Cinco anos após a apresentação da reforma do ensino médio por meio da medida provisória 746/16 durante o governo Michel Temer – contra a qual mobilizaram-se representantes do movimento estudantil, sindicatos de professores e entidades do campo da educação – sua implementação segue em disputa. No início de setembro, essa história ganhou mais um capítulo, quando um grupo de 26 deputados federais protocolou na Câmara dos Deputados dois projetos visando adiar a implementação da reforma.
O primeiro é o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 611/21, cujo objetivo é suspender a Portaria 521, de 3 de julho desse ano, que instituiu o Cronograma Nacional de Implementação do Novo Ensino Médio. A portaria foi uma resposta à pressão das redes estaduais em meio ao fechamento das escolas desde o início de 2020 por conta da pandemia de covid-19, que impossibilitou o cumprimento do que estabelecia a lei 13.415/17, por meio da qual o Congresso Nacional aprovou a reforma apresentada via MP no ano anterior. Entre outras medidas, a lei estabeleceu uma divisão do currículo do ensino médio em duas partes: uma comum a todos os estudantes, orientada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018, e outra orientada pelos chamados itinerários formativos.
Ela previa um prazo de cinco anos para que fosse implementada, que terminaria no ano que vem. Segundo a portaria 521/21, o ano de 2021 seria dedicado à aprovação e homologação dos referenciais curriculares baseados na nova lei pelos conselhos estaduais de educação, sendo o ano de 2022 dedicado à sua implementação no primeiro ano do ensino médio, no qual os estudantes já teriam que escolher entre um dos itinerários formativos oferecidos.
Já o Projeto de Lei 3.079/21, protocolado juntamente com o PDL 611/21 no dia 6 de setembro, altera a lei da reforma do ensino médio, dando prazo até 2024 para que as redes estaduais implementem as mudanças.
Justificativa
“A reforma do ensino médio foi aprovada em fevereiro de 2017 e até o momento nenhum ente da federação conseguiu implementá-la por razões diversas. A pandemia da Covid-19 tem sido a principal barreira, desde 2020, para que o diálogo democrático entre gestores, trabalhadores em educação, estudantes e seus familiares ocorra de modo a que todas as pessoas envolvidas possam ter acesso ao conjunto de mudanças que traz a Lei nº 13.415/17”, justificam os deputados que dividem a autoria do PL 3079/21.
Segundo informações do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) em apenas 15 dos 26 estados a etapa prevista pela portaria 521/21 havia sido cumprida, ou seja, os referenciais curriculares haviam sido homologados pelos respectivos conselhos estaduais. Mesmo nesses estados, sinaliza o texto que justifica o PL, não houve de fato a implementação da lei. “Observa-se um descompasso na aprovação dos currículos destinados à formação geral básica e a parte do currículo destinada aos itinerários formativos. As consultas públicas online sobre os referenciais curriculares para os itinerários formativos ainda estão em andamento em várias redes estaduais, com as dificuldades impostas pela pandemia”, afirma o texto.
A participação da comunidade escolar nas mudanças trazidas pela reforma é outro ponto que foi muito prejudicado pela pandemia, e justifica o adiamento da implementação, argumentam os parlamentares. “O longo período sem atividades presenciais impediu a realização de discussões no interior das escolas, como exige as mudanças profundas previstas na Lei nº 13.415/17. O quadro atual é de desinformação generalizada entre profissionais da educação e estudantes”, assinala o texto, que logo em seguida afirma ser “temerário” dar prosseguimento à reforma nesse contexto. “Sobretudo se considerarmos que em 2022 as escolas estarão retornando de um período bastante conturbado devido à pandemia que, certamente, trouxe fortes impactos emocionais aos profissionais da educação, aos estudantes e suas famílias”, destaca a justificativa do PL 3079/21.
Desinformação e falta de participação
A professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Monica Ribeiro, coordenadora do Observatório do Ensino Médio, prevê um cenário de “caos” em 2022 caso não seja prorrogada a implementação da reforma, que segundo ela pode inclusive contribuir para um aumento do abandono e da evasão escolar. “As escolas retornarão de quase dois anos sem aulas presenciais com uma mudança estrutural profunda no ensino médio, sem que haja qualquer informação a esse respeito por parte da comunidade escolar. Nem estudante, nem professor, nem direção de escolas sabem bem o que está acontecendo. Tem gente que nem lembra daquele movimento de resistência, de debate, discussão, que ocorreu lá atrás, em 2016 e 2017”, resgata Monica, que integra o Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio (MNDEM), organização que em conjunto com a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) e a Rede Escola Pública e Universidade (Repu) lançou uma petição pedindo apoio à aprovação dos dois projetos. “Os currículos novos sequer foram debatidos nas escolas, porque o máximo que cada rede estadual fez foi mandar um link de consulta pública. É a não participação efetiva dos interessados no assunto na comunidade escolar sobre as mudanças previstas, aliada a desinformação”, denuncia Monica.
