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Entrevista: 
Domingos Leite Filho

‘Se compreendemos que o trabalho é a base da produção da existência, ele também é a base da produção dos conhecimentos’

Nesta entrevista, que ajudou a compor a série de reportagens da Revista Poli sobre a história da educação profissional no Brasil, o professor da Universidade Tecnológica do Paraná Domingos Leite Filho caracteriza esse segmento educacional e explica as origens da instituição escola como responsável pelo aprendizado dos ofícios. Fala ainda sobre a concepção de trabalho que deve se articular com a educação e justifica por que faz sentido defender a formação técnica ainda na educação básica, no contexto brasileiro
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 06/08/2020 11h06 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Eu queria que o senhor começasse me ajudando a explicar como se pode definir educação profissional para além da legislação. A primeira coisa que a gente pensa é que ela faz a formação para o trabalho, que ensina os ofícios, mas isso o ensino superior também faz. Existe alguma especificidade na educação profissional?

Sim, tem uma especificidade, mas a questão não pode ser entendida separada do contexto da educação geral. Por que tem especificidade? Porque a própria história da educação, a partir de determinado momento, na história da humanidade, se torna uma necessidade institucional. A educação é muito mais antiga do que a escola, a educação é essa transmissão ancestral de uma geração a outra, do que é apropriado e produzido pela humanidade em termos de conhecimento. Anteriormente, a educação se fazia somente no âmbito da produção do lar e do trabalho imediatamente ligado à subsistência. É a partir de determinado momento na história da humanidade que nós estamos falamos de escola para todos, não uma escola, digamos religiosa, de monges, que existiam há muito tempo. Isso se dá a partir do momento na história da humanidade em que a educação se torna uma demanda social geral para a produção da vida. Seria longa a história para contar isso, mas, ao longo dessa história da humanidade, o trabalho também vai assumindo cada vez mais aspectos da ciência e da técnica que precisam ser transmitidos. Então, a história da educação profissional ela não pode ser analisada separada da história do trabalho.

Numa perspectiva que se baseia na ideia de que os homens produzem a sua existência e, a partir disso, tomam consciência da própria vida, nós precisamos ligar a história da educação profissional à história do trabalho. E esse momento da história é o capitalismo. Cada vez mais se torna necessário, por um lado, o aporte da ciência ao trabalho e, no lado das dimensões sociais mais gerais, há uma divisão social entre a força de trabalho, os que trabalham na produção diretamente, e aqueles que são proprietários. Então, você precisa moldar e adaptar – e as palavras são essas mesmas - a força de trabalho às condições da produção do capital. Nesse sentido, a educação profissional começa a separar-se da educação de modo mais geral. Mas a grande questão que se discute é qual a relação da educação profissional com a educação básica, aquela que todos os cidadãos deveriam ter, para tornar-se efetivamente um cidadão numa determinada sociedade. [Garantir] elementos não só do trabalho, mas da cultura geral que estão na educação básica: esse é o grande dilema que permeia a educação em geral e a educação profissional ao longo dos anos.

É claro que esse problema vai sendo respondido por diferentes sociedades em diferentes épocas.  Como em demais países, a formação social brasileira marca profundamente a história da educação profissional. Para analisar a história da educação profissional no caso do Brasil, nós precisamos analisar a história do trabalho e das formações sociais.

A função de ensinar um ofício, de formar para uma profissão, nem sempre foi da instituição escola. Existe um marco internacional para essa mudança? E, no caso do Brasil especificamente, quem era responsável pela formação para os ofícios que havia antes dessas primeiras iniciativas de se formar uma rede de escolas profissionais?

