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Entrevista: 
Luis Felipe Miguel

‘Tem que ter movimento social organizado, tem que ter mobilização de massa, tem que ter classe trabalhadora’

Denúncias envolvendo os principais nomes da República, um pacote econômico de reformas em andamento e uma mobilização popular abaixo da gravidade da situação. Nesta entrevista, o cientista político Luis Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília, analisa o movimento das instituições e forças políticas no contexto da crise política. Ele aponta uma brutal regressão na democracia, denuncia a morte dos mecanismos de controle entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e defende que somente eleições diretas podem relegitimar o sistema político brasileiro.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 12/07/2017 09h50 - Atualizado em 01/07/2022 09h45

Quando vazou a conversa do Temer com o Joesley Batista, da JBS, a sensação era de que o presidente cairia imediatamente. Mas isso não aconteceu. Do ponto de vista político e legal, a que se deve isso?

Em primeiro lugar, a gente tem que relativizar o aspecto legal. Porque o que está claro no Brasil é que a lei vigora de uma maneira muito seletiva. Eu acho que isso é algo que, com o golpe do ano passado, ficou muito claro e há uma série de situações que mostram que a gente está caminhando para uma situação em que as forças políticas, os agentes de determinadas instituições estão medindo forças o tempo todo para ver quem consegue se impor. Se a gente puxar um pouco pela memória, há casos do Senado contra o Supremo, por exemplo, mais de uma vez. Então, o que importa é quem é capaz de mais força em determinado momento. Eu acho que isso é muito grave e é um índice de quanto nós regredimos rapidamente nos últimos tempos. É claro que o atual ocupante da presidência da república não tem condições de ficar lá. Ele não poderia nem ter chegado lá, mas vamos deixar isso de lado por enquanto. O envolvimento dele numa série de ações criminosas, o uso do cargo para realizar essas ações, para encobri-las e para acobertar os seus cúmplices está mais do que demonstrado. Então, o que seria de se esperar numa circunstância em que a gente tivesse o império da lei funcionando? Seria de se esperar uma ação muito rápida para afastá-lo do cargo, o que levaria, provavelmente, que o próprio implicado se afastasse do cargo como maneira de tentar se preservar diante de que ele saberia que seria uma investigação inevitável.

A denúncia foi apresentada pela Procuradoria Geral da República, mas é preciso que o Congresso aceite, não é isso?

Exatamente. O que eu acho que imbrica as coisas é que, como a gente não tem a segurança de que haverá punição para esses crimes e de que eles serão investigados efetivamente - porque o próprio Supremo já mostrou como age politicamente, mesmo nessas circunstâncias -, isso leva, inclusive, a que os agentes do campo mais propriamente político, que deveriam estar impulsionando a retirada do Temer, se sintam à vontade para fazer uma negociação simplesmente política, no mau sentido da palavra, e mais ou menos desprezar o elemento criminal da história.

Que atores políticos são esses?

O próprio presidente da Câmara dos Deputados hoje, as bancadas no Congresso.

Quando aconteceu o impeachment da presidente Dilma Rousseff, uma das coisas que muitos cientistas políticos chamaram atenção era o quanto aquilo evidenciava um poder concentrado nos presidentes legislativos, que a gente até então nunca se dado conta Eduardo Cunha protagonizou isso. Do ponto de vista formal e legal, existem mecanismos para burlar esse poder? Suponhamos hoje que Rodrigo Maia, por ser aliado do Temer, engavete ou demore a responder sobre o pedido de impeachment, por exemplo. Todos esses são atos de vontade, a partir de acordos político. Existem mecanismos legais para impedir?

O problema é que, a rigor, nosso sistema é planejado para funcionar de maneira que você tem algumas autoridades com determinadas prerrogativas. O presidente da Câmara dos Deputados tem a prerrogativa de aceitar ou não a abertura dos pedidos de impedimento do presidente da República exatamente porque você não pode sobrecarregar a agenda do poder Legislativo com incessantes pedidos de impedimento. Porque pedidos de impedimento chegam às dezenas todo mês. Então, se eles não têm um mínimo de substância, um mínimo de lastro social, não tem sentido parar a Câmara dos Deputados para ver pedidos irrelevantes de impedimento do poder Executivo. Mas a ideia é que essa prerrogativa vai ser controlada por aquilo que seriam os mecanismos de accountability do sistema. Isso significa que um poder responde aos outros e, portanto, ao não aceitar uma denúncia que tem lastro, simplesmente por uma conveniência política, o Rodrigo Maia estaria, ele próprio, cometendo um crime de responsabilidade no exercício do cargo. E tem, por outro lado, a chamada accountability vertical, que é o fato de que, depois, esses agentes políticos todos terão que se submeter à apreciação do eleitorado, e que, portanto, se ele está se desviando das suas responsabilidades funcionais por conta de acerto político num caso com tanta visibilidade, tão rumoroso, ele e seus aliados, certamente, deveriam ser punidos no voto.

Mas isso não está funcionando?

O nosso sistema todo está desmoronado em relação a esses princípios. Porque o que a gente tem visto são acertos entre os poderes ao arrepio da lei. No ano passado, tivemos o Ministério Público e a Polícia Federal, que são órgãos do poder Executivo, o Judiciário em vários níveis e o Legislativo se mancomunando para descumprir a Constituição, afastando uma presidente sem a identificação clara de crime de responsabilidade. Então, nós temos uma situação em que a accountability horizontal entre os poderes não está vigorando, porque o controle que existe são acertos entre os integrantes desses poderes, não os controles mútuos que a Constituição previa. E nós temos um mecanismo eleitoral muito aviltado porque as nossas eleições são profundamente manipuladas, seja pelos meios de comunicação, seja pelo poder econômico. Eu acho que parte do problema é que existe, de muito dos atores centrais, um cálculo de que, mesmo que seja feita às claras, a transgressão da lei não tem consequências, vale a pena. O que é a posição, por exemplo, do PSDB hoje, recusando-se a abandonar o governo Temer? É que todo desgaste é superado pela vantagem de ter a máquina do poder Executivo federal apoiando seu candidato, seja lá quem for, nas eleições de 2018. Então, a gente tem um enfraquecimento dos mecanismos de responsabilização dos agentes políticos e esses mecanismos são centrais no arranjo político que nós tivemos que construir a partir da Constituição de 1988. A ideia é colocar operadores em posições-chave, como, por exemplo, a presidência de um poder, como a Câmara dos Deputados, que esses operadores devem agir de acordo com a responsabilidade do cargo, e que nós temos alguns mecanismos para obrigá-los a exercerem essa responsabilidade. Mas são esses mecanismos da accountability, que não estão funcionando no Brasil.