Integrante do comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Débora Goulart faz eco ao alerta de Monica. “Para você ter uma ideia, em São Paulo o currículo foi aprovado pelo conselho estadual de educação em meio à pandemia, os professores não participaram, ninguém discutiu”, reclama Débora, que também integra a Repu. “Queremos que os professores possam voltar às escolas com alguma normalidade a partir do ano que vem, e que a gente tenha esse período de dois anos pra poder discutir com as redes. É uma pauta de discussão com as redes e com as famílias, no sentido de tentar diminuir a evasão e as dúvidas que os próprios professores e estudantes têm”, pontua a professora da Unifesp.
Para Monica Ribeiro, além de ter contribuído para o cenário de desinformação sobre a reforma, a pandemia também evidenciou os gargalos no país para a implementação do ensino à distância, que a lei 13.415/17 previu como uma possibilidade das redes estaduais na oferta do ensino médio. Na sequência, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, aprovadas pela Conselho Nacional de Educação em 2018, estabeleceram que até 20% da carga horária do ensino médio diurno, 30% do noturno e até 80% na modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) poderá ser ofertada à distância. “A pandemia mostrou que isso é uma falácia; dados publicados recentemente apontaram que 93% dos estudantes ensino médio de escola pública não tem recursos tecnológicos e nem mesmo celular para acompanhar as aulas em plataforma digital. Como é que você vai oficializar o ensino à distância se nem o remoto emergencial se conseguiu fazer no Brasil sem ampliar a desigualdade, sem ampliar a exclusão educacional?”, questiona professora da UFPR.
Nos institutos federais, reforma vem ‘na surdina’, alerta dirigente sindical
A separação do currículo em itinerários formativos – entre os quais está o da formação profissional – prevista na reforma do ensino médio vem desde 2016 suscitando críticas daqueles que veem nessa separação o desmonte das políticas que até então vinham mobilizando recursos para a ampliação das matrículas no ensino médio integrado à educação profissional, principalmente através da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (Rede EPCT). “A reforma tem um discurso de integração, mas na verdade rebaixa o conhecimento, reduz a formação mínima a que os estudantes têm acesso, e isso, claro, implica numa formação profissional sem uma perspectiva que nos institutos federais a gente defende como necessária, que é uma perspectiva integrada, humanista, de totalidade, uma educação emancipadora em diferentes visões. Com a reforma isso fica muito prejudicado”, afirma Camila Marques, coordenadora geral do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (Sinasefe).
Segundo ela, a despeito da mobilização dos trabalhadores dos institutos federais contra a reforma, ela vem sendo implementada de forma insidiosa. “Temos visto com muita preocupação que a implementação da reforma do ensino médio tem se expandido nos institutos, e há dificuldade de acompanhar porque ela não vem com esse nome. Ela vem disfarçada de ‘formação integral’, de ‘integração das disciplinas’, de ‘eixos formativos’. Mas na prática a gente vê a perspectiva do ensino médio reformado e da nova BNCC sendo implementada, o que é extremamente complicado”, alerta a coordenadora geral do Sinasefe, que é professora de sociologia no Instituto Federal de Goiás (IFG).
Uma das consequências disso, segundo ela, é que professores de disciplinas como sociologia e filosofia, que tiveram a carga horária reduzida pela reforma do ensino médio, agora precisam se deslocar entre vários campi para conseguirem cumprir sua carga horária mínima. “Isso implica em precarização do trabalho das condições de vida, com a sobrecarga de trabalho; implica também no professor não conseguir se dedicar às atividades de pesquisa e extensão, que para nós faz parte do tripé que temos como fundamental na formação integrada dos estudantes do ensino médio, junto com o ensino”, lamenta Camila.
Até o fechamento desta matéria, o Consed não havia respondido ao pedido de entrevista enviado pela reportagem do Portal EPSJV/Fiocruz.