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A quem interessa a terceirização?

Para a empresariado, a terceirização é um jogo de 'ganha-ganha', fundamental para sair da crise econômica. Para estudiosos do trabalho, trata-se de um ataque aos direitos, que vai gerar mais desemprego e sub-emprego
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 09/07/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Era o ano de 2007. Acácia Kuenzer encerrava uma trajetória de cinco anos pesquisando a cadeia produtiva de couro e calçados no Vale dos Sinos, Rio Grande do Sul, e uma das suas principais conclusões era que o processo de exploração do trabalho no Brasil estava passando por mudanças. “O uso predatório do trabalho nunca foi novidade na história da humanidade, mas víamos que agora esse processo tinha uma nova configuração: a terceirização, a quarteirização e a quinterização passaram a ser formas orgânicas da acumulação flexível e a acumulação do capital depende delas”, explica a professora da Universidade Feevale. Foi por isso que, oito anos depois, quando explodiu a polêmica em torno do Projeto de Lei que regulamenta a terceirização no Brasil, seu primeiro impulso foi dizer aquela frase que ela considera própria dos mais velhos: ‘Mas eu não falei?’. “A conclusão da pesquisa já anunciava que haveria uma ampliação desse processo”, diz. O mais curioso é que, naquela época, o PL 4330 já existia, embora pouco se tivesse ouvido falar dele. “Não é surpresa nenhuma que, num momento de crise do capital como a que o Brasil atravessa, esse projeto de lei que estava lá rodando desde 2004 seja retomado com o vigor que foi. E aí você vê que tudo aquilo que a gente pesquisou e demonstrou é pouco perto do que o projeto de lei anuncia”, atesta.

Acompanhando todas as etapas de produção da indústria de sapatos para exportação, a pesquisadora chegou até as costureiras domiciliares, responsáveis por fazer, à mão, a costura dos calçados. E, segundo ela, para que o preço do produto final possa ser competitivo, esse trabalho é terceirizado pela indústria e quarteirizado por um intermediador. “Cria-se uma pessoa jurídica que é o chamado dono de ateliê. Ele contrata com carteira assinada duas ou três costureiras domiciliares mas, na verdade, utiliza 15, 20, 30, dependendo das circunstâncias. Todas são remuneradas por peça, sem direito trabalhista nenhum. E mesmo as duas ou três que tinham carteira assinada diziam que a carteira era ‘a frio’ porque, na verdade, elas só tinham como direito o INSS que ele era obrigado a recolher. Não tinham salário fixo, nem férias nem 13º. Mas achavam que esse benefício já era uma grande vantagem: o trabalho era tão precarizado que a perspectiva de ter um salário mínimo na velhice era uma maravilha”, conta Acácia. “Essa figura do intermediador, essa falsa pessoa jurídica para justificar a quarteirização, na verdade é a legalização do gato”, diz a professora, referindo-se àquelas pessoas que recrutam desempregados para trabalhar de forma temporária e precária — boa parte das vezes análoga à escravidão — na colheita das lavouras, por exemplo. No caso estudado por Acácia, a empresa-mãe pagava 22 centavos por cada par de sapato costurado e, desse valor, 30% ficava com o ‘gato’. As mulheres, “absolutamente doentes”, trabalhavam até 16 horas por dia e, para aumentar os ganhos, dividiam o trabalho com outros membros da família, inclusive crianças.

O que os trabalhadores ganham com isso?

