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Ensino médio subtraído

Proposta de reforma do ensino médio revolta professores, estudiosos da educação e estudantes. Temor é de que mudança, ao contrário do que promete o governo, resulte numa formação rebaixada para a maior parte dos jovens com o engessamento do currículo e da escola
André Antunes e Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 09/11/2016 11h47 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Secundaristas protestam contra a reforma do Ensino Médio na Avenida Paulista Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

O dia 22 de setembro de 2016 pode ficar para a história da educação brasileira como o dia em que mais uma reformulação profunda foi imposta ao ensino médio. Por meio de uma medida provisória, a MP 746, o governo Temer quis dar uma nova cara à última etapa da educação básica com a promessa de uma formação mais atrativa e flexível para a juventude. O que estava sendo vendido como gato, no entanto, foi rapidamente denunciado como lebre, e a reação foi imediata. Dezenas de entidades e pesquisadores da educação se pronunciaram nos momentos seguintes contra o que consideram um enorme retrocesso e, algumas semanas depois, estudantes começaram a ocupar escolas em todo o país denunciando não só a medida, como também a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que congela por 20 anos os investimentos do governo federal, e que também afeta significativamente a educação (Leia mais na página 20). Durante o fechamento desta edição, enquanto a MP 746 tramita em uma comissão especial no Congresso, mais de mil escolas permanecem ocupadas em todo o país e várias entidades continuam mobilizadas contra a medida.

O conteúdo da reforma, no entanto, não é exatamente uma surpresa: há três anos tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei com o mesmo tema (PL 6840/2013), de autoria do deputado Reginaldo Lopes (PT-MG), que já foi aprovado em uma comissão especial e aguarda apreciação do plenário. A MP atropela o PL exatamente com a justificativa da demora na votação. “Se você quiser fazer uma mudança que gere efeito, isso é como uma roda gigante muito grande, demora para dar uma volta, imagina dar duas, três voltas como a gente precisa. Se deixa para aprovar essa lei em 2019, você começa a aplicar isso em 2021. Para fazer essa roda gigante girar, você precisa acelerar esse processo de definição. E é isso que a Medida Provisória traz”, justifica o Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), Rossieli Soares. A MP precisa ser aprovada no Congresso até o dia 2 de março de 2017 para que vire lei, caso contrário, perde a eficácia.

Apontando a existência de 1,7 milhão de jovens fora da escola, o secretário afirma que a MP teve o mérito de fomentar a discussão. “O impressionante é que agora absolutamente todo mundo no Brasil debate graças à existência da Medida Provisória, porque senão ia continuar sendo aquela discussão de quando sai o resultado [do Ideb]: todo mundo fala que está ruim e ninguém faz nada”, sustenta Rossieli.

Os estudantes, em nome dos quais o governo diz estar fazendo a reforma, vêm, no entanto, discordando do conteúdo e do método do governo. “A gente diz há muito tempo que o ensino médio precisa de uma reforma, mas está longe de ser a reforma proposta pelo governo”, critica Bia Martins, estudante da Escola Técnica Ferreira Viana, da rede Faetec, no Rio de Janeiro, e tesoureira da Federação Nacional dos Estudantes das Escolas Técnicas (Fenet), entidade que está ajudando a organizar as ocupações contra a MP 746. Bia define quais seriam as mudanças desejadas pelos jovens que participam do movimento. “Não queremos redução de matérias. A principal mudança que precisávamos é da didática. A escola é considerada um espaço chato porque a gente não consegue ter maneiras mais interativas para aprender. É possível aprender matemática com música, aprender biologia estudando as condições do nosso corpo, com muito mais interação do que temos hoje. Achamos que isso deveria ser o foco de uma reforma, além de mais investimento para construção de laboratórios, valorização dos professores”, defende.

