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Entrevista: 
Livi Gerbase

‘As políticas sociais estão desmanteladas’

A assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) Livi Gerbase fala, nesta entrevista, sobre a terceira edição do relatório ‘A conta do desmonte: balanço geral do orçamento da União’, divulgado na última segunda-feira (11) pela organização não governamental. O documento analisa o orçamento federal de 2021 e compara com os dois anos anteriores, revelando uma tendência de redução ano a ano nos recursos da União voltados para políticas públicas de saúde, educação, meio ambiente, entre várias outras. Redução que, segundo o Inesc, têm feito com que o Brasil retroceda no combate às desigualdades e preservação dos direitos humanos.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 14/04/2022 11h58 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

O nome do documento, ‘A conta do desmonte’, deixa poucas dúvidas sobre o que o Inesc concluiu ao analisar as políticas públicas no orçamento federal ao longo dos três últimos anos. Pode falar sobre esse ‘desmonte’?

O Inesc já está na terceira edição desse relatório em que a gente olha o orçamento geral da União do ano anterior. E este ano também aproveitamos para fazer um balanço dos últimos três anos, de 2019 até 2021. O foco são os dados de 2021, mas em vez de ter a comparação só com 2020, comparamos também com 2019, porque 2020 foi um ano muito atípico em termos de orçamento por causa da pandemia. Nosso objetivo é entender um pouco o que aconteceu com as políticas públicas que o Inesc acompanha durante esse período, com foco na execução orçamentária. E a gente trabalha com nove áreas nas quais temos expertise: saúde, educação, direito à cidade, meio ambiente, povos indígenas, igualdade racial, quilombolas, mulheres e crianças e adolescentes. O objetivo é contribuir com o debate público, mostrando um pouco as prioridades do governo em termos orçamentários.  ‘A Conta do Desmonte’ foi um nome que realmente deu essa ideia de que essas nove políticas, desde que a gente começou a análise do orçamento, estão em queda livre. As políticas sociais estão desmanteladas. Existia um conjunto de políticas públicas para essas áreas, cada um com as suas especificidades, e agora está havendo um sistemático desfinanciamento.

E não é somente uma questão deliberada do governo. Tem isso também. Mas também é uma resposta ao cenário de austeridade fiscal que vem de antes do atual governo, desde 2017, principalmente com a Emenda Constitucional do teto de gastos, que em conjunto com outras regras instituídas no período tem como objetivo ir diminuindo o Estado e desmantelando as instituições e as políticas públicas. Então o relatório mostra esse desmonte de maneira mais ampla.


Na saúde o orçamento que foi executado em 2021 sofreu um corte de 7% entre 2019 e 2021, segundo o Inesc. De quanto dinheiro estamos falando?

É uma perda de R$ 10,7 bilhões em três anos. Isso sem considerar os gastos com a pandemia. É importante colocar que a gente dividiu entre um orçamento específico para a pandemia e o orçamento geral. O orçamento que não inclui a pandemia em 2021 é realmente reflexo do cenário de desfinanciamento do SUS que é uma realidade há alguns anos. E esses cortes são ainda mais preocupantes porque a gente sabe que o governo está gastando só o mínimo com a saúde. A saúde especificamente tem um detalhe de que ela tem um piso constitucional. Antes do teto de gastos ela tinha que receber um percentual da receita corrente líquida da União. Com o teto de gastos isso muda, agora o piso é o que se gastou em 2016 corrigido pela inflação, mas 2016 foi um ano de crise, a arrecadação foi baixa e por isso tivemos um patamar baixo de gastos em saúde. À medida que s a demanda por serviços de saúde aumenta, a população brasileira cresce, aumenta a arrecadação, mas os gastos com saúde não são obrigados a responder a nada disso.

