Movimentos indígenas e quilombolas estão em alerta contra possíveis retrocessos nos seus direitos territoriais. Na próxima quarta-feira (16/08) está previsto para acontecer no Supremo Tribunal Federal (STF) o julgamento de várias ações que podem trazer consequências para a demarcação de terras destas populações. Lideranças temem que uma decisão desfavorável signifique a inviabilização de processos de demarcação que ainda estão em aberto e, até mesmo, a revisão de processos já finalizados. O receio é de que o julgamento signifique a generalização do controverso parâmetro do marco temporal nas decisões da Justiça, que estipula que sejam reconhecidos somente os territórios cujas populações comprovarem sua presença em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal – que garante a esses povos a posse sobre seus territórios tradicionais.
Diante desse quadro, indígenas e quilombolas estão mobilizados para tentar sensibilizar os ministros do STF para o julgamento. Na quarta-feira (09/08), Dia Internacional dos Povos Indígenas, milhares de índios saíram às ruas de cidades como Fortaleza, São Paulo, Rio de Janeiro, Boa Vista, Manaus e Brasília para se manifestar contra o marco temporal e outros ataques aos seus direitos. As manifestações integraram a campanha ‘Nossa história não começa em 1988! #MarcoTemporalNão!’, capitaneada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Já a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) lançou a campanha ‘O Brasil é quilombola, nenhum quilombo a menos’ que traz vídeos alertando para a possível repercussão do julgamento do dia 16 e uma petição online que já conta com quase 60 mil assinaturas.
O que está em jogo
O julgamento está marcado para começar pela manhã, com a análise, pelo plenário do STF, de três ações que envolvem disputas sobre territórios indígenas. A Ação Cível Originária (ACO) 362 e a ACO 366 foram ajuizadas na década de 1980 pelo estado do Mato Grosso, que cobra da União o pagamento de indenização sobre terras desapropriadas, respectivamente, para a criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, e para a demarcação de terras indígenas dos povos Nambikwara e Pareci. Na ação, o estado argumenta que as terras não eram de ocupação tradicional dos povos indígenas. Posição contrária a da Procuradoria Geral da União (PGR), que apresentou pareceres defendendo a tradicionalidade da ocupação indígena nos territórios e a improcedência das ações movidas por Mato Grosso. Já a ACO 469 foi movida no início da década de 1990 pela Funai, a Fundação nacional do Índio, que pede ao STF a anulação de títulos de propriedade de posseiros que ocupam áreas da Terra Indígena de Ventarra, no Rio Grande do Sul.
De acordo com o assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto, o debate sobre a tradicionalidade da posse da terra perpassa as três ações, colocando em foco a disputa jurídica sobre a validade da tese do marco temporal como parâmetro nos processos de demarcação. Segundo o advogado, o marco temporal tem sido utilizado por vários ministros da segunda turma do STF no julgamento de disputas sobre territórios indígenas. Demarcações já chegaram a ser anuladas com base nesse argumento, como no caso do território reivindicado pelos Guirarocá, no Mato Grosso do Sul, em 2014.
A novidade do julgamento da próxima quarta-feira é que as ações serão julgados pelo plenário do STF, o que segundo Modesto confere mais peso à decisão. “As turmas do STF tem que ceder às decisões que saem do pleno, que é quem cria jurisprudência que será aplicada nos casos similares dali pra frente”, explica. Segundo o advogado, o STF até o momento não definiu qual é a jurisprudência com relação à demarcação de terras, havendo disputa sobre os critérios utilizados em cada julgamento. “Nossa grande preocupação é que o Supremo ceda à chantagem do setor ruralista e estenda o marco temporal, tornando-o uma jurisprudência que se aplique imediatamente para outros casos”, alerta Modesto.
Ele explica que uma das ações que serão julgadas na quarta-feira é emblemática dos problemas com a aplicação do marco temporal. O caso da Terra Indígena de Ventarra é o que, segundo o advogado, apresenta o maior risco de ser julgado com base na tese que reconhece como de posse tradicional indígena apenas os territórios ocupados por essas populações em 5 de outubro de 1988. “Os índios não estavam lá em 1988, tomaram posse apenas no início da década de 1990. E por que eles não estavam lá? Porque eles foram esbulhados pelo Estado brasileiro em 1962 para a liberação de áreas para exploração comercial”, revela Modesto, que explica que essa foi uma prática bastante comum durante a ditadura civil-militar, cujos governos autoritários impuseram no campo um projeto de desenvolvimento baseado no latifúndio e no agronegócio.