Para o professor Paulo Carrano, coordenador do Observatório Jovem do Rio de Janeiro, grupo de pesquisa vinculado à Universidade Federal Fluminense (UFF), e primeiro secretário da Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), o discurso do MEC de que nada tem sido feito para melhorar o ensino médio no Brasil simplifica a realidade da educação. Carrano acredita que as soluções apresentadas na reforma desconsideram as mensagens que os estudantes têm passado. “Esse discurso é ofensivo àquele professor que acorda todo dia para fazer alguma coisa para melhorar a educação no Brasil, com as condições que o Estado oferece a ele, que são muito precárias. É uma falta de respeito também com os jovens que, durante todo o ano passado e boa parte deste ano, se organizaram em ocupações para reagir a medidas autoritárias, tais como essa, para apontar coletivamente, de maneira dialógica, e não sem criar conflito, caminhos para a educação”, critica. O professor demonstra as contradições entre a reforma atual e as bandeiras levantadas pelos jovens nas recentes mobilizações. “Eles falaram: ‘nós não somos páginas em branco, somos sujeitos de experiências, de valor e de saberes’. O governo federal praticamente ignorou todo esse protagonismo dos estudantes e começou a falar por eles. Essa é outra usurpação que essa medida provisória faz, que é se arrogar da prepotência de dizer o que é melhor para os jovens”, aponta.


Liberdade de escolha?

Ao apresentar a MP 746, o governo recorreu a um diagnóstico bastante conhecido: o alto índice de abandono dos estudos no Ensino Médio e o baixo desempenho dos estudantes no Ideb (Índice de Desempenho da Educação Básica) que mede, por meio de provas de português e matemática, o quanto eles apreenderam nessa etapa de ensino. Segundo os dados do próprio governo no texto de justificativa da MP, de 2005 a 2011, o Ideb no ensino médio cresceu 8% mas, de 2011 até 2015, ficou estagnado em 3,7, quando a meta estabelecida pelo governo era atingir 4,3.

Diante do quadro, a solução apresentada consiste em tornar obrigatórias nos três anos do ensino médio apenas as disciplinas de português e matemática, em consonância com a tentativa de melhoria nos resultados do Ideb. O ensino da língua inglesa também é obrigatório, mas não em todos os anos. Todos os outros conteúdos comuns a esta etapa de ensino ficariam a cargo da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que, no entanto, ainda não está definida. Embora não se saiba como será essa Base, já está certo pela MP que ela deve caber em no máximo 1.200 horas, ou seja, metade da carga horária total do ensino médio, que atualmente é de 2.400 horas. O que os estudantes farão na outra metade da formação? Aí é que entram o que a MP chama de itinerários formativos. Pelo texto, o estudante poderá escolher entre cinco áreas: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. Segundo o MEC, essa flexibilidade dará liberdade de escolha para os estudantes. Mas é exatamente neste ponto que a MP mostra uma das suas muitas contradições: a oferta de todos esses itinerários pela mesma escola não está garantida. O texto fala apenas que os sistemas de ensino poderão compor os seus currículos com base em mais de uma área, o que significa, na prática, que pode haver escolas nas quais os estudantes só vão ter uma opção. “Da maneira como está feito, não são os jovens que vão escolher o leque formativo, são os estados que vão oferecer dentro das suas conveniências e capacidades. É como se eu fosse a um restaurante, e o restaurante me apresentasse um cardápio de uma única folha dizendo: o prato executivo é esse. Quando muito, dois pratos”, alerta Paulo Carrano.

Em um cenário de aprovação da MP 746, com a limitação de 1.200 horas para a BNCC, o itinerário formativo ocupará, portanto, metade ou mais da formação dos estudantes. Isso tendo em vista ainda que uma das primeiras alterações trazidas pela MP é exatamente o aumento progressivo da carga horária mínima anual dessa etapa de ensino, que passaria das atuais 800 horas para 1.400 horas, o que equivaleria a 4.200 horas para os três anos do ensino médio. A mudança, segundo o governo, visa atender as metas definidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece um aumento das escolas de tempo integral no ensino médio de forma a atingir 25% dos alunos até 2024. Por isso, ao anunciar a reforma, o governo apresentou também um programa de fomento às escolas de tempo integral, regulado pela portaria 1.145, do último dia 10 de outubro.

A MP modifica também outros pontos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) ao tornar, por exemplo, os conteúdos de artes e educação física obrigatórios apenas na educação infantil e ensino fundamental, e retirar ainda a obrigatoriedade da oferta de filosofia e sociologia no ensino médio. Diante da polêmica gerada pelas mudanças, o governo garantiu publicamente que esses conteúdos vão estar presentes na carga horária destinada à BNCC. Mas, interrompido com a chegada do então presidente interino Michel Temer, o processo de definição final da Base ainda é uma incógnita. 

A professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Marise Ramos considera que, sob o discurso de dar mais liberdade para os estudantes, a MP esconde uma redução da formação. “A maldade, digamos assim, desta reforma é que ela reduz drasticamente o que podem ser os interesses da juventude, inclusive sem ouvir a comunidade educacional e os próprios estudantes. Sabe o que eles dizem na MP que são os interesses do jovem? Ter uma formação mínima. A síntese dessa medida é uma formação precária, que vai se tornar realidade, principalmente, para os filhos da classe trabalhadora”, alerta, acrescentando que as escolas estaduais, onde estudam os mais pobres, serão as mais prejudicadas com a reforma. “Uma escola de elite pode tranquilamente optar por oferecer todos os itinerários e fazer arranjos que permitam o aprofundamento da formação geral, até porque essas escolas não têm problemas de espaço físico e nem de falta de professor. São as escolas dos sistemas públicos que vão fazer efetivamente a redução. Então, você tem reiterada e legalizada uma dualidade por dentro do sistema de ensino”, destaca.

Fábio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil


Formação dual

Ao incluir entre os chamados itinerários formativos a formação técnica e profissional, a MP retoma a possibilidade de o ensino técnico estar dentro da carga horária dedicada ao ensino médio. Para Marise, a MP traz de volta uma concepção bastante combatida na educação: de uma formação fragmentada e dual. “O parágrafo 2º do Artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que foi revogado por essa MP, dava uma especificidade ao ensino médio com a formação profissional, mas essa possibilidade tinha como preceito assegurar a formação geral, pois a formação profissional só podia acontecer mediante acréscimo da carga horária. Então, as 2.400 horas hoje regulamentadas são de formação básica, e sob o princípio de uma formação unitária”, explica. Segundo Marise, a reforma retoma leis das décadas de 1960 e 1970 que impunham a fragmentação da formação. “Agora, simultaneamente o governo consegue trazer o que tem de pior em duas leis passadas: a 4.024, de 1961, porque restringe a formação dos estudantes nas áreas específicas, a exemplo do que foi o científico e o técnico profissional, e ressuscita a 5.692, de 1971, numa lógica de um currículo de 50% para formação geral e 50% para formação técnica”, alerta.

A falta dos conteúdos gerais seria, então, ainda mais perceptível no caso dos estudantes que cursarem o itinerário da formação técnica. Assim, uma das preocupações é que isso aprofunde o funil que já existe para o acesso à universidade, agora com um efeito anterior: a negação, no ensino médio, dos conhecimentos necessários para que os jovens mais pobres possam ter boas notas no Enem e nos vestibulares. “A preocupação do governo não é colocar ninguém na universidade, é botar no ensino técnico e jogar no mercado de trabalho para apanhar, porque o técnico que está sendo proposto é muito superficial, então o cara ainda vai entrar no mercado de trabalho sem saber nada”, preocupa-se Bia Martins, da Fenet. “Precisamos de um ensino médio que garanta as condições de estarmos na universidade ou de sermos técnicos bons o suficiente, o que hoje já não é a realidade”, complementa a estudante.

A justificativa do MEC para a inclusão do ensino técnico como itinerário formativo reforça a percepção da Fenet de que não é preocupação do governo ampliar o acesso dos jovens à universidade. “O ensino médio tem que dar opções para os estudantes que também não querem seguir para o nível superior. Apenas 16% ou 17% dos jovens vão para a universidade. Quase 50% dos alunos nem se inscrevem para participar disso”, afirma Rossieli. Mas a reforma proposta não naturaliza esse quadro, uma vez que boa parte dos jovens hoje sequer enxerga a universidade como horizonte? Para o secretário, é uma questão de capacidade de oferta: “Nós temos uma limitação cívica, o Plano Nacional de Educação define um limitador de alcançar esse percentual de 33% em 2024. E os outros 67%, farão o quê? Então se a gente chegar a esse mundo de 2024 buscando alcançar essa meta, o que a gente faz com os outros jovens, que resposta a gente está dando, que equidade é essa que eu estou [promovendo] ao dizer para os alunos que eles precisam seguir esse caminho? Ora, você não é obrigado, tem muitos alunos que querem buscar ensino técnico”, defende. Segundo Rossieli, o número de estudantes de cursos técnicos aprovados no vestibular é “elevadíssimo”, o que derrubaria o argumento de que, ao escolherem o itinerário da formação profissional, esses jovens teriam suas chances de entrada na universidade reduzidas. Entretanto, os aprovados a que ele se refere são egressos dos cursos técnicos oferecidos pelas regras atuais, anteriores à MP, nos quais não há redução dos conteúdos gerais, mas sim a formação profissional de forma integrada ou concomitante, com ampliação da carga horária. O melhor exemplo são os cursos oferecidos pelos Institutos Federais de Educação Profissional, Científica e Tecnológica ou da própria EPSJV/Fiocruz (Leia mais na página 15) que, inclusive, costumam ter notas altas no Enem. Sobre isso, o Secretário de Educação Básica diz apenas que o modelo do ensino médio integrado à educação profissional “não é replicável para todo o Brasil”.