E é importante dizer que houve mais recursos extraordinários para a pandemia sim, mas a pandemia leva a um sobrelotamento da capacidade do SUS que faz com que exista uma demanda reprimida pelo sistema de saúde. Então as cirurgias eletivas, exames de maior complexidade, tratamentos de doenças crônicas, foram adiados. São questões que, com a pandemia, perdem espaço, porque o sistema teve que ser recolocado. Mas como a pandemia vai perdendo força, com a vacinação, etc, essa demanda vai voltar. Já está voltando. Só que essa demanda está encontrando um SUS desfinanciado. Então vai ser muito difícil de atender todas as pessoas que agora o sistema tem que voltar a cuidar para além da Covid.

A gente tem que lembrar que o orçamento foi aprovado em abril de 2021. Então no momento de pior pico da pandemia, os quatro primeiros meses, a gente não tinha orçamento aprovado. Como o governo achou que a pandemia ia acabar em 2020, não teve o menor planejamento orçamentário para gastos com a Covid-19 em 2021. Então na medida em que eles perceberam que a pandemia estava no seu ápice, aprovaram-se recursos extraordinários. Isso são meses e meses sem recurso de fato chegando à ponta. E os recursos para o enfrentamento da pandemia caíram 78,8% quando comparados a 2020, sendo que apenas 82% desses recursos foram efetivamente executados, sobrando R$ 27,3 bilhões autorizados para o combate à pandemia, mas não executados.


O relatório aponta também que as emendas parlamentares vêm tendo um papel crescente na composição do orçamento da saúde: de 5% dos recursos executados em 2019 passaram para 8% em 2021. No orçamento de 2022 está prevista a alocação de R$ 21 bilhões provenientes de emendas parlamentares na saúde, ou 14% do previsto. Isso é um problema? Por quê?

A luta do Legislativo com o Executivo pelas emendas é uma coisa que vem desde 2015 mais ou menos. As emendas tinham um pouco esse caráter de jogo político do Congresso com o Executivo, os congressistas colocavam o que eles queriam de emenda e o Executivo ia executando na medida em que se fazia acordos. O que aconteceu é que as emendas agora são impositivas, são um gasto obrigatório. Então essa margem de negociação que existia, que levava os valores das emendas a não serem tão altos, porque não se executava tudo, agora não existe mais. Tudo que foi autorizado de emenda parlamentar, individual e de bancada, tem que ser gasto até o final do ano. Em um cenário em que se tem um teto de gastos que está diminuindo o orçamento de ano a ano, colocar uma despesa como obrigatória vai começar a aumentar o peso dela no orçamento com o tempo. Metade das emendas parlamentares tem que ir para a saúde obrigatoriamente, e essa metade com saúde vai para cumprir o mínimo constitucional. Agora cada vez mais os recursos da saúde ficam atrelados à emenda parlamentar.

De forma geral, as emendas parlamentares estão muito ligadas aos desejos individuais daquele parlamentar, de colocar recursos no seu município, para angariar votos, por exemplo. Não tem muito a preocupação de seguir um planejamento setorial, as prioridades mais de longo prazo. Isso quebra o planejamento da área. As emendas de relator, que são o chamado orçamento secreto, tem um problema a mais, porque pelo menos as emendas individuais, as de bancada, de comissão, a gente consegue ver quem está trazendo o recurso e para onde ele está indo. As emendas do orçamento secreto, o responsável é o relator orçamentário, que é uma pessoa específica por ano. Mas quem está tendo o poder de indicar essas emendas do orçamento secreto? A gente não consegue ter acesso a essa informação. Isso é fundamental de a gente saber. Porque os critérios de distribuição de emendas são claros, são determinados em lei, mas os critérios de distribuição do orçamento secreto não existem. É um recurso tão grande quanto às emendas individuais, que são para mais de 500 parlamentares. No ano passado foram R$ 10 bilhões de execução financeira, recursos efetivamente gastos pelas emendas, que a gente não sabe qual é o critério, para quem está indo. Então basicamente é uma injeção de recursos muito forte na base do governo nos parlamentares do Centrão. É uma perda muito grande em termos de transparência e uma abertura muito grande para que o recurso fique cada vez mais pautado por uma questão eleitoreira, em vez de estar nos planejamentos setoriais.

A tendência é de continuação do desmantelamento da política pública de educação e de saúde.

E no caso da educação?

