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Entrevista: 
Marise Ramos

É uma restrição do campo de conhecimento do professor

Entra em vigor no dia 1º de junho a resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) que instituiu as Diretrizes para Formação de Professores da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, aprovadas em 6 de maio e publicadas no Diário Oficial da União no dia 11. Nesta entrevista, Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), analisa o conteúdo da resolução. Segundo ela, ao invés de estabelecer diretrizes para uma política consistente de formação para a docência na educação profissional, uma reivindicação histórica de trabalhadores, pesquisadores e gestores no Brasil, a resolução serve apenas para “não deixar nada fora da lei”, acolhendo as diversas possibilidades de formação que já vinham sendo implementadas no país ao longo dos anos. Ramos ressalta ainda que o texto regulamentar deixa de lado a regulamentação da brecha aberta pela lei 13.415/17, da Reforma do Ensino Médio, que permitiu a atuação de professores sem formação para a docência na educação profissional, através da instituição do chamado “notório saber”
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 31/05/2022 15h14 - Atualizado em 02/08/2022 10h45

A discussão sobre a necessidade de uma formação para docência na educação profissional é histórica no Brasil. De que forma a resolução do CNE, que institui as Diretrizes para Formação de Professores da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, trata dessa questão?

No contexto atual, a gente tem efetivamente um processo de reforma na política educacional, no qual há uma profusão de regulamentações. Porque o grupo que está no poder, o grupo hegemônico, quer que essa reforma se consolide e quer cercar por todos os lados, construir uma estrutura jurídica normativa em todos os aspectos. Daí a educação profissional como algo relevante.

O que a resolução 1 de 2022 vem trazer, do meu ponto de vista? Primeiro, ela vem normatizar de uma forma mais consubstancial, mais diretiva de fato como deve se dar a formação de professores da educação profissional. E ela vem acrescentar em relação a aspectos já presentes na resolução 1 de 2021, das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica, a possibilidade da especialização lato sensu se constituir como equivalente à licenciatura em docência na educação profissional técnica de nível médio. Porque isto não aparece em lugar nenhum. O artigo 53 [da resolução nº 1 de 2021] diz que os professores diz que a formação inicial para docência da educação profissional e técnica de nível médio realiza-se em cursos de graduação, em programas de licenciatura ou outras formas. E depois vai disciplinar que os professores graduados não licenciados, que estejam em exercício docente, têm o direito a participar de programas de licenciatura ou programas de formação pedagógica, de cursos de especialização lato sensu de caráter pedagógico e também de ter reconhecimento total ou parcial dos seus saberes, na lógica da certificação de competências equivalente a licenciatura. Ela diz que os professores têm o direito de participar de curso de pós-graduação lato sensu de caráter pedagógico. Mas não está dizendo que isso daria equivalência a licenciatura. Isto é novo.

Enquanto o artigo 53 da resolução de 2021 fala desses modos aí - programas de licenciatura, pós-graduação, reconhecimento dos saberes - como um direito do professor que esteja em exercício, a resolução de 2022 fala desses modos de formação como aqueles que devem corresponder à formação dos professores. O que era um direito na resolução 53 passa a ser uma norma institucional na resolução de 2022.

Professor não é mais um sujeito formado em uma área que, em razão dessa formação, se torna habilitado a ensinar; ele é alguém que se forma para ensinar

A questão do notório saber é um dos pontos mais controversos da reforma do ensino médio no que diz respeito à educação profissional. A lei 13.415/17, que dividiu o currículo do ensino médio em itinerários formativos,  permitiu que profissionais com experiência profissional em determinada área, ainda que sem formação para a docência, sejam contratados como professores das disciplinas ligadas a formação técnica. Pesquisadores da área vêm criticando a falta de regulamentação do notório saber nos documentos subsequentes, como as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica. Como a resolução de 2022 trata dessa questão?

A resolução fala da formação dos professores da educação profissional e técnica de nível médio. Uma vez que ela se tornou um itinerário do ensino médio, aqui se está falando acerca de professores que vão atuar no itinerário e não na parte propedêutica. Quer dizer, quem vai atuar na parte propedêutica são os professores licenciados em química, física, matemática, língua portuguesa, língua estrangeira, história. Aqui é para aqueles que vão atuar no itinerário da educação profissional. Mas isso de qualquer maneira já era assim. O grande problema sempre foi a formação dos professores que vão atuar nas disciplinas específicas da educação profissional. 

