mas o argumento contrário a ele é que a banalização da violência sexual contra mulheres ajuda a promovê-la, e que, portanto, isso se encaixa na ideia de discurso de ódio. Teve uma grande polêmica sobre isso. Eu até me alinho a essa posição, acho que naquele caso específico tinha bons argumentos a favor disso, mas não há um consenso.

Outro exemplo importante é que as feministas da linha da Catharine MacKinnon, dos Estados Unidos, defendem a criminalização da pornografia com base na ideia de que pornografia é um discurso de ódio. MacKinnon é uma jurista importante, a noção de assédio sexual, por exemplo, deve muito ao trabalho dela de tipificar isso como categoria legal. Mas ela entrou numa aliança muito controversa com a direita religiosa para levar à posição de legislação a restrição à pornografia. O argumento dela é que a pornografia é baseada na objetificação da mulher, numa supremacia masculina e que isso, portanto, leva a que esse público tenda a desumanizar as mulheres, sendo um incentivo à violência contra a mulher. A questão é: isso se sustenta? É bem complicado, porque as pesquisas dizem coisas diferentes. Tem pesquisa que diz o contrário, que o consumo de pornografia faz com que os sujeitos fiquem mais calmos porque realizam suas fantasias de violência como fantasia. É uma situação supercomplicada, mas o ponto para mim é que hoje é difícil sustentar uma condenação da pornografia com base na ideia de obscenidade tal como era mobilizado no século 19. Porque você convive com uma pluralidade de valores, de visões do mundo, de relações com a sexualidade, que fazem com que seja difícil mobilizar no debate público a velha noção de obscenidade. Então, a melhor maneira de tentar avançar no combate à pornografia passa a ser encaixá-la na noção de discurso de ódio, que é o que a MacKinnon faz. Ela tem algumas vitórias pontuais nos Estados Unidos, principalmente nos lugares onde teve maior apoio da direita religiosa, mas acabou perdendo.

Então, é difícil definir o que é o discurso de ódio, a não ser que seja uma coisa muito clara, muito óbvia, como ‘Vamos matar todos os...’ e aí se escolhe o grupo que está sendo alvo. É difícil porque o discurso de justificação das formas de violência se espalha de maneiras muito diversas e sutis, então, mesmo às vezes uma explosão pode ser justificada como um arroubo verbal e não como uma incitação à violência propriamente dita. Respondendo à sua pergunta: eu não vi nenhum consenso praticamente sobre os casos concretos, isso tudo é debatido. Eu acredito que temos que apoiar tudo que serve para enfraquecer a extrema-direita porque estamos vendo que isso coloca nossa democracia em risco, mas, por outro lado, tudo isso pode ser usado de outra forma. O fato é que desde o golpe de 2016 a gente está vivendo no Brasil uma espécie de anomia, quer dizer, a gente não está sabendo direito quais são as regras que estão valendo para organizar as disputas políticas. A gente vê uma queda de braço permanente de quem mais pode: o Executivo, o Legislativo, o Judiciário, cada um batendo mais forte na mesa em cada situação. Mas é complicado porque as decisões do Supremo não geram jurisprudência, não se está tendo a segurança jurídica que é necessária para nada, inclusive para a definição de quais são os limites para se interferir na liberdade de expressão.

E sobre a desinformação? Eu queria que você falasse mais especificamente sobre o argumento, também de grupos ligados à extrema-direita, de que o combate às Fake News viola a liberdade de expressão.

Parece que as pessoas veem a verdade como uma questão de escolha e daí se tornam imunes a qualquer tipo de argumentação e demonstração factual

A questão das Fake News é diferente da questão do discurso de ódio. E ela se tornou um problema central hoje. É a disseminação deliberada de informações falsas com o objetivo alcançar determinados resultados. Isso não é novo, evidentemente, mas ganha uma nova dimensão por causa dessa capacidade de definição de alvos com as novas tecnologias, por causa da coleta dos dados pessoais que aponta essa microdefinição dos alvos, e também por causa do que parece ser uma nova relação das pessoas com a ideia de verdade no mundo contemporâneo. Parece que elas veem a verdade como uma questão de escolha e daí se tornam imunes a qualquer tipo de argumentação e demonstração factual. É difícil fazer o combate das Fake News dentro de um quadro de liberdade de expressão. É um novo limite que está tendo que ser pensado, que é a divulgação deliberada de informações que se sabe que são provavelmente falsas, ou se sabe que são certamente falsas. Antes, quando a gente tinha um ambiente com polos de emissão de discurso mais definidos – os jornais, as televisões, as rádios, etc. – havia a possibilidade de responsabilização direta dos emissores de discurso. Agora que esse negócio está pulverizado, isso fica realmente muito difícil de ser controlado. A gente não tem ideia de como fazer isso. Por outro lado, como é que a gente vai ser capaz de colocar em marcha um debate democrático se não for capaz de produzir um mínimo de consenso sobre os fatos básicos, se não for capaz de definir minimamente o que está acontecendo para, a partir daí, discutir o que se vai fazer? A democracia era baseada na ideia de que um público com educação política mínima, com interesse mínimo pela política, com possibilidades mínimas de participação, ainda assim seria capaz de se expressar pelo voto de uma maneira que tivesse alguma lógica. Que ele conseguiria expressar pelo voto minimamente seus interesses. Agora, com essas novas possibilidades de manipulação da informação e das representações do mundo, de manipulação dos próprios engajamentos políticos, parece que essa democracia que se baseia no mínimo de educação política, de informação e de participação tem mais dificuldade de se reproduzir. Não é uma coisa que se faça da noite para o dia, muito pelo contrário, mas da maneira como eu vejo, a única maneira de combater eficientemente a difusão deliberada de informações falsas é com a ampliação da educação política geral, para que as pessoas tenham capacidade de acesso a uma compreensão mais sofisticada desses processos, dessas disputas, do funcionamento do mundo social.

Essa falta de consenso político e jurídico que você aponta pode fazer com que o efeito de algumas medidas que estão sendo tomadas hoje para conter as estratégias deliberadas da extrema-direita se volte contra os movimentos sociais e partidos progressistas? Porque há também esforços inclusive de alteração de leis. Por exemplo, apologia ao nazismo é crime no Brasil e hoje grupos de extrema-direita tentam, com base nessa legislação, criminalizar referências e elogios ao comunismo...

No final das contas, tudo depende também da capacidade de mobilização política

Primeiro, o argumento que equivale o nazismo ao comunismo é falacioso. É lamentável a gente tem que ficar repetindo isso, mas é claro que o regime do Hitler foi a realização do projeto nazista, enquanto o regime estalinista foi a deturpação do projeto comunista. O nazismo afirma expressamente a existência de raças inferiores que têm que ser contidas ou exterminadas, o comunismo projeta uma sociedade em fraternidade universal. Você pode dizer que isso é inalcançável, mas os valores que são defendidos como valores finais de determinado projeto político são diretamente opostos num e no outro. A direita faz muito esforço pela equiparação entre nazismo e comunismo, mas isso é uma falácia. Agora, isso mais uma vez mostra como é difícil implementar estas medidas, porque tudo está submetido a polêmica, e que é ilusório nós falarmos em consensos efetivos. No final das contas, tudo depende também da capacidade de mobilização política.

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