Existe alguma tentativa de explicação sobre por que nesse nível a accountability não está funcionando?

Tem dois níveis de explicação a meu ver. Um é mais geral: é que esses mecanismos da democracia liberal não funcionam mesmo. Acho que todos os seus problemas foram realmente colocados à visão de quem quiser olhar. Vejamos, por exemplo, como o jogo da separação dos poderes, que são os mecanismos de freio e controle entre os poderes, devem funcionar segundo a teoria política. Boa parte dessa explicação está nos escritos federalistas que sustentaram a constituição dos Estados Unidos etc.. A ideia é que a ambição controle a ambição, então, o interesse individual de quem exerce um cargo de poder, seria adquirir mais poder. Então, a gente tem que pôr outras pessoas em outros cargos para controlarem essa ambição. Mas essa é toda uma explicação baseada na ambição individual, é uma leitura completamente individualista das ações políticas. Quando a gente sai dessa leitura individualista sociológica, vai ver que temos nessas posições indivíduos com as suas ambições individuais em conflito, mas que, na verdade, todos defendem os mesmos interesses básicos. Então, acho que uma parte importante da explicação sobre o que aconteceu no Brasil em 2016 é o fato de que alguns interesses dominantes sentiram que era necessário interromper um simples governo que, mesmo timidamente, estava atacando coisas que eles julgavam que eram valiosas. Existe um caráter de classe nessas instituições que faz com que, na hora em que o jogo político parece se expandir para além dos acertos entre os grupos já dominantes, essas instituições fazem refrear a transformação. A outra parte da explicação advém das nossas condições específicas no Brasil, onde a classe dominante é muito intolerante a qualquer forma de igualdade. É uma classe dominante que exige, para a sua reprodução, um padrão de desigualdade social muito forte. Então, aquilo que se alcançou, por exemplo, nos países da Europa, como um tipo de acerto ou de pacto que fez com que as instituições da democracia liberal funcionassem na medida em que também garantiam um patamar mínimo de condições de vida para as maiorias, no Brasil é considerado um absurdo por boa parte dos controladores dos recursos em poder no país. Isso faz com que os problemas dessa ordem liberal que a gente vê em abstrato, aqui se tornem muito agudos.

A Constituição brasileira é muito complexa, foi fruto de um processo muito contraditório, mas, em geral, a gente teria a Constituição liberal das mais avançadas, com uma sociedade das mais atrasadas. E isso funcionou no tempo em que a Constituição era vista mais ou menos como um documento decorativo. Mas a letra da lei nunca é decorativa, porque ela funciona para legitimar ações sociais em defesa de direito e de igualdade. Na hora em que isso começa a sair do papel e, de fato, fomenta a sociedade, leva a reações.

E em relação às eleições, ou à relação entre os poderes eleitos e a sociedade? Temos visto a tramitação de reformas com ampla recusa entre a população e mesmo o altíssimo grau de impopularidade do presidente não é suficiente, por exemplo, para que um partido como o PSDB abandone o governo. O que explica essa distância entre os políticos eleitos e os eleitores?

Mais uma vez eu acho que há uma questão geral, da forma como a democracia eleitoral se constitui, e temos as nossas especificidades. O arranjo da democracia eleitoral, entendido no seu sentido mais limitado - que é simplesmente a cada quatro anos as pessoas irem lá e dizerem quem elas querem que exerça o poder em nome delas - tem como um dos seus principais problemas o fato de que ele confere muito pouco estímulo à qualificação política das pessoas. Então, idealmente, o cidadão comum seria capaz de, a cada quatro anos, fazer uma análise de como foi o comportamento dos políticos, comparar os programas e fazer uma escolha altamente sofisticada. Mas o fato é que, durante o restante desses quatro anos, fora o dia da eleição, a gente tem um sistema político que condena as pessoas à passividade, a gente tem um treinamento social, nos locais de trabalho, nos locais de ensino, na própria família, para se submeter a relações hierárquicas, não para contribuir para produzir as decisões. As pessoas são levadas a se especializar para ganhar a própria vida em atividades que passam muito ao largo da tomada de decisões políticas. Então, é absolutamente ilusório pensar que a gente vai ter um cidadão politicamente qualificado votando a cada quatro anos, é um contrassenso. Mesmo do ponto de vista simplesmente de um cálculo de custo e benefício, o esforço para eu me qualificar politicamente é muito maior do que o peso do meu voto na eleição.  Então, é um sistema que parece prever um cidadão altamente qualificado, mas que não dá nenhum estímulo para que essa qualificação ocorra. No caso brasileiro, nós temos ainda outros elementos que contribuem. Um dos mais importantes é o fato de que a gente tem um dos sistemas de mídia menos plurais do mundo. Então, esse cidadão, se não tem estímulo para se qualificar politicamente, também vai ter tipicamente acesso a uma informação muito enviesada e que lhe dá muito pouca capacidade de refletir criticamente sobre a realidade.
Tem um outro problema que é importante lembrar: um dos limites da democracia eleitoral é o fato de que eu tenho um único voto para cada cargo, mas uma pessoa que for escolhida vai decidir por mim sobre uma infinidade de questões. Por exemplo: é claro que se a gente tivesse um sistema de responsividade dos representantes que funcionasse adequadamente, o sujeito teria que ser suicida para apoiar uma reforma [trabalhista e previdenciária] que a esmagadora maioria do eleitorado é contra. Mas boa parte dos nossos parlamentares tem um tipo de relação com o seu eleitorado que passa ao largo das grandes questões que eles estão decidindo. Então você tem, por exemplo, toda essa bancada de sacerdotes religiosos que buscam uma vinculação com seu eleitorado a partir do seu discurso moral, retrógrado. Mas o mesmo eleitor que vai votar no candidato tal porque ele é contra o combate à homofobia, ou é contra a legalização do aborto, vai ser contra a reforma da Previdência e já não vai ligar para isso na hora de decidir seu voto. Então existe uma série de dificuldades para fazer com que uma vontade popular se expresse por meio do voto.

