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Papel da gestão municipal no controle de desastres

Especialistas alertam que eventos extremos, que derivam principalmente das mudanças climáticas, são um desafio do presente que, além de ações globais, requerem um enfrentamento no nível local
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 16/09/2024 11h24 - Atualizado em 16/09/2024 12h10
Foto: Bruno Peres/ABr

Os prefeitos que hoje governam os mais de 5 mil municípios brasileiros foram eleitos em 2020. “Praticamente na década anterior”, realça Regina Alvalá, vice-presidente do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, o Cemaden. Claro que o intervalo entre um pleito e outro não mudou – e é por isso que, em outubro deste ano, você vai voltar às urnas para escolher vereadores e o próximo gestor da sua cidade. Mas, quando o assunto são os efeitos concretos das mudanças climáticas, a percepção de muitos especialistas é que o tempo, de fato, acelerou. “Até a década anterior, a gente destacava muito: ‘Olha, os eventos extremos vão ficar mais intensos, os eventos climáticos vão ficar mais frequentes’. Mas a conjugação do verbo sempre parecia que era para o futuro. E, neste momento, [os eventos extremos] não vão ficar: eles já ficaram”, alerta Alvalá, que completa: “Os gestores das cidades precisarão colocar no rol de prioridade as questões ambientais. Se for colocar numa lista os dez itens prioritários com que os governantes precisarão lidar, certamente as questões ambientais e climáticas precisam estar no top três”.

Os números não deixam dúvidas: num intervalo de pouco mais de 20 anos, entre 1991 e 2012, foram registrados no Brasil 38.996 desastres, que atingiram mais de 126 milhões de pessoas, de acordo com o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais. Já nos nove anos seguintes, entre 2013 e 2022, foram mais de 50 mil, segundo estudo da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Além disso, considerando a série histórica do Cemaden, que começou em 2011, 2023 bateu um recorde, com 1.161 desastres, número que considera o monitoramento de apenas 1.038 municípios, que correspondem a 56% da população brasileira. Para se ter uma ideia, dez anos antes, em 2013, esse total não chegava a 300. “Os eventos extremos estão acontecendo com mais frequência e são mais intensos”, garante Alvalá.

Desastres e eventos extremos

Por trás desses números estão tragédias concretas, como as recentes inundações no Rio Grande do Sul e os incêndios em vários locais do Centro-Oeste, que causaram mortes, doenças e migrações forçadas, entre muitos outros efeitos de curto e longo prazo. E, por trás dessas tragédias, está a convergência entre eventos extremos – como as fortes chuvas e as ondas de calor – e cidades despreparadas para resistir a eles. Portanto, esses fenômenos não são sinônimos. “A ameaça é natural, mas o desastre é uma combinação entre suscetibilidade e vulnerabilidade”, explica Regina Alvalá, justificando por que, apesar de a palavra ainda constar na sigla do Cemaden, os especialistas já não restringem os desastres ao seu caráter “natural”. A urbanista Maria Fernanda Lemos, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), completa: “O risco é a combinação entre aquilo que é uma ameaça climática num determinado lugar e as vulnerabilidades desse lugar”.

Para entender o papel da gestão municipal no enfrentamento desse problema, é preciso dividir o cenário em dois: a capacidade de reagir ao desastre do momento em que ele acontece e a necessidade de preparar as cidades para resistir aos desastres futuros

Isso significa que, em paralelo aos esforços (globais) de frear as mudanças climáticas, são necessárias também ações (locais) para adaptar as cidades de modo a prepará-las para essas novas condições. E é exatamente aqui que entra o papel da gestão municipal no enfrentamento desse problema. “Mudanças climáticas [referem-se a] um processo que é global e que se relaciona com uma alteração bastante acentuada do ciclo do clima e das águas. E daí resultam os eventos extremos relacionados a mudanças climáticas e os desastres envolvendo muita ou pouca água, muito frio ou muito calor. Então, obviamente, o enfrentamento das mudanças climáticas exige políticas no âmbito global. Mas, ao mesmo tempo, não há como não olhar simultaneamente para os processos que se dão no nível local e municipal”, explica Carlos Machado, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes), da Fiocruz. Não é por acaso, inclusive, que, no Brasil, o Cemaden monitora, diariamente, 1.133 municípios (esse número amplou em abril) que têm histórico de desastres desse tipo. “Mas o fato de a minha cidade não estar nesse rol não significa que por ventura ela não possa daqui a pouco também estar sendo mais impactada”, avisa Alvalá.

Por tudo isso, para entender o papel da gestão municipal no enfrentamento desse problema, é preciso dividir o cenário em dois: a capacidade de reagir ao desastre do momento em que ele acontece e a necessidade de preparar as cidades para resistir aos desastres futuros.

