Diz-se que você foi a primeira mulher a receber visita íntima na prisão no Brasil. Como isso se deu?
Não sei se fui a primeira mulher no Brasil a ter o direito a visita íntima. No Rio de Janeiro, com certeza fui. Não há um levantamento sobre isso. Mas o que aconteceu foi o seguinte: meu marido [Colombo Vieira de Souza] estava preso na Ilha Grande [Presídio Cândido Mendes] e eu no [Presídio] Talavera Bruce, em Bangu. Quando começou o governo Geisel (1974-1979), nosso coletivo e o coletivo masculino começaram a reivindicar que os casais se vissem. Na primeira visita que o novo superintendente do governo, Thompson — que era um advogado criminalista conhecido —, fez foi feita essa reivindicação. Ele disse na ocasião que se o juiz auditor liberasse, não tinha nenhum problema. Na época, ele indicou para diretores dos presídios alguns advogados. Para a direção do Talavera Bruce, foi o advogado Jessé de Souza Marquez, uma pessoa correta e humana. A minha gestação, mesmo naquelas circunstâncias, foi muito mais tranquila por conta da atenção dada pelo Jessé Marquez. O que aconteceu então foi que o juiz auditor liberou minha visita ao Colombo [marido]. Eu então passei a receber visitas do Colombo, que já estava no presídio da Frei Caneca. Isso depois de a Justiça Militar, via Primeira Auditoria da Aeronáutica, diagnosticar que eu não engravidaria. Mas tudo foi ao contrário.
Como foi ter sua filha dentro de um presídio?
Minha filha nasceu em setembro de 1976. Imagina o que é você estar grávida em um cárcere. O sistema penitenciário naquela época não tinha nenhuma estrutura paras as mulheres, muito menos para as mulheres grávidas. Não somente ser presa nessas condições, recebíamos uma condenação enorme. Eu não fiz pré-natal, o único exame que fiz foi dentro do presídio, quando uma companheira — libertada em São Paulo — foi lá no presídio e colheu sangue para a realização dos exames preliminares. Somente uns 20 dias antes de ter o bebê eu fui ao médico. Do ponto de vista físico, apesar das condições precárias, a gravidez transcorreu bem. Em muita ocasiões, encontramos dentro do sistema funcionários públicos que nos tratavam com respeito, eram médicos, assistentes sociais e até mesmo pessoas como Jessé Marquez — investigado pelos orgãos de repressão, porque, segundo eles, "estava dando regalias". Mas na hora do parto, nenhum hospital militar quis me aceitar. O auditor liberou para que eu tivesse minha filha em um hospital privado, custeado por nós. Nossos companheiros se mobilizaram e eu tive a minha filha na Casa de Saúde São Sebastião, no Catete, que naquela época era um hospital de classe média, com o médico Jeferson Carneiro Leão, que era um homem de esquerda e que tinha feito parto em todas as companheiras. Foi uma experiência de parto cesariano. Mas antes de ter o bebê, fiquei no hospital penitenciário durante quase dois meses, em uma cela fechada. Era um verdadeiro horror aquilo. Como era um hospital masculino, eu nem podia sair do quarto. Ainda na véspera do nascimento da minha filha, houve o sequestro do bispo de Nova Iguaçu, Dom Hipólito. Naquela noite, o comando que o sequestrou esteve no hospital penitenciário me ameaçando e quebrando todo o consultório do médico, que era lá dentro.
Seu caso abriu espaço para o debate sobre os direitos das mulheres encarceradas?
Certamente, pois em seguida as presas começaram a ter direito à visita íntima, nunca concedida antes. O universo carcerário feminino é muito cruel, bastante diferente dos homens. Porque as mulheres, quando presas, são abandonadas, inclusive pelos homens. Eu fico muito feliz agora pelo fato de se levantar a discussão no âmbito nacional sobre o direito das mulheres em relação à gestação e ao bem estar na prisão.