Isso diminui a importância do voto?

O voto não é irrelevante. No caso brasileiro, nós temos na presidência da República um cargo com maior visibilidade, com uma disputa que é mais clara para boa parte do eleitorado. Se a gente olhar a história das eleições presidenciais no Brasil, elas mostram que, aí sim, há uma preferência política por parte do eleitorado, de uma maneira muito simplificada, mas mostram. Esse projeto que Temer está levando, de desnacionalização, redução de direitos e desprezo ao combate à desigualdade, é um projeto que não consegue uma maioria para eleger um presidente. Por isso foi necessário um golpe no ano passado, porque esse projeto não passa pelas urnas. Mesmo os governos que adotaram parte dessa política, adotaram com um discurso que não ia nessa direção. Então, com todos os seus defeitos, suas limitações, o chamamento à eleição ainda permite de alguma maneira que pessoas comuns indiquem algumas prioridades de governo. No nosso caso, como esse campo fica centrado na figura do presidente da república, isso se manifesta nas eleições presidenciais. Então, os governos do PT conseguiram várias reeleições, mesmo com todos os seus problemas, porque houve uma capacidade de compreensão por parte da população de que existia uma relação entre esses governos e determinadas políticas sociais que eram aprovadas.

Essa agenda que está sendo posta em prática, segundo as pesquisas, é rejeitada pela maioria esmagadora da população. Muita gente que apostava num ascenso do movimento de massa, em função do impeachment ou das reformas, aponta que ele não aconteceu como se esperava. Como você avalia a capacidade de organização e de participação mais direta da sociedade como um todo, os grupos mais à direita, que conseguiram capitalizar pelo menos uma energia muito importante ali às vésperas do impeachment da Dilma? E o que está errado do outro lado que não tem conseguido organizar uma reação mais massiva?

É uma questão bastante complexa. Vou começar com as manifestações pró-impeachment. A partir de 2013, quando as manifestações que nasceram claramente com uma pauta à esquerda foram, em grande medida, ressignificadas pelos meios de comunicação, a gente teve uma capacidade de mobilização à direita, que vem, de um lado, da exploração do ressentimento de uma parte da classe média com o que ela via como um avanço das classes populares em relação aos espaços que lhe eram próprios.  As pessoas costumam folclorizar isso, dizendo que era porque tinha pobre no aeroporto, mas não é isso. É porque, por exemplo, o ensino superior, que no Brasil sempre foi um diferencial que a classe média legava para os seus filhos, teve seu acesso democratizado. As políticas compensatórias do governo do PT estavam reduzindo a vulnerabilidade de uma classe da mão de obra que costumava servir a essa classe média por um preço muito aviltado, no emprego doméstico, etc. A PEC das domésticas ampliou os direitos e quem pagou a conta foi a classe média. Então a classe média tinha uma série de ressentimentos, tanto simbólicos quanto materiais, com esse avanço das classes populares. E houve então a capacidade de mobilizar esse ressentimento num discurso anticorrupção, que é historicamente utilizado dessa forma. Mas eu acho que isso não se constrói de uma hora para outra. Na verdade, a gente tem um movimento grande de reafirmação de um discurso à direita no Brasil, com vários institutos muito bem financiados funcionando. Isso veio acompanhado de um discurso contra os direitos, uma renovação do discurso meritocrático que marca uma inflexão no debate político no Brasil para a direita. Acho que isso é algo que foi sendo construído ao longo do tempo e chegou a essa mobilização que levou ao impeachment da Dilma - não que a mobilização tenha levado ao impeachment, mas ela foi importante para legitimar o movimento pró-impeachment.

E o que há de errado no lado da esquerda?

Eu acho que tem muita coisa de errado. Como muitas pessoas dizem, houve um esforço de desmobilização por parte dos governos do PT. Isso foi parte do acordo feito para a sua permanência no poder. De uma maneira bem simplificada, era: ‘a gente troca a desmobilização do movimento popular, sobre os quais a gente tem influência, pela aceitação de políticas de redução da miséria’. Esse foi o pacto petista. Então, na hora em que é preciso mobilização, é difícil, não é simplesmente você ligar e desligar uma chave. É claro que o início do segundo governo da Dilma, quando, tentando conseguir maior estabilidade, ela aceita o programa da direita, faz o ajuste etc., também não ajudou a obter essa mobilização. Mas nós temos, mais seriamente do que isso, o fato de que esse discurso da direita, da meritocracia, um tipo de enquadramento da realidade em que a conquista de direitos acaba ficando em segundo plano etc., também foi incorporado pela esquerda no poder. Então, a gente teve muito uma noção de que o diferencial do governo do PT era a abertura de maiores oportunidades para todas as pessoas, oportunidades essas que seriam preenchidas pelo mérito próprio. Houve uma aceitação do discurso do empreendedorismo e houve esse foco na ideia de classe média trabalhadora, que eu acho que é também significativo. Foi um discurso menos voltado para a solidariedade social e mais voltado para a mobilidade social individual. E isso enfraquece as condições de mobilização. É claro, as condições objetivas da vida no capitalismo contemporâneo se impõem, há um crescimento de greves, mas se a gente for ver, boa parte dessas greves são greves feitas à margem das direções sindicais. Eu acho que muito do que a gente vê a partir de 2013 é uma quantidade muito forte de insatisfação social, mas que não encontra mecanismos para se manifestar de uma maneira mais efetiva.