Não há um marco internacional do ponto de vista formal, mas efetivamente, um processo social de formação da classe operária que coincide mais ou menos com a ascensão do capitalismo industrial, quando efetivamente nasce essa ideia de uma escola geral, para todos. Mas a ideia de uma escola geral para todos vem associada também a uma ideia de que essa era uma escola para os trabalhadores que precisavam se adequar, tanto do ponto de vista do conhecimento como, inclusive, da postura psicofísica. Então, a formalização dos horários, das posições, da própria sala de aula, nas hierarquias, mostram que a escola, do ponto de vista da sua organização estética, também reproduz essa ideia. Quando, sobretudo a partir do final do século 18, início do século 19, se inicia essa expansão da escola pública, como um direito universal do cidadão, aliada a essa situação, vem também essa concepção de um lugar em que se preparam as futuras gerações para a condição do trabalho operário. Então, o marco histórico é a ascensão do capitalismo. Agora, há experiências anteriores, por exemplo, da classe trabalhadora, da constituição das suas corporações, que são anteriores à própria escola. Um dos grandes esforços da expansão do capitalismo, por exemplo, é tornar essa força de trabalho genérica igual para todos. Então, os mestres, os trabalhadores, as corporações de ofício são órgãos não só corporativos, mas de defesa de uma prática, de um saber, inclusive, de uma unidade da classe trabalhadora. Esse é também um dos objetivos que a sociedade industrial vai tratar de buscar demolir. É claro que os trabalhadores vão reagir, tentando organizar os sindicatos, mas, junto também com todo esse movimento, há um movimento intelectual que vai construindo caminhos pedagógicos. Mas me parece que o marco histórico mesmo é essa tentativa e essa efetiva ação do capitalismo, sobretudo o capitalismo industrial, de quebra da unidade da classe trabalhadora.

No caso do Brasil, costuma ser apontado como marco desse campo da educação profissional o decreto do Nilo Peçanha, de 1909, que criou as Escolas de Aprendizes Artífices. Mas há marcos anteriores? O que acontecia no Brasil naquele momento que demandava a criação daquelas escolas, que hoje são consideradas como a origem da Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica?

Claro, há marcos anteriores. O decreto do Nilo Peçanha, de 1909, tem que ser entendido, também a meu ver, como uma tentativa de resposta do Estado à situação social que o Brasil vivia, é claro que a partir dos grupos dominantes que dominavam o Estado naquela ocasião. Precisamos recuar um pouco para compreender como chegamos a 1909. A história do trabalho no Brasil é marcada por uma tradição escravocrata aliada ao colonialismo. O colonialismo tinha como condição que todo o conhecimento era produzido na metrópole, tanto que a história da educação e da ciência no Brasil, em relação, por exemplo, à dominação portuguesa, é muito posterior. A gente só vai falar em universidade no Brasil no século 20. Então, veja bem esse traço: por um lado, o colonialismo, que dá subalternidade no conhecimento técnico-científico, e, por outro lado, esse desvalor social que é associado ao trabalho, porque as pessoas que trabalham carregam em si o estigma do dominado escravizado. Essas duas marcas históricas permanecerão na sociedade brasileira e existem estudiosos, como Luiz Antônio Cunha e outros, que mostram a permanência ainda dessa herança histórica.

Agora, o que acontecia no Brasil no final do século 19, início do século 20? Resultado de muita luta e das contradições do próprio desenvolvimento social, a população negra se liberta. E, finalmente, da segunda metade do século 19 em diante, você tem um processo de lutas sociais no Brasil e, obviamente, também ao lado dela, do lado dos grupos dominantes, uma tentativa de manter sob controle a situação social que leva esse povo escravizado à sua libertação. Mas o Estado brasileiro, seja na monarquia ou na república recém-instalada, jamais assumiu para esse trabalhador liberto a sua condição de vida. Eles conquistam a sua liberdade, mas a eles não se dá nenhuma condição de vida. Ficam efetivamente abandonados. Se você observa o texto do decreto de 1909, a educação profissional está ali na íntegra, destinada a impedir que as pessoas às quais se destinava a educação profissional enveredassem pela vida do ócio, da vagabundagem e do crime. Ora, então a lei traz, por um lado, o ensino elementar básico, mas ao mesmo tempo um aspecto de correção social, de domínio. Então, quando a lei traz esse aspecto, o que se está reiterando? Por um lado, uma educação mínima para estes trabalhadores, por outro, uma educação que tem um aspecto moral que marca também essa história de sujeição à ordem do capital.

Então, naquele momento, ainda que efetivamente significasse pouco do ponto de vista da estrutura do país, eram 19 escolas espalhadas pelas várias províncias do país. Havia uma industrialização muito incipiente [com exceção de] São Paulo, onde inclusive já havia uma tradição anterior da formação na rede ferroviária. Mas na grande parte das províncias, este aspecto social corretivo e segregacionista se tornava muito mais forte do que o próprio domínio de alguma letra ou habilidade para o exercício do trabalho.