O orçamento da educação também teve uma queda parecida com a da saúde, perdeu R$ 8 bilhões entre 2019 e 2021. A educação tem uma folga um pouco maior que o mínimo constitucional em relação ao teto de gastos, mas é uma folga dentro de um orçamento que também está caindo ao longo dos últimos anos. Tem áreas que é mais fácil mexer e tem áreas que é mais difícil. Questões que não estão dentro do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], que está fora do teto de gastos, por exemplo, são as que mais têm sofrido. O ensino superior, por exemplo, não é prioridade do governo, isso ficou claro na sua agenda, o que também reflete em uma queda orçamentária. Em dois anos, o ensino superior teve uma queda de 16% em seu orçamento. Desde 2019, a Capes [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior] perdeu 26% de seu orçamento.

Um dado que chamou a atenção entre 2019 e 2021 foi a queda no valor autorizado no orçamento para investimento em infraestrutura nas escolas [R$3,179 bi em 2019 contra R$ 955 milhões em 2021] e uma execução financeira muito baixa no período [R$ 561 milhões em 2019 e R$ 460 milhões em 2021]. A gente está no meio da volta às aulas presenciais e esperava-se que os recursos para melhora da infraestrutura e adaptação às novas condições tivessem aumentado. Mas não, houve uma queda de 18% nos recursos para melhoria das estruturas das escolas. Então não houve um esforço para ter uma organização mais planejada e com investimentos para garantir a segurança, saúde das crianças e jovens nessa volta às aulas presenciais.


O governo deve apresentar até o dia 15 de abril ao Congresso o projeto de lei orçamentária de 2023. Já é possível fazer alguma projeção?

A tendência para 2023 é um pouco difícil, porque depende de quem ganhar a eleição. Em termos da educação, há dados bem interessantes sobre a questão de como foi a pandemia para os estudantes ao longo dos dois anos. Teve um déficit muito grande, principalmente na região Norte. As escolas públicas ficaram atrás das escolas privadas em termos de números de aulas e acesso a tecnologias. Acho que isso também é uma tendência que não vai conseguir se desfazer facilmente. Os alunos passaram um ou dois anos com condições muito ruins, acabaram com um déficit no seu aprendizado e a gente vai ver isso agora em 2022, 2023. Um legado pandêmico que a gente não tem noção de como vai ser. O valor autorizado para a educação em 2022 já é menor que 2021, são R$ 6 bilhões a menos. Na saúde, a mesma coisa: o valor autorizado [R$ 149,4 bi] é 18% menor do que o que foi executado em 2021, sendo que foram destinados apenas R$ 7 bilhões para o enfrentamento da pandemia, ou 16% do que foi aprovado em 2021. A tendência é de continuação do desmantelamento da política pública de educação e de saúde.


No caso da saúde e da educação, há a previsão constitucional de um investimento mínimo anualmente, ainda que limitado pelo teto de gastos. No caso das outras áreas que vocês analisaram no relatório isso não acontece. Qual o cenário que a análise do orçamento de 2019 para cá desenha para essas áreas?

As áreas cujas despesas são discricionárias, não são obrigatórias, são as que mais perdem. Uma área que sempre me preocupa muito é a de políticas voltadas para as crianças e adolescentes, onde há um conjunto de políticas fundamentais. O orçamento da educação infantil diminuiu quatro vezes nos três anos; o sistema socioeducativo, que é fundamental que tenha recursos para que ele não seja só uma reprodução do sistema penitenciário, perdeu 70% dos recursos. É uma situação de total descaso com as crianças e adolescentes do país. Os orçamentos para igualdade racial e para políticas voltadas às mulheres também tiveram quedas muito elevadas nos últimos anos. A Igualdade Racial perdeu oito vezes o orçamento, praticamente não existe mais nada dentro do ministério. E as ações voltadas para as mulheres, que incluem, por exemplo, o apoio a pessoas que estão em situação de violência doméstica, também tiveram quedas drásticas, o orçamento foi reduzido em 45% somente no último ano. Então, enquanto saúde e educação tiveram quedas, não são quedas tão absurdas porque ainda tem o mínimo, tem pressão social um pouco maior nessas áreas de maior destaque. Em outras áreas, como essas que citei, que não são protegidas no orçamento, as políticas sociais estão basicamente acabando, e vai demorar um pouco para a gente reorganizá-las.