Os defensores do PL 4330, que depois de ser aprovado na Câmara chegou ao Senado com o nº 30/2015, alegam que a regulamentação beneficia os trabalhadores exatamente porque dificulta situações como essa relatada na pesquisa. O presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaff, que protagonizou a defesa do PL junto ao Congresso e na imprensa, considera que o texto aprovado traz maior segurança para o trabalhador. “A empresa contratante deve fiscalizar mensalmente a contratada em relação às obrigações trabalhistas e previdenciárias. Não vai ter espaço para empresas que agem de má-fé”, diz Skaff, em entrevista à Poli, respondida por email. A Força Sindical, que negociou diretamente a inclusão desse ponto, resumido como “responsabilidade solidária”, no projeto, também acha que isso representa um avanço não só em relação ao texto original mas também em relação à situação que os terceirizados têm hoje. No auge da discussão sobre o PL aprovado na Câmara, no entanto, vários juristas apontaram que o texto não é claro sobre esse aspecto. Um exemplo é que antes de falar na responsabilidade solidária, o PL diz, logo no artigo 1º, que o contrato de terceirização entre a contratante e a contratada “aplica-se subsidiariamente”. Além disso, há quem garanta que esse aparente benefício não passa de cortina de fumaça. Acácia Kuenzer, por exemplo, afirma que, para esse fim, a Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), que regulava as relações de terceirização, já era suficiente. “Na verdade, você só encurta o caminho jurídico. O que a responsabilidade subsidiária faz por um caminho, a responsabilidade solidária faz por outro”, garante. Ruy Braga, professor da Universidade de São Paulo (USP), concorda. “Em termos globais, isso já está previsto hoje. Só que não necessariamente se aplica”, diz. E resume: “Não é disso que se trata. O Projeto de Lei não foi elaborado para regulamentar o trabalho dos terceirizados, foi feito para ampliar o sistema de terceirização para toda a força de trabalho”.

Acácia lembra ainda que o projeto aprovado não estabelece qualquer controle sobre a quarteirização. Ao contrário. Enquanto a súmula do TST não fazia referência a esse processo, o projeto, no artigo 3º, autoriza a “subcontratação” pela empresa que terceiriza “quando se tratar de serviços técnicos especializados e mediante previsão no contrato original”. A professora conclui: “Institucionaliza-se o intermediário”.

Redução de direitos?

Na lista dos “vários pontos que favorecem o trabalhador”, o presidente da Fiesp aponta também o artigo 12 do projeto aprovado na Câmara que, nas suas palavras, “assegura as mesmas condições de alimentação garantida aos empregados da contratada, direito de utilizar os serviços de transporte, atendimento médico ou ambulatorial existente nas dependências da contratante, treinamento adequado, quando a atividade o exigir”, entre outros benefícios. O texto, no entanto, é um pouco mais restritivo do que faz parecer a fala de Skaff. Nele, as “mesmas condições” que o trabalhador terceirizado teria em relação ao contratado direto só estão asseguradas “quando e enquanto os serviços forem executados nas dependências da contratante ou em local por ela designado”. Mas, segundo Ruy Braga, o impacto para o trabalhador é ainda mais insignificante. “Isso só vale para grandes empresas que têm, por exemplo, restaurantes nas próprias instalações”, ilustra. E completa: “Isso é absolutamente ridículo, é desprezível do ponto de vista dos direitos. A Fiesp deveria ter vergonha de apresentar esse tipo de argumento”.

O professor da USP não tem dúvidas de que a regulamentação vai promover uma ampliação desenfreada da terceirização no Brasil e que isso significará um aumento do número de pessoas com menos direitos e piores condições de trabalho. Ele lembra que os terceirizados não têm (e continuarão não tendo) acesso, por exemplo, a todas as cláusulas especiais que são resultado de negociação coletiva para beneficiar os trabalhadores diretamente contratados. E isso inclui conquistas variadas, desde a participação nos lucros até o recebimento de adicional noturno e a diminuição da jornada de trabalho. Além disso, ele lembra que a alta taxa de rotatividade dos terceirizados — 64,4% contra 33% dos diretamente contratados, segundo estudo realizado pelo Dieese e pela CUT — faz com que muitas vezes eles não consigam ter acesso a direitos trabalhistas como férias e 13º salário, já que vários não chegam a completar um ano de empresa.