A educação profissional, pelo que o senhor acabou de falar, nasce exatamente voltada para essas pessoas que trabalhavam antes como escravos e ganha, com isso, uma marca muito negativa e preconceituosa, que mesmo a elite queria limpar. No entanto, a educação profissional e o campo de Trabalho e Educação são hoje uma pauta geralmente associada a um pensamento progressista. Como é possível se apropriar de uma pauta e de um projeto educacional progressistas, a partir de uma história tão negativizada na sua origem?

Sim. São construídas essas alternativas, que inclusive têm aspectos teóricos e de experiências práticas muito positivas, mas isso se dá ao longo do tempo. Quando eu falo desse estigma histórico, eu também acrescento que ele se põe em contradições e, na verdade, jamais foi consensual. Ao longo da história brasileira, foram se construindo lutas e modificações nessa própria estrutura. A partir desse estigma histórico, se constitui uma categoria que é fundamental para entender a educação brasileira, que é a dualidade estrutural, [que denuncia a existência de] duas escolas básicas diferentes. Uma escola básica para aqueles que ascenderão à condição de ensino superior e profissionais liberais, para as classes dirigentes. Essa é uma educação de uma cultura geral humanística, que inclusive se dissocia da prática do trabalho. E tem uma educação fundamentalmente prática, voltada para o exercício de profissões no trabalho, sobretudo no trabalho manual, o da indústria. Isso vai se reproduzindo com lutas, mas veja que, por exemplo, se nós localizarmos o período de 1930 a 40 - sobretudo em 1930, quando temos uma instituição legal da divisão brasileira pela reforma Capanema, dividindo a educação em vários ramos, sobretudo a educação geral em um ramo e a educação profissional em outros ramos - é claro que aquilo respondia à demanda da burguesia industrial reconvertida da aristocracia agrária. Mas a educação e as lutas sociais também têm suas propostas.

O trabalhador, para se assumir como autônomo numa sociedade, precisa dominar os princípios da educação e do trabalho, ou seja, ele precisa de uma base de cultura geral, uma base técnica e também a prática do trabalho.

Se compreendemos que o trabalho é a base da produção da existência, ele também é a base da produção dos conhecimentos. A origem dessa reflexão ontológica e histórica de trabalho e educação é compreender que não só a produção material, mas também a produção do conhecimento, se dá no trabalho e, a partir dele, é reproduzida para toda a sociedade. Então, contra essa perspectiva da dualidade, nós vamos ter uma perspectiva do ensino que integre tanto o conhecimento intelectual como o trabalho em si. Essa é a perspectiva [do campo] Trabalho e Educação. E ela vai dizer o seguinte: ao trabalhador não interessa somente transformar-se numa espécie de máquina de reprodução, adequada aos ditames da produção. O trabalhador, para se assumir como autônomo numa sociedade, precisa dominar os princípios da educação e do trabalho, ou seja, ele precisa de uma base de cultura geral, uma base técnica e também a prática do trabalho. Essa é a ideia que nós chamamos de uma educação unitária, uma educação politécnica. Ou seja, que permita ao jovem e à jovem que vão frequentar a escola básica que, ao final dessa escola, eles possam ter os conhecimentos básicos que lhes permitem compreender-se como cidadãos, como trabalhadores e transitar entre as diversas profissões futuras que eles poderão vir a ter.  Essa é uma longa história, de idas e vindas. No momento, nós temos muito mais regressão, mas a nossa história é rica, [com a experiência] da Fiocruz e outras que constroem essa perspectiva de um ensino integrado, politécnico, que alia ciência à cultura geral.

Mas os grupos progressistas da educação nem sempre defenderam a educação profissional como integrante da educação básica. Tendo em vista o caráter alienado do trabalho no capitalismo, que a perspectiva de vocês denuncia, por que defender a formação para o trabalho na educação básica ainda?