De fato, oferecer aos estudantes um ensino médio de qualidade demanda investimento.  A reitora do Instituto Federal Catarinense, Sônia Regina de Souza, descreve as condições oferecidas na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, responsável por 12% das matrículas de ensino médio integrado à educação profissional no país. “Nossos professores na sua maioria têm 40 horas com dedicação exclusiva, têm tempo para planejamento, pesquisa, extensão, têm condições de trabalho. Na sua maioria, os institutos têm laboratórios e toda uma infraestrutura”, detalha. De acordo com a reitora, a evasão, “ uma das justificativas do governo para apresentar a MP”, é significativamente menor nos Institutos em comparação com as escolas das redes estaduais. “A evasão é menor justamente pelas condições que nós temos. Hoje os estudantes da rede federal têm assistência estudantil, alimentação, transporte, material didático, bolsa de pesquisa, bolsa de extensão, e isso faz com que eles não se evadam, que não precisem ir trabalhar e consigam se dedicar aos estudos. Esse é um diferencial, e nós queremos que se constitua para todas as redes,  não apenas a federal”, afirma.

O Conselho Nacional das Instituições da Rede Nacional de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), que reúne os reitores dos institutos, também divulgou uma carta se posicionando contra a MP 746, criticando o que chamou de retrocesso na formação integral dos jovens e repudiando a possibilidade aberta pela medida de reconhecimento a profissionais com “notório saber” para o exercício da docência, o que, na opinião do conselho, precariza as relações de trabalho e a formação dos estudantes. Segundo Sônia, o Conif também tem preocupação com o futuro da educação profissional articulada com o ensino médio, já que a portaria ignora esse formato. “Caso nós tenhamos que aderir a esse modelo da medida provisória, vai ser um retrocesso muito grande para a história da educação profissional, [a perda de uma] conquista recente, porque se deixa de ter essa formação integrada, que é diferente de formação de tempo integral”, reforça. Sobre essa preocupação, o representante do MEC assegurou que as modalidades de educação profissional concomitante, subsequente e integrada ao ensino médio, conforme previsto na LDB, vão continuar existindo. De acordo com Rossieli, a reforma apenas acrescenta mais uma opção.


Cardápio condicionado à estrutura

A atual realidade das escolas estaduais, que convivem com a falta de professores e de estrutura, é um ingrediente a mais no caldo de preocupação com a aplicação da reforma. Até mesmo o Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Educação (Consed), um dos principais apoiadores da reforma, reconhece que as escolas estaduais não estão preparadas para oferecer todos os itinerários formativos. “Realmente se você for implantar isso no ano que vem, não teria possibilidade. Aí eu concordo que a desigualdade seria violenta. Então, para que uma rede consiga oferecer um ensino médio com esse nível de flexibilização precisa de organização, planejamento, alocação de professor, infraestrutura. Não é uma coisa tão simples que vai se resolver em seis meses, é um debate profundo”, admite o diretor institucional do Conselho, Antônio Neto. Entretanto, a preocupação, segundo ele, não é motivo para desacreditar na reforma. Antônio afirma que a MP 746 traz muitas questões que o Consed apresentou e discutiu em 2015 e 2016 no contexto do debate trazido pelo PL 6840. “Não vai ser tudo ao mesmo tempo e tem que ser a partir do fôlego de cada rede e de cada estrutura. Então, é uma mudança de paradigma que vai mudar toda a estrutura de educação básica, inclusive de como as formações são realizadas nas universidades em relação ao papel do professor na escola”, acrescenta.

De acordo com o MEC, o cenário mais provável é que a reforma não se efetive nos próximos dois anos já que as mudanças dependem da aprovação da BNCC pelo Conselho Nacional de Educação, o que possibilitaria aos estados se organizarem para atender as mudanças. No entanto, segundo o Secretário de Educação Básica, “alguns estados já estão se organizando para ter modelos funcionando com a flexibilidade” em 2017 e 2018. Por enquanto os únicos valores anunciados pelo MEC para ajudar as redes a se adequarem ao novo formato foram os do fomento à ampliação das escolas de tempo integral: R$ 2 mil por aluno ao ano, que devem ser repassados por um período de quatro anos. A portaria limita, no entanto, a quantidade de escolas por estado que podem aderir ao programa. No total, apenas 572 das mais de 20 mil escolas brasileiras vão poder se candidatar.