Você fez referência ao pacto dos governos petistas. Desfeitos esses acordos com o impeachment, como você avalia a capacidade e o desejo, o esforço, de mobilização e de organização mais por baixo que o PT e as organizações a ele vinculadas, como a CUT, por exemplo, têm feito desde o impeachment?

Primeiro, só queria dizer uma coisa: o fato de que o PT adotou essa política conciliatória no governo nos levou a esses impasses todos, não tenho dúvida quanto a isso, mas nada quer dizer que se ele tivesse adotado uma política mais ostensiva isso não teria entrado em pane em outro momento, talvez até mais cedo. Não tem saída fácil. Eu acho que o PT tem uma trajetória invulgar como partido de esquerda, mas existe um momento de inflexão que é longo, que vai acontecendo a partir dos anos 1990 até a primeira eleição vitoriosa do Lula, em 2002. É um movimento de um pragmatismo muito grande, o que significa uma redução dos seus horizontes para aquilo que é factível num determinado momento, e o entendimento de que é necessário aprender a jogar o jogo tal como ele existe. Foi isso que Lula fez, aceitou o esquema corrupto de financiamento de campanha, entendendo que sem ele não chegava ao poder no Brasil. E não chegava mesmo, mas aceitou. O PT aceitou o esquema de comprar as maiorias no Congresso loteando o Estado. O Miro Teixeira deu há pouco tempo uma entrevista lembrando o começo do governo Lula, dizendo que as opções eram fazer um diálogo com a direita no Congresso para convencê-la da possibilidade de políticas sociais ou comprar essa direita. E daí venceu a opção de comprar. Quem é que vai dizer que não era a opção mais realista? Então, o PT se adaptou a tudo isso. Isso deu certo, vamos dizer, durante 12, 13 anos. Eu acho que hoje o PT está viciado nisso. Claro que o PT é amplo, tem vários setores com posições bem diferentes, tem setores com posições muito lúcidas, mas eu acho que o campo majoritário do PT - que inclui o próprio ex-presidente Lula e a nova presidente do partido, a senadora Gleisi Hoffmann - tem uma enorme dificuldade de transferir a luta política de volta para as ruas. A gente tem visto isso desde o golpe. É sempre a escolha do menos pior. Marcar posição só tem sentido se você está sinalizando para a rua que é hora de um enfrentamento maior. E essa lógica não entra de volta no campo majoritário do PT. O Lula tem dado sinais muito ambíguos sobre o que seria um eventual terceiro governo. E toda lógica que eu vejo é baseada na correlação de forças da política institucional. Veja, se o Lula voltar à presidência, depende de quem vai ter a maioria no Congresso para saber o que ele pode e o que não pode fazer. Agora, você não vai construir num passe de mágica um congresso à esquerda ou um congresso progressista. Tem que ter gente pressionando, tem que ter movimento social organizado, tem que ter mobilização de massa, tem que ter greve, tem que ter classe trabalhadora. Por um lado, a pressão extra-institucional do capital, que é permanente, é aceita como parte das regras do jogo, mas do lado do campo popular se imagina que só se pode agir pelas eleições ou pelos representantes eleitos. Então, acho que o PT e os seus braços - portanto, a CUT entra nessa conta - teriam que reaprender a fazer política com mobilização de massa.

E a esquerda que se organizou fora, de forma crítica ao PT?

Olha, eu acho que também não está fácil. Porque nós temos um problema, que é o fato de que o PT se constituiu por décadas como sendo a espinha dorsal da esquerda brasileira. Mesmo quem estava contra o PT, organiza a sua própria posição em relação à posição do PT. O setor à esquerda do PT está permanentemente se construindo como sujeito político a partir da sua diferenciação com o PT, o projeto deles é uma diferença em relação ao PT. Acho que isso inibe o crescimento desses setores. Eu acho que, eleitoralmente, as eleições de 2016, apesar de toda a realidade específica dos pleitos municipais, mostram que a desidratação eleitoral do PT não foi acompanhada pelo crescimento de opções à esquerda. A principal alternativa eleitoral à esquerda do PT, que é PSOL, tem uma enorme dificuldade de superar um nicho de elite. É claro que tem realidades diferentes, em Belém, etc., mas, de maneira geral, essa caracterização é correta. O PSOL, que nasce de uma dissidência do PT, já nasce com vários problemas que o PT desenvolveu ao longo da sua história. Nasce como um partido eleitoral, com uma fraca organicidade por movimentos sociais e com uma base muito concentrada numa classe média universitária radicalizada. Tem pessoas e discussões interessantes no PSOL, mas, até o momento, eu não vejo esses limites sendo superados. Fora disso, a gente tem uma multidão de coletivos, de movimentos, de grupos que vem de diferentes setores, que nascem das periferias, que nascem das chamadas pautas identitárias, que estão se manifestando. Eu acho que a gente tem no campo do feminismo, do movimento LGBT, do movimento negro, muita efervescência, mas ainda é algo que parece muito descoordenado e incapaz de uma ação muito efetiva. Seria uma longa discussão o porquê disso. Mas, em suma, ao mesmo tempo em que existe alguma desconfiança, em alguma medida até bastante razoável, em relação aos partidos, organizações tradicionais da esquerda, por outro lado, não existe um substituto que dê efetividade à luta política colocada. Então, acho que ainda existe um grande esforço de organização e de articulação para ser capaz de ter uma ação mais efetiva. E é necessário superar uma impressão que eu vejo muito disseminada, que acho que explica por que essas reformas que o governo Temer está implantando têm, ao mesmo tempo, uma enorme rejeição e uma baixa mobilização contrária, que é o sentimento de que nós estamos derrotados de antemão. Eu acho que o golpe, de alguma maneira, reforçou isso. A fúria avassaladora do programa da direita começou a ser implantado, levou a um estado de choque, parece que não adianta fazer nada porque eles vão sempre ganhar, leva a uma passividade. Isso tem que ser combatido. E outra coisa é que é necessário que a classe operária, a classe trabalhadora, de uma maneira mais ampla, volte a ocupar um papel de protagonista nesse processo. Nós temos um elemento específico da cooptação das elites sindicais de diferentes maneiras, a começar na gestão do próprio sistema financeiro, que levou àquilo que o Chico de Oliveira e outros vão discutir, o fato que você tem representantes máximos da classe trabalhadora administrando os fundos de pensão. Tem o rentismo sendo apropriado, que destrói a classe trabalhadora. É uma contradição insolúvel. Tem vários motivos para a gente explicar isso, mas esse é fundamental: o fato de que não se combateu o discurso do empreendedorismo, o discurso da mobilidade individual, não se fortaleceu a solidariedade de classe. Eu acho que a gente avançou nos últimos meses, a greve de 28 de abril mostrou algumas vitórias, acho que existe espaço para avançar. Mas precisa de muito trabalho, e trabalho de base, trabalho de porta de fábrica, trabalho de reativação da mobilização operária, apesar de todas as dificuldades, inclusive pela mudança no cenário econômico, pela crise econômica, que sempre dificulta, mas é um caminho absolutamente necessário. Uma vez que nós vivemos numa ordem capitalista, a resistência da classe trabalhadora tem um peso muito importante para fazer o sistema reagir.