Ganhou destaque recentemente a história de Jéssica Monteiro, de 24 anos, que foi presa por tráfico de drogas, deu à luz e retornou à cela de dois metros quadrados com o filho de dois dias de vida (após decisão favorável da Justiça, ela cumprirá prisão domiciliar). Esse caso traz à tona o debate em torno dos direitos das mulheres encarceradas. De lá para cá, você observa alguma mudança?
O Brasil é o país da escravidão, de uma desigualdade que é estrutural e estruturante, e a justiça é uma justiça de classe. O judiciário existe na maioria das vezes para defender basicamente os interesses de umas, e não de todas. Eu acho que da minha época para cá, a situação das mulheres encarceradas piorou muitíssimo, as condições materiais de prisão pioraram muito. Eu retornei ao Talavera Bruce em 2000, quando ainda era diretora do Arquivo do Estado, por conta de um projeto com o Ministério da Justiça de implantar lá uma oficina de restauração — o projeto chegou a funcionar alguns meses, por meio do qual instalamos no presídio um belo laboratório, que empregava presas e, ao mesmo tempo, dava algum tipo de perspectiva profissional, até que a Benedita [da Silva] assumiu o governo e não quis mais pagar as presas. Nessa ocasião, eu visitei inclusive a ala em que fiquei presa e me surpreendeu muitíssimo como a situação carcerária tinha se deteriorado. Na ala onde fiquei presa, que era o que tinha de “melhor” em termos de espaço, as presas estavam amontoadas. Até me espantei recentemente [em março deste ano] quando a presidente do STF [Carmen Lúcia] disse em visita a unidades prisionais onde estão mulheres grávidas e internas que tiveram filhos há pouco tempo que as condições do Talavera Bruce eram um encanto. Foi algo assim: ela usou um adjetivo nesse sentido que me espantou. A massa carcerária, de uma maneira geral, continua praticamente a mesma. A Justiça continua prendendo e criminalizando as classes populares, as mulheres negras, pobres ou da periferia, enfim, os pobres em geral, ainda que você tenha hoje um novo tipo de presas, mulheres que servem ao tráfico como mulas. Mas, objetivamente, me parece que, do ponto de vista sociológico e histórico, o público permanece mais ou menos o mesmo e com muito mais aprofundamento, na medida em que você só tem o encarceramento e a penalização do mundo da pobreza.
No dia 20 de fevereiro deste ano, a 2ª Turma do STF concedeu um habeas corpus coletivo para converter a prisão preventiva de todas as presas grávidas e mães de crianças de até 12 anos em prisão domiciliar. O pedido foi feito pela Defensoria Pública da União (DPU), que defendeu o reconhecimento desse direito para todas mulheres nessa situação, podendo assim definir a aplicação do dispositivo do Estatuto da Primeira Infância, aprovado em 2006, que alterou as regras do Código Penal relativas à concessão da prisão domiciliar nessas duas situações. Em sua avaliação, por que se fez necessária recorrer a Corte Superior para o cumprimento da lei?
Na verdade, a Constituição de 1988 sequer foi implementada na sua inteireza. Mesmo antes de ser implementada, todas as forças do obscurantismo já a transformaram em um Frankenstein [em alusão ao fictício monstro de várias partes inspirado pelo movimento romântico britânico em 1818]. No que tange aos direitos humanos, nós só estamos involuindo. O caso, por exemplo, da ex-primeira dama do Rio de Janeiro, Adriana Anselmo [presa na operação Lava Jato, ela voltou a cumprir prisão domiciliar por decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF, por ter filho com menos de 12 anos, enquanto milhares de mães na mesma situação estavam presas] foi muito interessante, porque explicitou bem a desigualdade de classe. É preciso ver como essa normativa do STF vai ser aplicada e acatada pelos juízes de primeira instância. Esse é um desafio enorme para os movimentos de direitos humanos e para os movimentos das mulheres. Como esse direito será garantido em um momento de Estado de exceção que estamos vivendo? Como isso se dará para outras mulheres? Eu estou bastante pessimista em relação aos direitos dessas mulheres.