Chama atenção ao final do documento um artigo que afirma que a “qualquer tempo, a presente portaria poderá ser revogada ou anulada, no todo ou em parte, seja por decisão unilateral do MEC, seja por motivo de interesse público ou exigência legal, em decisão fundamentada, sem que isso implique direito à indenização ou à reclamação de qualquer natureza”. Para Marise Ramos, o artigo denuncia a fragilidade da política. “É um instrumento que já surge anunciando que pode deixar de existir. O que pode ser exigência legal? A MP não ser aprovada, por exemplo? Então, a portaria perde os efeitos porque aquilo que lhe dá sustentação deixou de existir. Quando o artigo fala em decisão unilateral do MEC, a percepção é de que isso tem a ver com a PEC 241”, aponta.

O MEC afirma que a inclusão do artigo na portaria é de praxe. Questionado se já há previsão orçamentária para essas escolas em 2017, Rossieli garantiu que sim e que a aprovação da PEC 241, que limita os gastos do governo federal, não é uma preocupação. Segundo a interpretação do secretário, o limite de gastos do governo não impede o crescimento dos recursos para a educação e a saúde. “Sobre ter a continuidade de programas A, B e C, eu acho que é responsabilidade do governo sempre fazer as avaliações necessárias, ver se ele está tendo a eficácia e a eficiência necessária para se manter. E se este projeto tiver algum problema a gente precisa corrigir. Isso faz parte da condução da política”. Como você lerá na reportagem sobre a PEC nesta revista (pág. 20), especialistas discordam dessa avaliação.

Os secretários estaduais de educação também não parecem muito seguros. “Nós até apresentamos um posicionamento ao MEC dizendo da nossa preocupação com o financiamento para a educação, porque uma vez que você cria um teto, você desvincula as despesas e, por incrível que pareça, pode ter uma redução desses recursos mesmo em uma situação em que haja crescimento econômico e inflação baixa.”, afirma Antônio Neto.


Flexibilidade ou engessamento?

Completamente na contramão da argumentação do MEC de que as mudanças vão representar mais flexibilidade, o professor aposentado do Cefet Rio e ex-diretor de concepções e orientações curriculares para a educação básica do MEC, Carlos Artexes, afirma que a MP engessa a escola. “A medida provisória é inflexível, provoca uma obrigatoriedade, uma prescrição de a pessoa escolher uma ênfase”, afirma.

Artexes explica que a LDB não define carga horária para nenhum conteúdo e não amarra a organização curricular em forma de disciplinas. A LDB não exige também que as escolas se organizem por séries, por exemplo. Ou seja, os sistemas de ensino já poderiam, mesmo sem a aprovação da MP, experimentar novos formatos para ministrar os conteúdos, inclusive abrindo opções de itinerários para os estudantes. Com exceção das disciplinas de sociologia e filosofia, incluídas no currículo pela lei 11.684, de 2008 e agora retiradas pela MP, sobre todos os outros conteúdos a lei não diz como devem ser ofertados, o que faz com que caia por terra também a argumentação de que o currículo do ensino médio é muito inchado por ter 13 disciplinas obrigatórias. “A lei brasileira para o ensino médio obriga, sim, que as escolas ofereçam vários conteúdos curriculares, mas permite que as escolas organizem livremente o currículo de forma diversa. Permite, inclusive, que uma escola não tenha disciplinas, não ofereça todas simultaneamente, tenha currículo seriado ou não, sem definição de cargas horárias, com aulas ou não”, detalha Artexes.

Enquanto ele estava à frente da diretoria de concepções e orientações curriculares para a educação básica, em 2009, o MEC lançou o Programa Ensino Médio Inovador (Proemi) que, exatamente diante da flexibilidade da LDB, visava fomentar inovações nos currículos das escolas. A justificativa para a implementação da proposta era a mesma: alto índice de evasão dos jovens. O modelo, segundo Artexes, dava autonomia para as unidades e não reduzia conteúdos, diferente da situação atual. “O Ensino Médio Inovador estava propondo uma nova forma de as escolas pensarem, independentemente de receberem o recurso ou não. E isso foi pouco compreendido. Então, uma escola, ao ler o documento do Ensino Médio Inovador, percebia que ela poderia fazer alterações, que não estava prisioneira de uma tradição curricular como as pessoas inclusive acham hoje”, diz.