Supondo que o presidente Temer não resista, as cartas estão postas: eleições diretas, indiretas, eleições diretas gerais, antecipação das eleições de 2018 com ampliação do mandato para 5 anos... Qual é a sua avaliação sobre o que deveria ocorrer e os mecanismos jurídicos necessários para cada uma delas?

Se a gente for seguir a letra da lei, a gente vai ter uma eleição direta. Mas ninguém sabe direito como isso ocorre. Quando o Temer esteve ameaçado, logo depois da divulgação das gravações do Joesley Batista, começou uma guerra, porque a lei não é nada clara sobre como a eleição ocorre: se o Senado e a Câmara têm pesos iguais, se precisa filiação partidária ou não, se é só parlamentar que pode ser escolhido ou não... Tem um vácuo de regulação. Agora, esse caminho, mesmo no pouco que ele nos apresenta, é muito ruim. A gente tem hoje uma crise de legitimidade de todo o sistema político: um governo que não foi eleito implementando um programa que é o contrário do que os eleitores propuseram, um nível de aprovação popular chegando no zero, um Congresso Nacional, em grande medida, atingido por denúncias seriíssimas, um judiciário igualmente alvo de desconfiança... Está tudo com uma crise de legitimidade grande. Evidentemente, nesse sistema, uma eleição indireta não tem condição de relegitimar o exercício de poder no país. Então a eleição, o chamamento às urnas, é a forma clássica de se buscar injetar legitimidade num sistema que está em crise profunda.
Mas como isso se daria na prática? Como se resolve essa tensão entre o que a legislação garantiu até agora e o que a urgência do momento político requer? Quais são os mecanismos? Temos exemplos disso na história?
A lei não são tábuas sagradas, a lei é um código que visa dar um determinado caminho que, quando chega a um momento de impasse, precisa encontrar outra solução. Às vezes há um legalismo exacerbado porque, é claro, mudar a lei a cada situação não é o melhor caminho, mas existem situações que são graves o suficiente para isso. Vou te dar um exemplo. Quando, no finalzinho do século passado, o Fernando de la Rua renunciou à presidência da Argentina, e daí houve vários presidentes assumindo sucessivamente, nenhum deles conseguindo ficar no cargo, a solução que foi dada lá, foi antecipar as eleições.

Isso não era previsto legalmente?

Não era previsto.

E essa solução foi dada por quem?

Essa solução foi dada porque, naquele momento, o conjunto das forças políticas da Argentina estava temendo uma revolução.Essa é a diferença em relação ao nosso caso. Na Argentina, as pessoas estavam indo para a rua com aquele ‘que se vaiam todos’, tinha assembleias nos bairros, tinha uma efervescência. Estavam com medo de uma revolução e decidiram que tinham que legitimar o sistema político por meio das eleições. Então foi feito um acordo com as forças políticas mais relevantes, uma eleição completamente atípica, porque os partidos políticos na Argentina não conseguiriam se unificar em torno de um candidato por partido, então foram feitas várias candidaturas por partido. E foi aí que o Néstor Kirchner se elegeu, tendo saído por uma ala minoritária do partido peronista. Foi feito um acordo que incluía, sobretudo, quem estava ocupando a presidência da república naquele momento, que entendeu que não tinha condições de tentar arrastar aquele mandato até o final.

Um acordo desses aqui precisaria necessariamente da participação do próprio Temer?

Eu não sei, cada circunstância é diferente. Mas lá foi isso: a presidência da república, um congresso que aprovou as novas regras, atropelando todos os prazos dos arranjos legais, e a Suprema Corte, que abençoou tudo isso, embora pudesse pegar uma constituição na gaveta e dizer: “não pode”. Então, se existe vontade política, e se a gente tem uma maioria expressiva das forças, é possível fazer isso, porque se entende que são situações excepcionais. Não é uma camisa de força. Claramente, nesse momento, a obediência à lei significa o agravamento da crise política, a gente vai ter uma eleição indireta, vai colocar um Rodrigo Maia na presidência da República? Alguém que não tem peso político, não tem estofo, não tem legitimidade, não tem competência para ocupar o cargo e não vai ter nenhum tipo de legitimidade. Supondo que o Temer caia, a gente vai viver mais um ano e meio com um governo zumbi. Se o Temer não cair, é a mesma coisa. Então, eu acredito que é possível construir uma maioria, mas isso depende, a meu ver, de uma pressão das ruas para que os agentes políticos que estão nessas posições de poder entendam que as outras soluções vão ser mais custosas para eles. Não é impossível e é a única solução que permite vislumbrar uma luz no fim do túnel. Idealmente, tem que ser eleições diretas gerais. Porque essa carência de legitimidade que atinge o poder Executivo atinge, igualmente, o poder Legislativo. Agora, isso é mais difícil. Idealmente seria antecipação das eleições, o que, inclusive, resolve o que é uma das grandes ressalvas, que a ideia de convocar uma eleição para um mandato muito curto .