O notório saber é um dispositivo aplicado aos professores da educação profissional técnica de nível médio. É a grande crítica que a gente faz, porque ele precederia da formação, inclusive da graduação. A resolução atual traz o notório saber no parágrafo 5º do artigo 3.  O objeto aqui desse parágrafo é a formação em serviço: ele diz que a instituição tem que proporcionar formação em serviço aos profissionais sem licenciatura, com experiência profissional comprovada, bem como a profissionais com notório saber, mas sem disciplinar o que isso significa. Ele continua difuso, só que ele responsabiliza alguém, o órgão supervisor do respectivo sistema de ensino.

A resolução amarra tudo que estava meio solto, acolhe as diversas possibilidades que historicamente já existem e/ou são defendidos por alguns setores, e ao mesmo tempo incorpora outras possibilidades. Abre para outras possibilidades, mantém o notório saber por uma questão da legislação, e ainda não disciplina, somente exige que se apresente um plano ao órgão supervisor. Então deixa esse buraco, essa falha. É isso. A resolução disciplina o que já existe, assegura um aspecto já posto em lei, que é o notório saber, mas sem regulamentar, sem organizar, somente atrela ao órgão de ensino, e abre para outras formas mais diversas, que inclusive não estão aqui apresentadas. Portanto, qual é o sentido em termos normativos? É não deixar nada fora da lei. O propósito é esse. Nada mais se tornaria ilegal, se tornaria inapropriado. 

Então ela resolve o problema dizendo que pode um monte de coisa, mais outras. Na verdade, todos os cursos de formação podem, até mesmo, não existir. Porque pode ficar tudo na base do reconhecimento de competências e notório saber. É isso. Ela dá um passo à frente disciplinando e outro atrás quando, ao disciplinar, permite o que é o mais desregulado, que é o reconhecimento do notório saber e das competências.


É uma forma de dar “segurança jurídica”...

É uma segurança jurídica, sim. Isso do ponto de vista do instrumento jurídico. As outras questões que passam por aqui não são objeto desta resolução propriamente. Na verdade, ela reitera a lógica de formação de professores que está na resolução 2 de 2019, que é a BNC-Formação [a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica]. Um problema que está no conjunto dessa regulamentação é que uma vez que a educação básica e a educação profissional estão baseadas em competências, a formação dos professores também. E como são definidas as competências da formação dos professores? São definidas por referência às competências da educação básica e às competências da educação profissional.

A concepção de formação de professores que está vigorando nessa reforma é uma concepção pragmática, os professores têm que aprender os conteúdos que vão ensinar e não a base científica do seu campo de formação

A BNC-Formação vai disciplinar as competências ligadas ao exercício da docência. Isso significa que o conhecimento, o aprendizado do professor, está atrelado ao que ele vai ensinar e não à base, ao conhecimento científico da área em que ele está se formando. Quer dizer, a concepção de formação de professores que está vigorando nessa reforma é uma concepção pragmática, os professores têm que aprender os conteúdos que vão ensinar e não a base científica do seu campo de formação. Você tem uma clivagem muito significativa entre o profissional da área, que nós já chamávamos de bacharel, que conhece o campo, a base científica da sua área, e o professor.  Então você não tem um professor que é um sujeito que conhece, que domina a base científica da sua área, e com isto se habilita também a poder ensinar esse conteúdo. Ele aprende o que vai ensinar. Porque as competências específicas que ele tem que desenvolver a partir dos conteúdos que vai assimilar são aquelas vinculadas a do ensino médio. Isso está dito na lei 13.415, que fala que a formação de professores terá que ser desenvolvida com base nas competências da BNCC. E aí, na verdade, é como se as competências descritas na BNCC fossem as competências que o professor vai ter que desenvolver, para ele depois poder proporcionar o seu desenvolvimento aos estudantes. Há uma restrição epistêmica mesmo em relação ao conceito de profissão do professor. Professor não é mais um sujeito formado em uma área que, em razão dessa formação, se torna habilitado a ensinar; ele é alguém que se forma para ensinar.

É uma restrição do campo de conhecimento do professor. Isto certamente vai redundar em uma hierarquização, em uma diminuição do valor desse sujeito dentro do campo. Uma coisa é o historiador, outra é o professor de história. Uma coisa é o químico, outra é o professor de química. O químico conhece química, o professor de química conhece os conteúdos de química que tem que ensinar no ensino médio.


No artigo 2º da resolução de maio deste ano, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, lê-se que os cursos e programas de formação podem ser organizados por “habilitação profissional” e não apenas por “eixo ou área tecnológica”. Isso vai ao encontro dessa análise sobre a restrição do campo de conhecimento do professor?