O presidente da Força Sindical, Miguel Torres, discorda. Ele explica que a central defende a regulamentação da terceirização porque acredita que, a partir de agora, ela vai deixar de ser atrativa para as empresas. Exemplificando com o caso da Petrobras, ele aposta: “Se a empresa tem que ser especializada na atividade que é de petróleo, o sindicato dos petroleiros é que estaria negociando a convenção coletiva, a PLR [participação nos lucros e resultados], tudo. Iria ficar mais caro para a Petrobras. Porque ela tem que pagar igual todos os avanços negociais”.  Torres está se referindo ao artigo 8º do projeto segundo o qual, quando o contrato se der “entre empresas que pertençam à mesma categoria econômica”, os terceirizados devem ser representados pelo mesmo sindicato da contratante. “Esses avanços vão dificultar muito a contratação de terceirizado. Aquele empresário que terceirizava para diminuir salário, diminuir benefício, não vai poder mais fazer”, acredita. E completa: “O terceirizado passa a ter uma garantia que hoje nem o efetivo tem”.

A compreensão da Força Sindical, de que isso significa um avanço, é exceção entre as centrais sindicais e polêmica em relação à análise de vários especialistas. Um texto do diretor de documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), Antonio Augusto de Queiroz, por exemplo, alerta que esse é um “ponto controverso” do projeto principalmente porque não se define o que são “categorias econômicas”. “Além da disputa entre sindicatos, para garantir a representação, a contratada irá questionar sua eventual vinculação ao sindicato preponderante ou a outro que não seja o da terceirizada, alegando que sua atividade é a locação e mão-de-obra e não poderá ter o mesmo enquadramento, por exemplo, de uma metalúrgica”, explica o texto. Paulo Barela, da CSP-Conlutas, ressalta ainda que a ampliação da terceirização significa o aumento de trabalhadores com vínculo mais vulnerável. “O trabalhador terceirizado tem medo de se sindicalizar. Vai haver um enfraquecimento dos sindicatos”, aposta.

Aumenta ou diminui?

A questão é que, na contramão de todas as centrais e com um argumento que não aparece nem mesmo no discurso do empresariado, a Força Sindical acredita que a regulamentação vai tornar a terceirização mais custosa para as empresas e, por isso, a tendência é que o número de terceirizados diminua. “Eu não tenho dúvida: muita gente fala que vai aumentar o número da terceirização. Não vai. O que vai aumentar, na minha opinião, são terceirizados especializados: área de TI [Tecnologia da Informação], por exemplo. Talvez ganhem até mais o salário na sua especialidade do que ganham hoje”, aposta Miguel Torres. Para Ruy Braga, essa conta, simplesmente, não fecha. “Não há como introduzir um intermediário na relação contratual de compra e venda de força de trabalho e achar que o trabalhador vai ganhar com isso. Na verdade, você introduz um gato, a empresa se beneficia porque vai pagar menos tributo, o gato se beneficia porque vai explorar o trabalhador e o trabalhador perde do ponto de vista dos salários, das condições de trabalho, das jornadas de trabalho e, fundamentalmente, dos direitos”, diz.

Diante dessa divergência, a pergunta inevitável é: se a regulamentação será pior para as empresas e melhor para o trabalhador, por que o empresariado organizado, principalmente a partir da Fiesp, tem se mobilizado tanto pela aprovação do projeto? “Eu tive oportunidade de falar com vários empresários — não falei com Paulo Skaff —, mas tem empresário que pensa na questão jurídica. Eles hoje têm uma instabilidade jurídica muito grande”, responde Torres. Perguntado sobre um exemplo do empresariado que é contra o projeto de lei, ele citou “o pessoal do setor têxtil”, mas não soube dizer o nome de nenhuma empresa específica. O presidente da Força Sindical citou ainda o setor de comunicação, que através dos jornais estaria se manifestando contra — não a regulamentação, mas o artigo que trata da responsabilidade solidária.