A bandeira das eleições diretas apareceu primeiro em segmentos da esquerda e ganhou ampla aprovação popular. Curiosamente, ela começou a ganhar algum eco também em outras personalidades e instituições, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o jornal Folha de S. Paulo, que defendeu essa saída em editorial.  Pensando no xadrez econômico e partidário, o que está acontecendo nesse momento?

São especulações, mas eu acho que, no campo da própria direita, existem personalidade e grupos que são capazes de entender que não é possível continuar arrastando essa crise irresponsavelmente dessa maneira.  Eu imagino que essa preocupação ajuda a explicar a posição do Fernando Henrique nesse momento. Parte da direita também está preocupada com a sua própria viabilidade eleitoral. Por exemplo, quem são os deputados da bancada do PSDB que são contra a permanência do apoio ao Temer? São os deputados mais jovens, aqueles que têm um horizonte de carreira política maior e que, provavelmente, têm suas bases eleitorais menos consolidadas, de modo que esse peso do rechaço ao apoio a esse governo pesa mais na conta deles. Para deputados que já estão mais acomodados, o toma lá dá cá do governo com eles nesse momento pesa mais. Então, acho que alguém como Ronaldo Caiado, por exemplo, que quer ser governador de Goiás, entende o desgaste que a manutenção de uma posição contra as diretas nesse momento implica. É justamente porque existem essas posições dentro dos grupos políticos conservadores que eu não acho que seja fantasiosa a ideia de que se pode caminhar para produzir um consenso amplo de que as diretas são necessárias. Porque o que o resto da direita pró-Temer ou pró-indiretas tenta fazer é dizer que as diretas são uma campanha lulista. Mas isso não é verdade, embora é claro que na hipótese das eleições diretas o ex-presidente Lula seja uma personagem importante da história. Mas, mais do que isso, está em jogo a sobrevivência política, a sobrevivência do próprio sistema político.

A Operação Lava Jato, que é protagonista nessa crise, foi analisada por muitos como uma estratégia de perseguição e criminalização do PT e da esquerda. Mas de repente esse caminho da investigação chega ao Aécio e ao Temer. Como o senhor explica isso?

Mais uma vez, falando a partir do conhecimento fragmentário, a Lava Jato é um processo altamente complicado mesmo para quem é especialista nisso. Eu acredito que claramente houve uma instrumentalização da Lava Jato com o sentido de atingir o PT. Isso começa na campanha eleitoral. Acho que a estratégia inicial era fazer com que a Dilma fosse derrotada, e depois isso leva ao impeachment - embora o processo de impeachment não tenha nada a ver com a Lava Jato, foi ela que criou o caldo para que se reclamasse a saída da presidente, para queimar a atuação do PT etc. Mas eu acho que até o momento em que a Dilma cai, a gente tem uma coalizão de forças contra ela e o PT que se expressa de diferentes maneiras, inclusive, na Lava Lato. Essas forças estavam unidas com esse objetivo comum, que foi alcançado. Eu acho que depois desse momento, a partir da hora em que o Temer assume a presidência, principalmente em agosto, quando ele assume definitivamente, os conflitos dessas forças começam a aflorar mais, e daí a gente tem tanto conflitos internos no bloco do poder quanto conflitos internos nos próprios operadores do campo jurídico. Isso inclui tanto a justiça quanto o Ministério Público, que têm alguns operadores mais vinculados ao PSDB. Eu acho que o juiz Sergio Moro claramente é um desses, tem articulação clara com o PSDB, tanto que ele perde o protagonismo a partir do momento em que a investigação, de fato, chega ao PSDB e PMDB. Mas há também, a meu ver, uma parte imbuída de um certo messianismo, a ideia de que caberia ao judiciário limpar a política brasileira, custe o que custar. Então acho que tem conflitos internos aí.

Muitos analistas têm dito que essa crise política expressa o fim do sistema político da Nova República. Você concorda com isso? O que isso significa exatamente?

Eu acho que sim, que a gente tem uma ruptura importante em relação à ordem estabelecida a partir da Constituição de 1988. Eu acho que tem dois pilares que foram quebrados já com o golpe. O primeiro foi a ideia de que o exercício do poder depende da anuência popular por meio do voto. Na hora em que há o impedimento da presidenta da república claramente sem crime de responsabilidade, a gente está entrando num momento em que a decisão eleitoral é tutelada e a decisão das urnas pode ser revertida a partir de um conjunto de interesses que devem prevalecer. E foi rompida também a noção de império da lei do Estado de Direito. A partir daí, a gente tem andado para trás também em vários outros sentidos. Eu falei antes aqui da questão de um recuo do discurso do direito, eu acho que um grande avanço da Constituição de 1988 foi que ela colocou a luta política - num sentido mais amplo, não a luta eleitoral ou partidária - no terreno dos direitos. A gente disputava direitos, mas temos recuado no vocabulário da luta política nos últimos anos. E o golpe acentuou isso. Agora, o direito está cada vez mais entendido exclusivamente como direito individual. Eu sempre lembro as ocupações de escolas, que traz um movimento importante por vários direitos, mas o que vai ser mobilizado frequentemente nos embates é o direito individual de entrar no espaço escolar num determinado momento, que as ocupações estariam impedindo. A gente tem tido também um avanço da repressão. Eu acho que essa é outra consequência muito séria: a repressão policial contra manifestações de rua, cada vez mais violenta, a vigilância estatal sobre os movimentos, a invasão de espaços vinculados a movimentos sociais, que são frequentes, um aumento da censura, principalmente, por ordem judicial, com a tentativa de restrição à liberdade de expressão de várias formas dentro do aparelho de Estado... Então a gente tem uma ampliação da repressão e uma restrição do exercício das liberdades que têm acontecido aceleradamente. Então, algo de um espaço que, de alguma maneira, a Constituição de 1988 consagrou, um espaço balizado por uma democracia - mesmo que limitada, mas uma democracia, no sentido de dar ao povo formalmente a capacidade de escolher seus governantes -, um espaço de construção de direito, num entendimento alargado de cidadania que era muito importante, e uma ideia de ampliação da vigência às liberdades individuais e coletivas, isso foi fraturado com o golpe, com o governo Temer.