Como era ser mulher na ditadura militar e como era ser militante de esquerda mulher?
Eu tenho um pouco de dificuldade de responder com objetividade, porque sou de uma família comunista, minha mãe era militante do PCB [Partido Comunista Brasileiro], e, neste ambiente, não existia uma reflexão sobre a questão da mulher. Particularmente, só fui dar conta dessa singularidade na prisão, basicamente ouvindo as outras companheiras falarem e no trato diferenciado que nós, mulheres, tivemos no DOI-CODI [Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna] e no presídio. No DOI-CODI, era evidente a questão de gênero e o tratamento desigual que recebíamos. Éramos mulheres jovens, algumas de classe média, metidas com a luta armada. Isso para eles era inaceitável.
A tortura e as práticas de repressão em geral da ditadura tinham especificidade quando eram usadas contra mulheres? Como era ser mulher naquele regime?
Com certeza havia um caráter específico, até porque eram homens ultraconservadores. Acho que tinha uma raiva específica, um ódio específico. Sem falar nas torturas sexuais e toda uma gama de selvageria que a História já registrou. Nos manuais de tortura da ditadura, havia referências a técnicas de torturas específicas às mulheres.
Posturas tradicionais e misóginas foram também reproduzidas por parte da própria esquerda a que as mulheres militantes pertenciam? Como era ser mulher militante do ponto de vista das organizações de esquerda?
Eu nunca percebi isso comigo. Mas, certamente, posturas misóginas também foram reproduzidas pela esquerda, porque o ambiente dominante era masculino. A política era um espaço masculino. Esse era o senso comum, e não creio que tenha mudado muito. A discussão sobre o feminino na política é muito recente e chegou ao Brasil com mais força na década de 1980. Temos uma esquerda tradicionalmente masculina.
O fim da ditadura intensificou a atuação da chamada segunda onda do feminismo que surgiu no final dos anos 1960 e na década de 1970. Como se caracterizou o feminismo no período pós-ditadura?
A participação das mulheres na política sempre existiu. Basta observamos as jornadas de trabalhadores no século 19 que trazem grandes mulheres, exemplos como a de Rosa Luxemburgo [mundialmente conhecida pela militância revolucionária ligada à Social-Democracia da Polônia, ao Partido Social-Democrata da Alemanha e ao Partido Social-Democrata Independente da Alemanha], as lutas sociais no Brasil ao longo do século 20, tendo as mulheres papel importantíssimo. Enfim, em várias jornadas de lutas no Brasil, as mulheres tiveram um papel importante. O feminismo não inventou a participação das mulheres, mas abriu outras veredas, intensificando-se ainda mais no período pós-ditadura, com mulheres que traziam muitas discussões de fora, vindas do exílio.
A Comissão da Verdade conseguiu revelar a repressão que as mulheres sofreram na ditadura militar?
A Comissão da Verdade foi muito importante porque atualizou a pauta, colocou em evidência a tortura, especialmente a questão da violência contra a mulher. Foi muito importante, mas foi uma comissão da verdade incompleta, pois não serviu para punir.
Qual o papel do feminismo na atualidade?
Eu acho que a narrativa feminista é sempre importante para problematizar os papéis sociais que as próprias mulheres têm desempenhado. Evidentemente, o feminismo se faz necessário no enfrentamento desse novo cenário superconservador que se estabeleceu no mundo hoje. Até porque, no Brasil e no mundo como um todo, muitas das conquistas das mulheres no século 20 estão em xeque, particularmente a questão do direito reprodutivo. Só que sempre ressalto que todas as narrativas identitárias têm que ter muito cuidado com a questão de classe. Porque há uma distinção e uma desigualdade no tratamento entre as classes. Uma mulher branca e com educação tem mais direito que uma mulher negra, isso é fato.