Miguel Torres “não falou” com Paulo Skaff, mas a Poli falou. E a justificativa apresentada pelo presidente da Fiesp para defender o projeto vai na mesma direção da Força Sindical. “As empresas possuem uma vocação de produção, mas existe uma série de atividades que requerem especialização de profissionais. Porém, há outras atividades especializadas que hoje não são abrangidas pela Súmula do TST”, explica, citando alguns exemplos, como desenhistas projetistas, marceneiros e serviços de imagem e diagnóstico no setor saúde. “O que nós constatamos também é que esses trabalhadores ganham mais como terceiros do que se estivessem como contratados diretos. Eles também têm menor carga horária e mais tempo no emprego do que se fossem contratados diretamente”, diz, referindo-se a um levantamento que, segundo ele, a Fiesp fez com os dados do Relatório Anual de Informações Sociais (RAIS) do Ministério do Trabalho e Emprego. Ao destacar o trabalho especializado como o foco da terceirização, Skaff tenta deslegitimar o dossiê ‘Terceirização e desenvolvimento: uma conta que não fecha’, produzido pela CUT e pelo Dieese, que traz dados diametralmente opostos aos da Fiesp: segundo o estudo, os terceirizados trabalham três horas por semana a mais do que os efetivos e ganham, em média, um salário 25% menor. O problema, segundo Skaff, é que esse relatório faz “generalizações” quando opta por trabalhar com dados agregados, “comparando médicos e profissionais de limpeza, engenheiros e recepcionistas”.

Entre as vantagens do projeto para as empresas, portanto, Skaff não cita nenhuma vez a redução de custos. Num jogo de “ganha-ganha”, o principal, segundo ele, é a garantia de que as empresas possam se dedicar à sua “vocação”. No entanto, a Fiesp defende o texto do projeto que amplia a terceirização também para as atividades-fim, exatamente aquelas que seriam a principal “vocação” das empresas. “Terceirizar a atividade-fim é o fim do mundo. Porque uma empresa existe para fazer uma coisa. Se ela não pode fazer essa coisa, para que ela existe?”, questiona Acácia Kuenzer.

Crise e emprego

“Dinamizar a economia, modernizar as práticas trabalhistas e reduzir a burocracia” são outros objetivos que a Fiesp diz buscar quando defende a regulamentação da terceirização nos moldes em que ela foi aprovada na Câmara dos Deputados. “A crise só vai passar quando formos capazes de colocar novamente o país em rota de crescimento, de geração de empregos e renda para o trabalhador”, analisa Skaff. Ruy Braga contesta. “É importante que fique claro que terceirização não significa mais emprego, terceirização significa desemprego e subemprego”, alerta. E garante: “Isso vai ser líquido e certo: quando a empresa for autorizada a terceirizar todas as suas atividades, ela vai trocar 100 trabalhadores por 70 terceirizados”. Num diálogo direto com a ‘receita’ defendida pela Fiesp, ele inverte o foco do problema: “O esquema de terceirização é péssimo para o país e só beneficia uma camada microscópica de empresários que faz desse tipo de esquema um sucedâneo daquilo que ele deveria estar fazendo de fato, que é investir em tecnologia, desenvolvimento, inovação da base técnica, coisa que ele não faz. O empresariado brasileiro é de retaguarda. Ele gosta mesmo é do bom e velho esquema de despotismo empresarial, ou seja, flexibilizar jornada, rebaixar salários, reduzir custos atacando direitos. É um comportamento do senhor de escravo”. E conclui: “A terceirização de atividade-meio já foi uma enorme derrota. E agora a gente está na iminência de ter a CLT totalmente rasgada pela queda dessa última barreira. Eu me vejo numa situação absolutamente desconfortável e esdrúxula de ter que defender a súmula do TST porque a gente está sob um ataque dos empresários. Eu queria estar debatendo o fim das terceirizações e não sua universalização”.

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