A reforma política é a resposta a essa crise?

Eu acho que a gente tem que entender o que fala quando trata de reforma política. Boa parte dessa reforma política é uma mera reforma do sistema eleitoral. Reforma eleitoral, a meu ver, não vai nos dar solução para nada. Nosso sistema eleitoral tem problemas, mas se a gente for observar todas as outras experiências dos diferentes sistemas eleitorais do mundo, em cada um as pessoas estão reclamando do próprio sistema eleitoral e querendo encontrar um melhor. O sistema eleitoral o que é? A mecânica de transformar o voto em cargo no Estado, então eleição em turno, eleição em dois turnos, voto majoritário para o parlamento, etc. Todos têm prós e contras. Nem vou entrar nessa discussão, acho até que o nosso sistema, particularmente, não é tão ruim assim. O que são os pontos de estrangulamento do nosso regime político que mereceriam, então, entrar uma reforma política entendida de uma maneira ampliada? Se a gente pensa que a reforma política deve significar uma maior capacidade de que as pessoas influenciem na tomada de decisões políticas, ou seja, ter uma política que responda mais e melhor aos interesses dos cidadãos comuns, então o nosso caminho de reforma política inclui ampliar, construir e solidificar as fronteiras que impeçam o poder econômico de se manifestar na esfera política Isso significa não apenas o fim de qualquer forma de financiamento privado de campanha, mas uma regulação rigorosa contra o lobby, contra as formas de pressão permanente do poder econômico sobre o Estado. Implica a ampliação da laicidade do Estado, que hoje no Brasil é um problema sério porque existe hoje uma legislação que proibiria o proselitismo político nas igrejas mas que não é cumprida. Mais do que isso, é necessário controlar o acesso das igrejas aos meios de comunicação, é necessário controlar, talvez até vetar, a candidatura de sacerdotes, porque isso é um problema sério na nossa democracia. E é necessário ampliar a pluralidade dos meios de comunicação, porque não existe democracia sem que se disponibiliza ao público uma variedade de perspectivas de visões do mundo, de leituras da realidade. O exercício da liberdade de expressão não são as empresas de mídia falando o que querem, mas sim um direito do público, de ser informado de maneira plural. Porque se a gente não amplia os espaços de participação para que as pessoas façam política, entendam política e, portanto, sejam capazes de cobrar os seus representantes, a gente vai continuar tendo uma democracia de baixa intensidade. De repente, abrir espaço na vida cotidiana, nos bairros, nas empresas, nas escolas, pra que as pessoas se integrem aos processos de tomada de decisão.