Enfrentando um desastre iminente

Para dar a resposta inicial nos momentos em que as chuvas, secas, ondas de calor e outros eventos extremos estão prestes a acontecer ou já estão ocorrendo, a estrutura com a qual as prefeituras contam principalmente é a defesa civil. São esses os órgãos para os quais o governo federal, por meio do Cenad, Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres, envia alertas quando o trabalho de monitoramento (que, por sua vez, é feito pelo Cemaden) identifica o risco de algum fenômeno que possa atingir as cidades.

A depender do nível do alerta, os municípios devem acionar as estruturas da defesa civil e outros serviços. Nesse momento, são necessárias medidas como a evacuação da população em área de risco, seu deslocamento para locais seguros e a preparação das unidades de saúde e hospitais para atendimento das pessoas atingidas e acompanhamento daquelas que estão nos abrigos. E, embora em meio aos desastres, seja importante e desejável a ação conjunta com os governos estadual e federal, como se viu recentemente no caso das mais de 470 cidades atingidas pelas chuvas no Rio Grande do Sul, Carlos Machado explica que é papel da gestão municipal “estruturar os órgãos de proteção e defesa civil” e articular os outros órgãos.

Isso coloca já um primeiro desafio para os gestores que estarão à frente dos municípios brasileiros a partir de 2025. Hoje, cidades grandes e com mais recursos – como o Rio de Janeiro – muitas vezes têm o seu próprio sistema de monitoramento, que permite uma precisão maior dos alertas. E com uma informação mais qualificada, fica mais fácil preparar a resposta com mais antecedência e eficácia. Mas essa está longe de ser a regra no país. “Em nível nacional, a maior parte dos municípios, que são pequenos, não têm nem condições de preparo e estruturação de órgãos de defesa civil para acionar o sistema de alerta”, descreve Machado. E, para o pesquisador, o caminho de superação dessa carência passa por organizar processos de regionalização ou consórcios entre municípios, a exemplo do que existe na área da Saúde. Ele exemplifica com a recente tragédia das chuvas no Rio Grande do Sul, lembrando que na região do Vale do Taquari, mais de 30 municípios pequenos, com população média em torno de 10 mil pessoas cada um, foram muito afetados pelas chuvas. Outra cidade fortemente atingida foi a capital, Porto Alegre, que tem 1,3 milhões de habitantes. “Porto Alegre tem uma capacidade de arrecadação, estruturação e preparação muito maior que esses municípios. Se eu pego esse conjunto de municípios e cada um tem um órgão de proteção e defesa civil precário, não é bom para ninguém. Então, eu acho que seria importante a gente pensar em processos de regionalização ou consórcios, inclusive estruturando melhores sistemas de monitoramento hidrológico, meteorológico e radares, por exemplo, que são caros e exigem manutenção. É necessário pensar arranjos que possibilitem a um conjunto de municípios pequenos que integram a região se estruturarem de forma melhor”, defende. E conclui: “Independentemente do tamanho, todos vão ter que estar preparados”.

Preparando a cidade para eventos extremos

Mas quando alertam que os efeitos das mudanças climáticas sobre as cidades já se tornaram uma realidade e que a tendência é piorar, os entrevistados desta reportagem estão mirando principalmente a necessidade de os próximos gestores investirem em medidas de adaptação que preparem as cidades para eventos extremos futuros. Não que toda responsabilidade sobre o enfrentamento desses problemas seja dos municípios, mas eles são unânimes em afirmar que é no nível local, das cidades, que as principais mudanças precisam ser feitas.

Você provavelmente já ouviu falar em ‘cidades sustentáveis’. Mas o agravamento – ou a maior consciência – sobre os efeitos das mudanças climáticas trouxe uma nova convicção: de que não é possível ser sustentável sem ser resiliente. “[Resiliência] é a capacidade de me manter sem danos permanentes ou sem colapsar quando eu for atingida por uma ameaça climática – uma chuva intensa, uma seca prolongada ou mesmo a elevação do nível do mar, que é uma mudança pontual e não um evento extremo”, explica Maria Fernanda Lemos, que ilustra: “Choveu para caramba e a cidade não parou, não colapsou. Algumas pessoas tiveram que ficar em algum lugar esperando a chuva passar para poder chegar em casa. Algumas ruas alagaram, mas sem invadir as casas e destruir tudo. Eu tinha, por exemplo, um sistema de transporte estrutural que se manteve porque estava numa rota segura, adaptado para conseguir circular ainda no momento de chuva mais intensa para as pessoas poderem escapar de onde elas estavam”.

Isso significa que, de um lado, é possível e necessário desenvolver ações que, do nível local ao global, reduzam o agravamento das mudanças climáticas – processo que se chama de “mitigação” e se expressa, por exemplo, em medidas de redução da emissão de gases do efeito estufa. De outro, no entanto, os impactos do ‘estrago’ que se fez até aqui já são concretos e constantes, sem contar as consequências da variabilidade natural do clima, que não estão relacionadas às mudanças climáticas mas também podem ser desastrosas para as cidades e suas populações. Pois é para que a parte desses fenômenos que se tornou inevitável não se transforme em desastre que é necessário um novo modelo de planejamento urbano. Ser resiliente, então, explica Lemos, é atuar para que o impacto desses eventos seja passageiro. “Depois que o evento cessa, eu me acomodo e encontro um novo estado de equilíbrio”, diz.