Não é só porque o governo disse ‘estamos autorizando recursos’, que de fato isso vai ser traduzido em uma execução orçamentária mais alta


Meio ambiente é outro exemplo importante no atual contexto...

Exato, o orçamento para as políticas de meio ambiente é muito pequeno no geral, o que a gente gasta com emenda parlamentar de relator é cinco vezes o que a gente gasta com meio ambiente. Mas, ainda assim, houve queda. O orçamento executado em 2021 foi de R$ 2,49 bilhões, o menor dos últimos três anos. O que a gente achou interessante é que com a divulgação dos números de incêndios teve uma pressão internacional e nacional para que aumentasse os recursos para fiscalização contra desmatamentos e desflorestamento. Mas o que aconteceu é que os recursos entraram, dá para ver ali no autorizado que essa pressão levou o governo a editar mais créditos [foram autorizados R$ 61 milhões no para esse fim em 2021, contra R$ 44,32 milhões em 2020 e R$ 54,92 milhões em 2019], mas a execução orçamentária continuou no mesmo patamar. Isso mostra é que esses anos anteriores de queda orçamentária afetaram o funcionamento desses órgãos ambientais, limitaram o número de funcionários e a fiscalização, o que faz com que eles não consigam fazer a execução orçamentária. Não é só porque o governo disse ‘estamos autorizando recursos’, que de fato isso vai ser traduzido em uma execução orçamentária mais alta. É importante fazer a análise orçamentária por causa disso, para ver um pouco além do discurso.

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No dia 7 de abril é comemorado o Dia Mundial da Saúde, instituído pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1950 como forma de chamar atenção para a importância da saúde e das políticas públicas voltadas para essa área. O tema desse ano, ‘Nosso planeta, nossa saúde’ dialoga diretamente com a pandemia de Covid-19, deflagrada pela OMS no início de 2020. Nesta entrevista, a presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) Lúcia Souto fala sobre a importância da data em meio à crise sanitária que, somente no Brasil, fez mais de 660 mil vítimas. Ela explica que este ano a data marca o lançamento da Conferência Nacional Livre, Democrática e Popular de Saúde 2022, por meio da qual a Frente pela Vida – articulação criada em 2020 para denunciar as falhas na resposta à pandemia e apontar caminhos para seu enfrentamento – pretende dinamizar um processo de mobilização social em defesa do SUS
Em dezembro de 2021, o Congresso Nacional aprovou uma lei (nº 14.276), que modificava e detalhava alguns pontos da lei 14.113 que, um ano antes, criou o novo Fundeb, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação. Considerado uma vitória pela maioria das entidades e movimentos sociais que atuam em defesa da educação pública, entre os principais ganhos do novo Fundo destacam-se o seu caráter permanente – diferente da versão anterior, que tinha prazo de validade – e o aumento progressivo da complementação da União, que era de 10% e agora deve chegar a 23% em 2026. Isso, no entanto, foi resultado de uma verdadeira ‘queda de braços’ com o governo federal – que, na avaliação de Nelson Cardoso do Amaral, presidente da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), ainda não se deu por ‘vencido’. De acordo com Amaral, mudanças implementadas desde a aprovação do novo Fundeb mostrariam que a União quer “pegar de volta” parte do dinheiro a mais que vai ter que empregar na educação básica. Um dos caminhos, diz, é tentar usar esse recurso para políticas sociais executadas pelo setor privado. Outro é reduzir ainda mais sua responsabilidade pela educação federal através do decreto 10.656/2021, que inclui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) como possível beneficiária de um mecanismo de financiamento que foi criado para fortalecer estados e municípios. Nesta entrevista, além de alertar para os riscos que ainda podem existir e problematizar os efeitos dessa mudanças para os Institutos Federais, o pesquisador analisa os efeitos do Fundeb sobre a educação profissional no Brasil.