As experimentações mineiras

Um exemplo de como a flexibilidade da lei atual já foi utilizada para promover reformas no ensino médio são as mudanças curriculares colocadas em prática em Minas Gerais. Em 2009, o governo do estado, sob gestão de Antonio Anastasia (PSDB), implementou o que foi chamado de “ênfase curricular por áreas de conhecimento”. À semelhança da MP atual, o modelo também garantia no primeiro ano do ensino médio a oferta de todos os conteúdos, mas a partir do segundo ano, as escolas organizavam os currículos em três áreas: ciências humanas, exatas e biológicas. Em alguns casos, os estudantes podiam optar por uma das áreas, em outros a escolha era feita pela própria escola, a depender do desempenho do aluno. Na prática, boa parte das unidades optou por oferecer apenas uma das áreas. A diferença em relação à atual reforma é que, mesmo com a divisão nas áreas de ênfase, as escolas continuavam obrigadas a ofertar sociologia, filosofia e educação física em todas as séries e também não havia a inclusão da formação técnica como itinerário possível.

A mudança, no entanto, durou pouco. Dois anos depois o próprio governo voltou atrás, pela repercussão negativa da reformulação. Em reportagem do jornal Estado de Minas, do dia 2 de fevereiro de 2012, a então superintendente  de desenvolvimento do ensino médio da Secretaria de Estado da Educação, Audrey Regina Oliveira, reconheceu o fracasso da iniciativa. “Na hora da prova, os alunos não tinham todos os conhecimentos necessários por não terem tido acesso à grade curricular completa no 2º e 3º anos. Quando a ênfase foi criada, esperava-se que a escola optasse pela área do conhecimento depois de ouvir a comunidade. Com isso, a unidade de ensino seria um retrato da vocação da juventude ali inserida. Mas, na prática, isso não ocorreu”, declarou. A mesma reportagem entrevista diversos estudantes que se sentiram prejudicados com a medida e comemoraram o fim do modelo.

Mídia NinjaÀ época professor de uma escola estadual da capital mineira que optou por oferecer a ênfase na área de exatas, o atual Diretor de Ensino Médio da Secretaria Estadual de Educação, Wladimir Coelho, relata as dificuldades enfrentadas com o modelo. “Não foi um processo fácil porque primeiro você tinha que negociar na escola qual área seria beneficiada, e isso implicava uma série de questões a serem discutidas, inclusive debater se esse aluno do ensino médio com 15, 16 anos, já tinha clareza sobre isso. E depois não havia garantia ao estudante de que, ao optar por essa ou aquela área, ele teria um apoio posterior em relação ao Enem, o que sempre gerava muitas dúvidas”, conta. 

Crítico da atual reforma, Wladimir vê pontos de semelhança entre a MP 746 e outra mudança que o governo Anastasia também implementou na educação mineira – o programa chamado Reinventando o Ensino Médio, criado após o governo desistir das “áreas de ênfase” –, que ampliava o tempo de permanência do estudante na escola para oferecer uma disciplina relacionada à empregabilidade. “Nós tínhamos muita dificuldade em organizar o tempo para atender a isso. Você imagina, por exemplo, obrigar  todo estudante, porque não era opcional, a permanecer numa ampliação de carga horária, em um 6º horário. Nós temos que lembrar que há um número muito grande de estudantes no ensino médio que trabalham e esse era um impedimento para que ele ficasse na escola além daquela carga horária que já havia antes. E fora também que no interior havia um problema sério com transporte escolar”, relata, antecipando questões que se aplicam também à MP 746, que amplia progressivamente a carga horária no ensino médio para 1.400 horas anuais.