“Nesse período muitos territórios tradicionais, ocupados há anos pelos índios, foram cedidos para fazendeiros. Os índios foram colocados em caminhões e levados para pequenas áreas, que chamavam de reservas. Colocavam uma grande quantidade de pessoas em uma área pequena, inclusive clãs inimigos, o que até hoje reflete nas situações de violência nas terras indígenas, principalmente entre os Guarani-Kaiowá”, resgata o assessor jurídico do Cimi. E completa: “Mas os índios nunca perderam o ânimo de voltar a fazer parte de seus territórios. A partir de 1988 eles começaram a voltar para suas terras, fazer retomadas”. No caso de Ventarra isso ocorreu no início da década de 1990, pouco depois da promulgação da Carta Magna, quando a Funai demarcou os cerca de 700 hectares da terra indígena. “Isso nos faz entender porque eles não estavam na terra 1988: porque tinham sido expulsos. Se o STF aplicar o marco temporal no caso de Ventarra os índios vão perder o direito à posse”, alerta.
Contradições do marco temporal
Os movimentos indigenistas temem que um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) assinado pelo presidente Michel Temer no dia 19 de julho influencie a decisão do STF em favor da adoção do marco temporal. O parecer determina que todos os órgãos da administração federal deverão observar, nos processos de demarcação de terras indígenas, condicionantes estabelecidas pelo STF no julgamento do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Em 2007, o Supremo determinou a desocupação da área, demarcada como TI em 1996, pelos seus habitantes não indígenas, que incluíam criadores de gado e produtores de arroz. Na decisão, os ministros adotaram pela primeira vez no âmbito do STF a tese do marco temporal restringindo, no entanto, sua aplicação àquele caso específico.
Além disso, estabeleceram também a proibição da ampliação de áreas com processos de demarcação já concluídos. As condicionantes foram consideradas grandes retrocessos por movimentos indígenas e organizações indigenistas. “Esse parecer da AGU é uma barbaridade, uma clara negociação do governo Temer com os ruralistas no Congresso para garantir sua permanência. É uma tentativa de pressionar o STF para que ele sedimente a aplicação do marco temporal”, opina Rafael Modesto, que argumenta que a tese não foi aplicada nem mesmo no caso Raposa Serra do Sol. Segundo ele, várias áreas da reserva ocupadas por fazendeiros nas quais a presença dos indígenas em outubro de 1988 não pôde ser comprovada tiveram seus títulos anulados pelo STF, inclusive uma fazenda, a Guanabara, cujos proprietários apresentaram títulos datados de 1918. “É muito contraditória a presença do marco temporal nesse processo. E se ele não foi aplicado nem mesmo no caso em que surgiu a tese do marco temporal não pode ser estendido para outros casos para atender a interesses políticos e econômicos”, contesta.
E completa: “O Supremo tem nas mãos a oportunidade de garantir o direito dos povos indígenas e rechaçar essa tese inconstitucional e anti-indígena do marco temporal, que não tem respaldo em lugar nenhum, nem na legislação, nem na Constituição Federal; não tem respaldo nos precedentes do STF e não tem respaldo no caso Raposa Serra do Sol, onde os ruralistas se baseiam”.
Territórios quilombolas sob ameaça
Na quarta-feira à tarde, os olhares se voltam para a questão quilombola. A partir das 14hs, os ministros do Supremo julgam uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) movida pelo antigo PFL, atual Democratas (DEM), contra o decreto 4.887/2003, que regulamenta o processo de demarcação dos territórios quilombolas. A ADIn 3.239 questiona, por exemplo, a prerrogativa de as comunidades se autodefinirem como quilombolas e defende a impossibilidade de um decreto regulamentar uma norma constitucional, nesse caso o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que garante aos remanescentes de quilombos o reconhecimento da propriedade definitiva e a titularidade das terras ocupadas por eles.
“Caindo o decreto cai toda a política de regularização dos territórios quilombolas, assim como também todos os processos de políticas públicas com relação aos territórios quilombolas porque a gente só conseguiu acessar políticas públicas mediante o decreto, que foi o que possibilitou a criação do programa Brasil Quilombola, que responde por todas as demandas das políticas públicas dos territórios”, ressalta Denildo Rodrigues, da Conaq. Segundo ele, o país tem hoje cerca de cinco mil comunidades que se identificam como quilombolas, mas apenas 200 têm os processos de titulação de suas terras finalizados.