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Analistas discutem motivações e desdobramentos possíveis da crise política brasileira, que atinge novo auge com a denúncia do presidente
Michel Temer consegue se manter no cargo ou seu governo tornou-se insustentável? O que acontece se ele cair? O que precisa acontecer para que sejam convocadas eleições diretas nesse momento? A quem interessa a convocação de eleições indiretas? Essas são algumas das questões que pairam hoje sobre o cenário político brasileiro após a revelação bombástica do conteúdo das conversas entre Joesley Batista e o presidente da República, e sobre as quais se debruça o professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Adriano Pilatti nesta entrevista, realizada poucos dias antes da aprovação da PEC das eleições diretas na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Doutor em Ciência Política, Pilatti fala sobre os possíveis desfechos de uma crise política que se aprofunda em meio à sucessão de denúncias feitas pela Operação Lava-Jato. O pesquisador, que não dá como certa a saída de Michel Temer, mas acredita ser improvável sua permanência, avalia que uma crise de legitimidade dessa magnitude só pode ser resolvida pelo voto popular, submetendo a agenda das reformas do atual governo ao crivo de debate eleitoral. Ele ressalta, no entanto, que para isso acontecer a população precisa sair às ruas para pressionar os setores do Executivo e do Legislativo que hoje se articulam para buscar um “acordão” para tentar resolver essa crise por cima.
Centenas de milhares de pessoas ocuparam as ruas de diversas cidades brasileiras em 2013 para, entre outras coisas, denunciar um sistema político incapaz de representar os interesses de boa parte da população. Indistintamente, os partidos políticos foram recusados, negados na sua própria forma. Parte dessa energia se canalizou para novos modos de organização da esquerda, de teor anarquista. Outra parte desaguou em movimentos de direita, alguns dos quais agora, cederam à tentação das urnas. O grosso da população simplesmente não acredita mais na política. De lá para cá, uma minirreforma política mudou algumas regras eleitorais, sem mexer no essencial. A Lava Jato apontou o envolvimento de quase todos os partidos em esquemas de corrupção. E o Brasil assistiu ao impeachment de uma presidente eleita, num processo que, embora tenha seguido todos os trâmites legais, foi denunciado por muitos como uma manobra jurídica para consagrar um golpe político. É em meio a esse verdadeiro caldeirão que acontecem, agora em outubro, as eleições para prefeituras e câmaras municipais no Brasil. O descrédito da política, o futuro imediato do PT, o lugar do PMDB e o papel desempenhado pelos partidos e grupos mais conservadores são temas que João Roberto Lopes Pinto aborda nesta entrevista. A partir da conjuntura atual, o cientista político, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e da PUC-RJ, aponta os interesses econômicos envolvidos e explica que o combate à corrupção e a defesa da democracia requerem a desprivatização do Estado.
Com uma janela de poucos dias, a Avenida Paulista, antes tomada de verde e amarelo por aqueles que pediam o impeachment, se vê ocupada, agora, por muitos outros tons daqueles que gritam o Fora Temer e pelas Diretas já. Nessa entrevista, o professor titular do Instituto Federal de São Paulo, Valério Arcary, faz uma análise profunda da correlação de forças atual, a direitização da classe média e o que levou ao afastamento de Dilma. Arcary explica, entretanto, porque não está confirmado que a direita leve a melhor nesse cabo de guerra. O autor de ‘O Martelo da História’, faz provocações ao que chama de esquerda radical – aqueles que devem ter a clareza do papel anticapitalista que o grito de Fora Temer deve cumprir neste momento.
O que os manifestantes de verde e amarelo têm a ver com ideias liberais, novos e velhos partidos e institutos conservadores com atuação de mais de duas décadas no país?
Nem militares, nem quebra na democracia. Para o historiador Felipe Demier vimos no dia 31 de agosto com a deposição de Dilma Rousseff um novo tipo de golpe. Mas para entendê-lo, é preciso dar alguns passos atrás na história e analisar como se constituiu nosso regime democrático. Segundo o professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), vivemos em uma democracia blindada. Com os “poros fechados” para os interesses populares, as democracias ocidentais têm aperfeiçoado seus vários instrumentos de blindagem desde os anos 1980, quando se formataram para permitir no teatro da representação política apenas os desejos do capital. Efetivar contrarreformas, retirar direitos, implantar ajustes fiscais têm sido sua função. Não por acaso, o script do governo de Michel Temer contém todos esses ‘objetivos’. “Ele foi colocado lá para isso”, nota Demier que analisa, contudo, de maneira singular ao tom geral o que foi “golpeado”. Para ele não houve golpe na democracia, mas golpe no governo – e isso só aconteceu graças à democracia blindada: “O atual regime democrático blindado se mostra capaz de, por meio dos seus próprios procedimentos constitutivos, substituir peças políticas incômodas quando for necessário para o capital sem ter de alterar o próprio regime como antes era o padrão clássico dos golpes políticos. Por meio da democracia blindada, a classe dominante brasileira se vê dispensada da tarefa de um golpe de regime propriamente dito, de um golpe militar. É uma democracia tão blindada que se mostra capaz de caçar o sufrágio universal de 54,5 milhões de brasileiros sem ter que recorrer a um golpe de força”.
Uma manchete informava que 50% da população brasileira preferiam a permanência de Michel Temer na presidência e apenas 3% queriam a realização de novas eleições. Os números, alardeados nas páginas da Folha de S. Paulo, um dos maiores jornais brasileiros, mostravam uma diferença enorme em relação aos resultados das pesquisas anteriores. Houve quem desconfiasse. O correspondente internacional Glenn Greenwald publicou um texto contestando os dados, outros jornalistas se engajaram na apuração, desvendando inclusive os números não divulgados pelo Instituto Datafolha, responsável pela pesquisa. E foi aí que o país assistiu àquele que pode entrar para a história como um dos maiores casos de manipulação explícita de informação na imprensa brasileira. Classificando o episódio como “fraude jornalística”, os repórteres mostraram que, na pergunta que tratava sobre a convocação de novas eleições, 62% dos entrevistados se mostram a favor e 30% contra. Os 3% estampados nas páginas da Folha referiam-se apenas àqueles que citaram espontaneamente as eleições como alternativa numa pergunta que, na verdade, dava apenas duas opções: a permanência de Temer ou a volta de Dilma. Em matéria que tentava responder à polêmica, o editor-executivo do jornal disse que não houve “fraude” e que o jornal tem o direito de escolher os dados da pesquisa que julgar mais relevantes para noticiar. Em coluna publicada no domingo 24 de julho, a ombudsman da Folha – cuja função é fazer leitura crítica do veículo – afirmou que o jornal errou e “persistiu no erro”. Nesta entrevista, o professor Afonso de Albuquerque, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que estuda a relação entre mídia e política, comenta o episódio, cita outros casos semelhantes e faz uma análise sobre o papel das pesquisas de opinião e o comportamento da imprensa brasileira na crise que resultou no impeachment.
A partir do ‘programa’ de um eventual governo do PMDB, que retira direitos dos trabalhadores, analistas discutem os interesses econômicos por trás do processo de impeachment. Papel de conciliação desempenhado pelo PT é apontado como um dos problemas
Jairo Nicolau é cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista em sistemas eleitorais. Nesta entrevista, concedida poucos dias depois da votação da admissibilidade do impeachment pela Câmara dos Deputados, ele analisa o movimento do PMDB na direção do impeachment, destacando o papel que o presidente da Câmara Eduardo Cunha teve ao longo de todo esse processo, caracteriza o momento difícil do PT e comenta a imprevisibilidade da situação política do país num eventual governo Temer.
O que esperar da movimentação político-partidária em relação ao impeachment, que deve ser votado em plenário no próximo domingo, 17 de abril? Depois da aprovação do processo pela comissão instalada na Câmara, a cada dia novas mudanças de ‘lado’ mostram o zigue-zague dos partidos no legislativo. Para Antonio Augusto de Queiroz, conhecido como ‘Toninho’, que é analista político e diretor de documentação do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o principal fator dessa mudança é o medo dos partidos conservadores de serem pegos na Lava Jato. Segundo ele, o PMDB tem convencido esses parlamentares de que a retirada do PT do governo é a única forma de impedir que a Lava Jato chegue até eles. Nesta entrevista, Toninho fala também sobre o Projeto de Lei 257, proposto pelo governo como continuidade do ajuste fiscal e que, segundo ele, pode promover um verdadeiro desmonte do Estado brasileiro. "Esse é um dos erros mais crassos do governo", diz.
Sociólogo, professor da Universidade de São Paulo (USP) que estuda as transformações no mundo do trabalho e a organização sindical, Ruy Braga defendeu, em artigo recente, que a intensificação das greves nos últimos anos é um fator importante na análise da conjuntura atual. Nesta entrevista, ele critica as opções políticas e econômicas que têm sido adotadas pelo governo, ressalta as motivações da insatisfação do empresariado e dos trabalhadores, desenha o cenário futuro no caso de um suposto impeachment e alerta para o risco de uma efetiva “ditadura” que, mesmo sem tanques nas ruas, signifique a restrição de liberdade civis.