A coordenadora geral do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (SindUTE), Beatriz Cerqueira, também vê semelhanças entre as políticas para o ensino médio colocadas em prática durante o governo Anastasia e a atual reforma do ensino médio. “São projetos elaborados sem a participação da comunidade escolar, impostos por medida provisória ou por resolução, que reduzem o direito do adolescente a uma educação pública de qualidade, diminuindo ou eliminando a oferta de disciplinas que contribuem para a sua formação”, sustenta.  De acordo com Beatriz, as escolas mineiras tinham sérios problemas de infraestrutura que não foram resolvidos durante a vigência do programa. “Um estudo do Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos] mostrou que 59% das escolas estaduais de Minas não possuíam refeitório; 51% não tinham quadra de esporte coberta; 63% não possuíam laboratório de ciências”, detalha. Para o Sindicato, a MP 746 aprofunda a desigualdade. “Essa MP criminaliza a pobreza. Por que será que só o filho do pobre não terá educação física e outras oportunidades na escola púbica? O filho do desembargador certamente terá aula de idiomas, fará intercâmbios, terá diferentes opções de modalidade de esportes”, critica.


Pernambuco e Goiás: exemplos a seguir?

Desde que a MP foi publicada, pesquisadores têm criticado o que entendem como uma abertura para a privatização das escolas no bojo das propostas do governo federal. Essa linha de argumentação se baseia, em primeiro lugar, no fato de que a MP procura fomentar a adoção do tempo integral ao mesmo tempo em que se promove o congelamento de gastos públicos pelas próximas duas décadas, o que segundo críticos, permite supor que essa ampliação da jornada se daria por meio de parcerias com a iniciativa privada. E em segundo lugar, há movimentações que ocorrem em paralelo à análise da MP pelo Congresso Nacional, notadamente a tramitação de um projeto de lei de autoria do senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que propõe que recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) possam ser repassados para Organizações Sociais (OS) e instituições filantrópicas e comunitárias. Por fim, há o fato de que muitos dos atores envolvidos têm suas trajetórias atravessadas por essa agenda. Exemplo mais significativo é o próprio ministro da Educação, Mendonça Filho, que era vice-governador de Pernambuco na gestão de Jarbas Vasconcelos, que governou o estado de 1999 a 2006. Em 2000, o governo pernambucano foi pioneiro na implementação de um modelo de concessão da gestão de escolas para a iniciativa privada, similar ao que o governador Marconi Perillo pretende implementar em Goiás atualmente. Desenvolvido em parceria com o Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE), fundado pelo então presidente da Phillips no Brasil, Marco Magalhães, o modelo chegou a ser adotado em 13 escolas, segundo o pesquisador da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Jamerson Silva. “Identificamos nessa proposta um distanciamento do que a legislação educacional diz com relação a uma gestão democrática da escola e ao trato com o professor, com uma tendência à precarização dos contratos e à intensificação do trabalho. Houve inclusive a proibição de que os professores vinculados a essas escolas se sindicalizassem”, revela. Segundo o pesquisador, o modelo de concessão implicou também uma interferência do ponto de vista pedagógico. “Houve ampliação da jornada para o tempo integral, mas os currículos foram reformulados e os professores preparados para uma aplicação instrumental da matemática e do português visando aos resultados do Ideb. No contraturno, os estudantes em geral faziam aulas de reforço nessas disciplinas e também a preparação para o que eles chamam de protagonismo juvenil, que para nós se aproxima muito da ideia do empreendedorismo”, aponta. Com a renúncia de Jarbas Vasconcelos para concorrer a uma cadeira no Senado, Mendonça Filho assumiu o governo de Pernambuco e concorreu às eleições de 2006 com uma proposta de ampliar as concessões para 50 escolas da rede.

Para Jamerson, o cenário atual, tendo em vista a aprovação da PEC 241 e o perfil dos ocupantes de postos-chave dentro do ministério, aponta para o fomento à adoção de um modelo de concessão da gestão de escolas públicas similar ao que o estado de Pernambuco introduziu quando Mendonça Filho era vice-governador. “A gente tem uma parte significativa dos professores em fase de aposentadoria. Congelados os investimentos públicos e os concursos, como é que a gente vai repor essa massa de professores que vão se aposentar? O modelo de gestão privada vai ser o caminho”, avalia.