Iniciado em 2012, o julgamento já conta com dois votos: um em favor da inconstitucionalidade do decreto, feito pelo ex-ministro Cezar Peluso, e um voto da ministra Rosa Weber a favor da improcedência da ADIn 3.239, proferido em março de 2015. Em sua arguição, a ministra alegou que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002, estabelece que nenhum Estado tem o direito de negar a identidade de um povo indígena ou tribal que se reconheça como tal. O próximo a votar será o ministro Dias Toffoli, que pediu vista na última sessão de julgamento.
“A ADIn vem atacar justamente um direito que é respaldado por vários dispositivos internacionais”, garante a antropóloga Raquel Mombelli, coordenadora do Comitê Quilombos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), instituição que em nota defendeu a constitucionalidade do decreto 4.887, caracterizado como uma das conquistas mais significativas para a efetivação de direitos da população negra e quilombola do país. “Mas a gente também pode entender essa ADIn enquanto uma disputa de projetos em jogo na sociedade brasileira. Uma defesa da propriedade privada de um lado, e de interesses econômicos, com projetos muito vinculados ao agronegócio, e do outro lado as comunidades quilombolas e tradicionais, com uma perspectiva de uso comum desses territórios e de interação com o meio ambiente completamente diferente”, avalia.
Assim como sobre a questão da demarcação das terras indígenas, paira sobre o julgamento a ameaça representada pela tese do marco temporal. Segundo Raquel, mesmo em seu voto favorável à constitucionalidade do decreto 4.887, a ministra Rosa Weber sinalizou uma defesa do marco da promulgação da Constituição de 1988 como linha de corte nos processos de demarcação. “Esse é um processo limitador e excludente de acesso ao direito porque o que a gente vê na questão quilombola é que muitas comunidades perderam absolutamente a totalidade das terras originalmente ocupadas. Elas se encontram fora de seus territórios de origem e isso aconteceu muito antes de 1988”, argumenta a professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Para Denildo Rodrigues, a instituição do marco temporal pelo STF seria “abominável”. “Na questão quilombola, a primeira vez que foi resguardado o direito à terra foi na Constituição de 1988. Um direito não pode nascer e morrer no mesmo dia”, constata, e completa: “A gente tem defendido que é preciso manter a constitucionalidade do decreto sem nenhuma condicionante, inclusive condicionante que versa sobre a questão do marco temporal”.
Dívida histórica
Assim como aconteceu com os índios, as populações quilombolas também sofreram com a espoliação patrocinada pelo Estado brasileiro ao longo de sua história. “Há um processo histórico de não reconhecimento das populações quilombolas pelo Estado. Temos pesquisas que apontam para registros de comunidades que detinham terras de forma coletiva, terras que estavam ocupando já há muitos anos, mas que nunca foram registradas legalmente porque a legislação não permitia. Mesmo aquelas que tinham testamentos lavrados em cartório não foram reconhecidas pelo Estado. Houve a produção de outros mecanismos jurídicos que pudessem transformar essas terras de uso comum em propriedades privadas”, explica Raquel, que acrescenta que esse processo se acirrou durante a ditadura civil-militar. “Houve muito abuso do Estado, principalmente nos anos 1970, com a imposição de projetos de desenvolvimento, que entraram nessas comunidades e forçaram deslocamentos de famílias, de grupos sociais. Foi um processo bastante violento, de coerção, de retirada dessas terras”, aponta.
Mesmo após a Constituição de 1988, a primeira a garantir direitos territoriais para essas populações, diz Raquel, a morosidade foi a marca dos processos de demarcação. Segundo a antropóloga, somente pouco mais de 2% das comunidades em processo de reconhecimento receberam do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a titulação de suas terras. “Algumas estimativas avaliam que nesse ritmo o Incra vai levar mais de 600 anos para cumprir com todos os processos de titulação no país, que atualmente estão paralisados. Estamos diante de um quadro extremamente moroso e que negligencia a luta histórica da população negra pela sua terra”, diz Raquel, que espera que a decisão do dia 16 no STF venha contribuir para a reversão desse quadro. “Acredito que o Supremo vai fortalecer o processo democrático no Brasil revogando a ADIn 3.239. E vai fortalecer esses direitos que precisam ser realmente efetivados. Já passou da hora”.