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Regulamentação do trabalho por plataformas pelo mundo

Lei criada na Espanha e nova diretiva da União Europeia são apontadas como experiências emblemáticas de regulamentação do trabalho por plataforma
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 14/05/2024 13h35 - Atualizado em 14/05/2024 15h41

Duas experiências internacionais têm sido consideradas emblemáticas do debate (e da queda de braços) sobre a regulamentação do trabalho por plataformas. A primeira é a do estado da Califórnia, nos Estados Unidos, que se transformou no exemplo do poder dessas empresas de intervir no processo legislativo. A segunda é a Lei Rider, da Espanha, que também foi resultado de uma mesa de negociação envolvendo plataformas e trabalhadores, mas teve um resultado bem diferente do que se viu até agora no Brasil. E é interessante notar que, em ambos os casos, o pontapé inicial foi dado pelo judiciário.

O pesquisador da Unicamp Murilo Van der Laan, que está preparando um livro que vai sistematizar essas experiências, conta que em 2018, a Suprema Corte da Califórnia decidiu adotar um modelo mais rígido para os testes utilizados pela justiça do trabalho para definir se existia ou não vínculo empregatício. O processo que deu origem a essa decisão não tinha qualquer relação com o trabalho por plataformas, mas os critérios que passariam a valer implicavam diretamente essas empresas. “A Uber e as empresas por aplicativo falaram abertamente, quando o projeto foi aprovado, que não iriam cumprir a legislação”, diz. Como contraofensiva, elas redigiram um novo texto, conhecido como Prop 22, e submeteram a uma espécie de referendo – a legislação norte-americana permite que projetos de iniciativa da sociedade possam ser votados diretamente pela população. Numa “disputa pesadíssima”, em que, de acordo com o pesquisador, as empresas gastaram cerca de R$ 1 bilhão com propaganda e outras estratégias, o projeto foi aprovado em 2020, garantindo uma legislação à imagem e semelhança dos interesses das plataformas. A ironia, segundo Van Der Laan, é que é nítida a semelhança entre essa regulamentação e a que está sendo proposta no Brasil pelo PLP 12/24. “Eu não tenho muito receio de dizer que ele parece ter sido escrito pelas próprias plataformas, porque segue de perto o modelo da Califórnia”, diz. Não por acaso, a regulamentação da Califórnia é citada pela Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa as principais plataformas no Brasil, como exemplo de iniciativa exitosa.

Realçando o processo de mudança que o debate brasileiro sobre a regulamentação sofreu até chegar ao PLP 12/24, Van Der Laan afirma também que, contraditoriamente, o governo federal se inspirou na experiência da Espanha quando resolveu chamar uma mesa de negociação sobre o tema. Lá também foi instituída uma mesa de diálogo social na qual, segundo o pesquisador, as plataformas apresentaram a proposta de criação de um trabalhador autônomo “reforçado”, com mais direitos, parecida com o que se conseguiu na Califórnia e com o que agora se está propondo no Brasil. “Mas essa proposta foi rejeitada pela atuação do governo e das centrais sindicais e foi respaldada por uma decisão muito contundente do Tribunal Superior Espanhol”, explica Van Der Laan, ressaltando que foi relevante também para os resultados alcançados o fato de participar da mesa de negociação uma plataforma que já trabalhava com entregadores contratados, a Just Eat, que representou uma voz dissonante do lado patronal.

Vale ainda registrar que na Espanha tudo também começou no judiciário. Segundo o pesquisador, diante de uma “proliferação” de decisões que confirmavam as denúncias da inspetoria do trabalho de que “os entregadores eram classificados como falsos autônomos”, em 2020, o Tribunal Supremo emitiu uma sentença em que “mostrou com detalhes como o processo dos entregadores, de fato, implica uma subordinação, uma dependência”. A decisão, então, foi que as plataformas deveriam “reclassificar os seus trabalhadores”, reconhecendo o vínculo empregatício. Resultado da mesa de negociação criada depois pelo governo, a Lei Rider seguiu o mesmo caminho, instituindo a presunção de vínculo – o que significa que cabe às empresas provar que um trabalhador é autônomo. A má notícia, diz Van Der Laan, é que as plataformas majoritariamente não têm cumprido a lei, adotando uma estratégia de judicializar e postergar as multas, num claro enfrentamento à nova legislação.

Mais recentemente, outra experiência tem chamado atenção dos pesquisadores: trata-se da diretiva da União Europeia, que, embora ainda não implementada – o prazo é de dois anos – é, na avaliação de Van Der Laan, a “regulamentação do trabalho de plataforma mais completa que a gente tem até o momento”. O texto não só adota a presunção de vínculo empregatício, como ocorreu na Espanha, como ataca o que ele chama de “gestão algorítmica”, central no modelo de negócios das plataformas. O pesquisador ressalta, sobretudo, a diferença da busca por transparência dessa iniciativa da UE na comparação com o PLP 12/24, que, na sua avaliação, “não abre caixa preta nenhuma das plataformas”, como tem sido anunciado por defensores do projeto. Para se ter uma ideia, segundo ele, a regulação europeia estabelece que o trabalhador precisa ser informado sobre os dados que a plataforma vai utilizar para montar o seu perfil; limita o tempo e o tipo de informações sobre os prestadores de serviço que as plataformas podem processar; e determina que os representantes dos trabalhadores sejam consultados sobre alterações nos sistemas algoritmos e, no caso das plataformas maiores, tenham direito à consultoria especializada escolhida por eles e paga pela empresa. “Além disso, não podem ser demitidos, ter seus salários suspensos nem sofrer sanções por desempenhar a atividade de fiscalização das plataformas”, resume.

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