Eu vou responder tratando a questão em dois momentos. O primeiro momento é: independentemente de se formar para profissões, por que defender a discussão do trabalho na educação básica? Aí independe de nós estarmos tratando de uma escola de educação profissional no sentido estrito ou de uma escola de educação geral porque essa perspectiva de compreender o trabalho como base da existência humana deve estar em toda formação integral. Portanto, não podemos, a partir dessa visão, compreender a cisão daqueles que vão para a cultura humanística e aqueles que iriam trabalhar. Não! Nós temos que entender o trabalho como uma categoria central que é fundante e fundamental na sociedade. Isso não quer dizer que nós fôssemos formar para profissões. Agora chegamos ao segundo momento, que é a discussão da educação profissional em si. A educação profissional em si poderia ser pensada especificamente para formar para profissões técnicas: em informática, comunicação social, técnico em saúde ou eletrotécnico. Isso poderia ser pensado [como formação somente para um momento após] se completar essa base da cultura geral. No entanto, as sociedades, os países, as formações sociais têm suas distinções. E, no caso da sociedade brasileira, uma grande parcela da juventude ingressa [no mercado de trabalho] em função de uma necessidade absoluta de sobrevivência. Por isso, uma educação com base em alguma especialidade profissional faz sentido ético e sentido político no momento histórico vivido na sociedade brasileira. Porque esses jovens, garotos e garotas, vão ao mundo do trabalho. A educação profissional que se oferece é de muitos tipos. A educação profissional que se oferece na Fiocruz ou em geral em algum instituto federal que trabalha com o ensino médio integrado é diferente da educação profissional que se oferece por exemplo no Sistema S.

Não é uma questão de currículo, ou de concepção de educação, trata-se efetivamente das condições estruturais que permitem que uma formação integral, politécnica, se realize. A formação só deixa de ser dualista e só pode ser integral e politécnica quando as condições para a sua efetiva materialização estão garantidas. Esse é o grande desafio da educação brasileira e, em particular, da educação profissional.

Voltando à questão, faz se necessário, do ponto de vista ético-político, para uma parcela da população brasileira jovem, uma formação profissional que pode ser feita integrada ao ensino médio. Então, o ensino médio integrado nesse momento histórico não pode ser entendido como um a menos e sim um a mais, um plus. A esses jovens se daria, além da educação de cultura geral, uma educação para as profissões ainda na etapa do ensino médio. Esse caráter “politécnico” da educação básica se dá tanto para a cultura geral, sem a educação profissional no ensino médio, como para uma escola politécnica profissionalizante, tipo o ensino médio integrado que é ofertado em muitos institutos federais, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, e também em várias redes estaduais. É importante não esquecer a importância das redes estaduais da educação básica. Há muitas experiências muito significativas, que trabalham nessa perspectiva do ensino médio integrado, nas redes estaduais.

O que a atual Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica representa nessa história?

Dentro da rede federal também sempre aconteceram disputas que buscavam enfrentar, em diversos momentos, a redução da formação. Então, mesmo ao longo de todo o período de auge do tecnicismo, nos anos 1970, houve resistências dentro da rede federal. E eu considero que os institutos federais de educação tecnológica hoje, nascidos obviamente de uma política pública, mas [resultado] de uma demanda social, trazem consigo essas lutas que as escolas técnicas e Cefets tiveram ao longo de sua história. Eu considero os institutos federais uma das políticas mais importantes da educação profissional da história do Brasil, porque trazem consigo esta vinculação de uma educação que não está separada das realidades locais, com essa perspectiva da formação integral e, sobretudo, [com o objetivo] de fazer chegar uma escola de qualidade a uma região de periferia de uma grande cidade ou a uma cidade afastada do grande centro e da capital. Uma escola é um espaço de formação humana, portanto precisamos ter nas escolas condições que permitam que essa formação humana se dê de modo amplo, alargado, integral. Ou seja, nós temos que ter uma biblioteca, laboratórios, um espaço de prática de esportes, de lazer, clube de xadrez, de música, teatro... E tudo isso com profissionais da educação, que tenham condição de trabalho, condições de carreira, reconhecimento salarial. Grande parte do que eu acabei de falar está ausente da maioria das escolas do Brasil, por descaso das políticas sociais com a educação pública. Os institutos, em geral, levam essa condição, quiçá, nós tivéssemos escolas no Brasil espalhadas nas grandes, médias e pequenas cidades, com as características dos institutos. Não é uma questão de currículo, ou de concepção de educação, trata-se efetivamente das condições estruturais que permitem que uma formação integral, politécnica, se realize. A formação só deixa de ser dualista e só pode ser integral e politécnica quando as condições para a sua efetiva materialização estão garantidas. Esse é o grande desafio da educação brasileira e, em particular, da educação profissional.

Matéria publicada: 08 de agosto de 2020.

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