Sim. Organização de formação dos professores por habilitação profissional é uma restrição absurda. Então você vai se formar como um professor da sua habilitação específica, por exemplo, dentro da gerência em saúde, sem ter uma formação na área da saúde como um todo? Ao restringir por habilitação profissional, ao admitir que a formação seja restrita à habilitação profissional, você tem uma facilitação para as instituições na organização das possibilidades que a resolução abre. Porque fazer alguma coisa que é restrita e direcionada é mais fácil, mais prático, mais rápido do que fazer em um campo mais amplo de saber, de conhecimento. Por eixo ou área tecnológica já é mais abrangente, é mais coerente com a compreensão da educação profissional.

Tem uma redução do conhecimento pedagógico ao elemento didático ou didático metodológico, que é uma das dimensões do saber docente, mas não é o único nem o principal


O artigo 9º, já nas disposições finais da resolução, por sua vez, diz que “a experiência efetiva e atualizada como profissional no mundo do trabalho, referente à habilitação profissional, eixo ou área tecnológica em que for exercer a docência, é requisito preferencial para atuar em curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio”. Qual a sua leitura sobre essa ênfase na experiência prática como requisito para o exercício da docência na educação profissional? 

Há de fato uma prevalência da experiência prática em detrimento do conhecimento teórico, do conhecimento científico. Tanto que em todos os dispositivos de formação, sem ser a licenciatura, a carga horária prática é maior. Quando a BNC-Formação fala na formação pedagógica para graduados, a carga horária é de 360 horas teóricas e 400 horas de prática. É a esse trecho que a resolução de maio de 2022 se refere quando fala na equivalência ao diploma de especialização em docência na educação profissional técnica de nível médio. A concepção de toda formação de professores tem uma proeminência da prática. No caso da educação profissional, essa proeminência quantitativa da carga horária prática em relação à teórica converge com esse aspecto preferencial da prática no artigo 9. Então, tem mesmo a consolidação de uma concepção de que a educação profissional é uma modalidade formativa para a prática. Além disso, a resolução traz a questão da formação continuada, no artigo 7º, que fala que o foco deve ser o desenvolvimento de metodologias inovadoras no ensino e aprendizado. É mais uma reiteração do aspecto pragmático da formação. A formação continuada deve ter foco no desenvolvimento de metodologias inovadoras do ensino e aprendizagem, não pode ter foco na compreensão nacional da educação, não pode ter foco na discussão da filosofia da educação.

Tem sim uma lógica pragmática e, no caso da formação de professores, é isso ainda mais grave, porque as suas competências serão aquelas necessárias ao ensino, aos conteúdos que serão ensinados e às competências que a BNCC disciplina. Tem uma redução do conhecimento pedagógico ao elemento didático ou didático metodológico, que é uma das dimensões do saber docente, mas não é o único nem o principal. Isso não é uma questão exclusiva da educação profissional, é como a concepção de formação de professores hoje está disciplinada. Essa lógica reduzida da formação de professores em geral, e do que é o saber docente em geral, fica ainda mais grave na educação profissional. Eu diria que essa resolução é reiterativa às concepções já existentes e de uma forma ainda mais grave, dada o caráter também reduzido, pragmático, da própria educação que predomina aqui, como uma formação que visa, principalmente, o ensinar a fazer.

Leia mais

O Ministério da Educação (MEC) divulgou recentemente dois documentos relacionados à oferta do itinerário de educação profissional previstos pela lei 13.415/17, da chamada Reforma do Ensino Médio. Um deles é a ‘Cartilha de Orientação às Redes Ofertantes de Educação Profissional e Tecnológica’. Segundo o MEC, o documento, em sua segunda edição, traz uma série de ferramentas e base de dados que de acordo com o ministério podem ser utilizadas por gestores para a definição da oferta de educação profissional alinhadas “a demanda dos diferentes setores econômicos”. O segundo documento é o ‘Itinerário da formação técnica: guia de implementação’, que como o próprio nome diz, procura orientar gestores de forma didática quanto às possibilidades de organização dos arranjos curriculares para oferta de cursos técnicos e de qualificação profissional no bojo da reforma. Segundo Lucas Pelissari, vice-coordenador do GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR), onde coordena o grupo de pesquisa ‘Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional’, os dois documentos explicitam o “discurso tecnicista” que orienta as políticas voltadas para a educação profissional a partir da lei 13.415/17, que subordina, de forma acrítica, a formação profissional somente às demandas do chamado setor produtivo. Além disso, expõem a extrema fragmentação curricular possibilitada pela reforma para a educação profissional.
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