Sob o governo de Marconi Perillo (PSDB), o estado de Goiás vem discutindo desde o ano passado a implementação de um modelo que prevê a concessão da gestão de escolas estaduais para Organizações Sociais. A proposta atual prevê a concessão de 23 escolas da rede estadual na cidade de Anápolis. Em outubro, a secretária de Educação do estado, Raquel Teixeira, esteve nos Estados Unidos para conhecer escolas geridas pela iniciativa privada em três cidades americanas, a convite do Banco Mundial.  “Há um interesse grande do setor privado aí”, aponta a professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Amone Alves. “Para o governo interessa essa gestão autocrática da educação, que chamam de gestão compartilhada. Só que ela significa a precarização do trabalho dos professores e da qualidade do ensino, com os recursos pedagógicos sendo instrumentalizados para que os alunos aprendam as matérias que vão cair nos exames nacionais e internacionais, e não tenham a formação humanista que sempre demandamos”. Ela entende que a nomeação de Wisley Pereira, ex-superintendente de ensino médio da Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte de Goiás (Seduce) para ocupar o mesmo cargo na Secretaria de Educação Básica do MEC não foi por acaso, e sim um indício de que o governo federal pretende consagrar as parcerias público-privadas como estratégia a ser adotada pelos estados. “Infelizmente não vejo outro cenário possível. As práticas privatizantes são a tônica deste governo”, resume. Segundo Amone, antes de a concessão da gestão para as OS surgir como proposta no estado, já eram comuns em Goiás os convênios com entidades empresariais da educação, como Instituto Unibanco, Instituto Ayrton Senna e a Fundação Lehmann, para produção de material didático, formação de professores e organização da gestão escolar. E Wisley Pereira teve atuação destacada nesse processo, como coordenador do programa Jovem de Futuro, desenvolvido pelo Instituto Unibanco e implementado em escolas da rede estadual de Goiás. Em 2014, Goiás ficou em primeiro lugar no Ideb, o que acabou legitimando o modelo de parcerias. “Goiás só ficou em primeiro porque 16 estados tiveram uma queda na nota do Ideb em 2014”, ressalta Amone. Para ela, o resultado mascara que as parceiras público-privadas, além de constituírem uma forma de privatização, contribuíram para fomentar um tipo de formação focada principalmente nos exames nacionais de avaliação do ensino médio, com foco no português e na matemática, e que para ela não são capazes de avaliar de fato a qualidade do ensino oferecido na rede pública. “A escola foi invadida por setores empresariais e por uma lógica de mercado, e esqueceu-se da formação dos jovens. Eles estão sendo preparados sobretudo para os exames”, diz Amone, que é crítica à concepção de educação em tempo integral que esse modelo consagra. “Eu visitei escolas em tempo integral que aderiram ao Jovem de Futuro que tinham ido mal no Enem. O que elas faziam? No contraturno, ao invés de aulas de educação física ou outras disciplinas, os alunos ficavam fazendo listas enormes de exercícios como treinamento, e os professores iam corrigindo de um jeito tão monótono que parecia uma técnica de memorização dos jesuítas no século 16. Será que é isso que o jovem de hoje quer?”, questiona.

Valter Campanato/Agência Brasil


Fracasso de algo que não aconteceu
 

Para Carlos Artexes, é importante recorrer à história recente da educação no país para desconstruir a ideia de que o ensino médio fracassou. Ele lembra que a expansão dessa etapa de ensino é recente, da década de 1980, quando o número de matriculados saltou de três para nove milhões. Atualmente, com cerca de dez milhões de matriculados, o ensino médio não é ainda universalizado, já que dos 10,2 milhões de jovens brasileiros de 15 a 17 anos, apenas 5,5 milhões estão nessa etapa de ensino, 1,5 milhão estão fora da escola e 3,2 milhões ainda estão no ensino fundamental. Há, ainda, 20 milhões de adultos com idade acima de 18 anos que não cursaram esse segmento e seriam potenciais estudantes. “Não é possível falar em fracasso no ensino médio simplesmente porque ele nunca aconteceu no Brasil. O ensino médio nunca foi um direito consolidado”, afirma.
O professor salienta que além do tempo relativamente pequeno para que esta etapa de ensino se organize e se consolide no Brasil, o chamado “fracasso” do ensino médio tem raízes também na forma como a sociedade se organiza. “O Brasil tem ainda na sua cultura a ideia de que talvez tenham grupos de pessoas que não precisam estudar, não precisam se formar, principalmente na dimensão da perspectiva da formação humana”, aponta. Nesse sentido, para Artexes, o diagnóstico divulgado pelo governo para legitimar a reforma, ainda que tenha elementos verdadeiros, é frágil.  “A sociedade brasileira está tendo acesso a um diagnóstico no mínimo incompleto do ensino médio. E o mais grave é criar uma expectativa, uma falsa promessa. É como se essa medida fosse capaz de salvar o ensino médio brasileiro. Mas ela não tem as condições básicas para mudar essa realidade”, alerta.

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