“Na origem de quase todas as vulnerabilidades das cidades está a desigualdade socioeconômica”
Maria Fernanda Lemos

Os exemplos citados pela pesquisadora já dão a pista de que esse esforço de adaptação envolve um conjunto muito mais amplo de políticas e estruturas da gestão municipal, além de ser, necessariamente, um processo de longo prazo. E esse é, sem dúvida, um desafio para os gestores, já que, como ressalta Lemos, tornar uma cidade resiliente é prepará-la para “um futuro que não é amanhã nem é o do final do governo que está acontecendo”. A política de responsabilidade municipal com efeito direto mais perceptível sobre os desastres talvez seja a de uso e ocupação do solo. Você certamente se lembra de tragédias causada pelo deslizamento depois de chuvas fortes em vários locais do país. E provavelmente também se recorda do quanto essas situações reativam o debate sobre o direito de construir em área de risco. Lemos explica que, do ponto de vista do planejamento urbano, é preciso escapar de “soluções fáceis”, como o discurso que se limita a cobrar a realocação das pessoas que moram nesses territórios. Ela ressalta que, como a maioria da população que ocupa essas áreas – em encostas ou na beira dos rios – é do extrato mais pobre, essas medidas isoladas apenas “reproduzem aquela vulnerabilidade” em outro lugar, por exemplo, deslocando as pessoas para regiões mais distantes, onde, sem um sistema de transporte que atenda às suas necessidades e carências, elas novamente se colocarão em risco. “O problema mesmo não está naquele território específico, está na falta de acesso das pessoas à habitação digna”, diz, concluindo com o que ela julga ser o aspecto mais importante de um planejamento que vise tornar as cidades resilientes: “Na origem de quase todas as vulnerabilidades das cidades está a desigualdade socioeconômica”.

Para quem enfoca os desastres climáticos pensando apenas no efeito imediato do evento extremo que o causou, pode ter parecido estranho, por exemplo, a falta de água potável que afetou vários municípios do Rio Grande do Sul em meio à tragédia recente causada pelas chuvas. Trata-se, na verdade, dos “efeitos em cascata” que esses fenômenos geram e que, portanto, requerem um planejamento e ações de adaptação das cidades em várias áreas. Assim, também é fundamental para tornar as cidades resilientes uma política de transporte que garanta não apenas o deslocamento das pessoas como o abastecimento de alimentos – que podem faltar no momento de um desastre. “Na hora que a comida faltar, o rico vai pagar o sobrepreço e o pobre vai morrer de fome ou comer no lixo”, compara Lemos, reforçando o peso que o combate à pobreza e à desigualdade precisa ter nas prioridades dos gestores que querem que a cidade tenha condições de resistir.

Tudo isso é um grande desafio para os gestores que assumirão o comando dos 5.570  municípios brasileiros em 2025, num tempo em que a preocupação com esses problemas não pode mais ser adiada

Da mesma forma, as políticas de saneamento são essenciais para que uma cidade consiga não colapsar quando precisar enfrentar eventos extremos. “Na hora da enchente, as pessoas ficam afogadas na água da chuva com esgoto”, comenta Lemos, para destacar que se trata de problemas “articulados”. E, nesse ‘combo’ de demandas, entram também as questões (e a necessidade de planejamento e ações novas) relacionadas à saúde da população. No momento em que esta reportagem foi finalizada, o estado do Rio Grande do Sul tinha contabilizados mais de 540 casos confirmados e 25 mortes por leptospirose, doença cuja contaminação, que se dá pelo contato com a urina do rato, pode aumentar em situações de enchente.  Mas há riscos também na situação inversa: a existência de regiões que não têm acesso à água encanada faz com que, principalmente em períodos de seca, as pessoas armazenem água para sobreviver e, com isso, aumentem os focos de mosquito e os surtos de arboviroses, como dengue, zika e chikungunya.

Tudo isso é um grande desafio para os gestores que assumirão o comando dos 5.570  municípios brasileiros em 2025, num tempo em que a preocupação com esses problemas não pode mais ser adiada. E a má notícia – além da urgência – é que, de acordo com a urbanista Maria Fernanda Lemos, o país não tem nenhum exemplo que possa ser seguido. Perguntada sobre casos exitosos desse esforço articulado no Brasil, ela reconhece que existem ações pontuais interessantes mas reforça que citá-las contrariaria o seu argumento principal, de que iniciativas pontuais não são capazes de tornar as cidades resilientes. “Eu não consigo dar um exemplo”, lamenta.

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