Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Gabriel Grabowski

‘Toda a história da educação brasileira é uma relação promíscua entre privado e público, entre pago e gratuito’

Nesta entrevista, Gabriel Grabowski, professor da Universidade Feevale, no Rio Grande do Sul, fala sobre a criação, as mudanças e as contradições que marcam a trajetória do Sistema S, criado na década de 1940 e atuante até os dias de hoje
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 02/08/2020 13h34 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Na série de reportagens que produzimos sobre a história da educação profissional, enfocamos primeiro o início do século, com a criação das Escolas de Aprendizes Artífices, e depois já os anos 1930 e 1940, com a criação do Senai. Essa demarcação é adequada? Existe algum marco que aproxime e caracterize, de forma semelhante, essas duas décadas?

A história da educação brasileira é caracterizada por ausência de planejamento a médio e longo prazo e por descontinuidades entre fases e governos. O que existe nestas décadas é um processo de industrialização e urbanização crescente no Brasil e, consequentemente, uma necessidade de qualificação e educação para tal contexto. As iniciativas da década anterior precisaram ser ampliadas pois já eram muito pontuais e insuficientes.

O Senai só foi criado em 1942 mas ainda em 1934, foi criado o Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional (CFESP), considerado, de certa forma, o germe do Senai. O que há em comum? Que contexto é esse? Qual a relação com o taylorismo, na forma de organização do trabalho, e a partir de quando?

Eu entendo que o Centro Ferroviário de Ensino foi mais um iniciativa no contexto das transformações da década de 1930 para atender à demanda específica da formação de mão de obra para um serviço ainda forte e necessário. Diretamente como um "germe do SENAI", acredito que não seja um ensaio, porém, contribuiu com novas iniciativas posteriores. Na história da educação profissional brasileira, temos muitas iniciativas que se inspiram nas anteriores mas se apresentam como novas, seguindo a lógica da novidade com descontinuidade da proposta anterior. Apesar de não mudar muito, apresenta-se como uma nova iniciativa.

A Criação do Senai parecia atender às necessidades de um país em processo de crescente industrialização. Logo depois, foi criado o Senac. A que isso se deve?

Se deve a necessidade de qualificação em outras áreas. O Senai respondia à demanda da qualificação de mão de obra na área da indústria e o Senac veio para responder à demanda de qualificação na área comercial. A industrialização e a urbanização desenvolveram significativamente o comércio, que, também, como agente empregador, gerou suas demandas. Eu entendo Senai e Senac como complementares e uma resposta às demandas do processo do capital e a baixa escolaridade da população brasileira frente às novas  exigências de trabalho.

Na sua famosa trilogia sobre Educação Profissional no Brasil, Luiz Antonio Cunha conta que, num primeiro momento, os empresários foram contrários à legislação que levava a formação profissional para o setor produtivo que, nesse caso, o governo Vargas foi mais visionário, conseguindo antecipar uma necessidade que nem o próprio empresariado percebia. Chega a dizer textualmente que “ao invés de cria dos industriais, o Senai foi-lhes imposto pelo Estado”. Você concorda com essa interpretação?

Concordo e não vejo divergência. Penso que a mentalidade do empresariado era muito limitada e ainda continua sendo. Nosso capitalismo é dependente do Estado e de alguma forma viciado no Estado. Falta visão, conhecimento, estratégia e vontade política em investir na educação e cultura da sociedade. Ainda hoje os empresários só apoiam e investem em educação profissional quando o Estado financia, como ocorreu com Programas como Planfor [Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador], PNQ [Plano Nacional de Qualificação], Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego] e outros. Esta visão estreita não é somente em relação à educação e formação profissional, é também enquanto burguesia nacional que não teve e nem tem projeto nacional.

Havia disputa ou interesses divergentes entre o empresariado da época que se refletisse no campo da educação profissional?

Não necessariamente disputa, mas cada setor preocupava-se somente com o seu processo, sem uma visão sistêmica das necessidades de educação e qualificação para todos. O fato de hoje existir mais de uma dezena de Sistemas de Aprendizagens demonstra que cada setor busca soluções próprias e corporativas, inclusive competindo uns com os outros. Os interesses do capital são convergentes, mas as estratégias e os programas são segmentados por setor econômico e fragmentados enquanto processos formativos. Infelizmente continuamos assim em 2020: vários programas, vários sistemas e, agora, várias fundações empresariais educacionais viciadas no Estado e apropriando-se das políticas públicas no campo da educação.

A criação de um sistema de formação profissional instituído pelo Estado mas administrado pelos empresários e subsidiado por recursos que muitos entendem públicos é considerado um marco nas relações público-privadas no Brasil. Primeiro, queria que você explicasse mais detalhadamente como funciona esse desenho e se houve mudanças entre a criação do Senai e hoje. Além disso, esse modelo tem antecedentes? Há referências internacionais?

Nos países da OCDE [Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico], ainda hoje 95% da educação é  pública e financiada pelo Estado. Nos EUA, país símbolo do liberalismo capitalista,  70% da oferta  é púbica. Os empresários [no Brasil] nunca investiram e atualmente não investem em educação e qualificação. A prova recente é que sequer defendem o Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação] e exigem redução de investimentos pelo Estado em áreas sociais, como educação e saúde.

Os fundos do Sistema S são públicos pois são pagos pela sociedade e recolhidos pelo Estado, que repassa às confederações empresariais. E mais: complementa esses recursos com mais fundos públicos mediante programas, convênios e parcerias. Penso que os modelos internacionais são utilizados somente no que interessa ao capital e como pretexto para justificar [suas aç[ões]. Porém, com a estrutura e ampliação dos organismos internacionais como FMI [Fundo Monetário Internacional], Banco Mundial, Unesco e outros, produziu-se uma orientação do capital aos países pobres e em desenvolvimento. Como não temos visão do valor da educação e da cultura para o desenvolvimento de um projeto de nação justa e independente, nossos gestores reproduzem estas orientações e experiências internacionais de forma muito submissa.

A legislação, a estrutura, a política e a concepção de educação profissional vigentes hoje carregam ainda marcas do que se fazia nesse período das décadas de 1030 e 1940?

Penso que sim. Continuamos com políticas e programas pontuais, fragmentados, instrumentais e subjugados aos interesses do capital e das empresas. Exceto a Rede Federal de Educação Tecnológica e algumas políticas estaduais. Mas, de forma geral, a educação profissional continua separada da educação básica - quando deveria ser complementar - e continua dependente de fundos públicos. O segmento privado possui um sistema próprio  - Sistema S - e uma rede de escolas privadas mercantis, a maioria de baixa qualidade, com oferta de cursos de qualificação aligeirada, na modalidade EaD, de baixa qualidade científica e tecnológica. Após mais de 110 anos de formação profissional, nossa oferta é diversificada, fragmentada, descontínua e meramente instrumental.

A dualidade educacional é uma categoria muito adotada no campo da educação profissional. Na política e na prática desse período, havia expressões dessa dualidade? A existência do Sistema S hoje tem algum papel na afirmação ou enfrentamento dessa dualidade?

Na educação brasileira temos muitas dualidades: educação pública x privada, escola de qualidade para elite x escola baixa qualidade para os trabalhadores, educação propedêutica para elite x profissional para os pobres, educação pública laica x educação confessional e religiosa privada, além da dualidade e desigualdade de classes que se expressa no trabalho intelectual x manual. Esta dualidade entre formação geral e profissional persiste e se acentua cada vez mais. Agora, com a reforma do "novo" ensino médio, através do quinto itinerário [de formação profissional], será ainda mais acentuada. Teremos vários "ensinos médios" conforme as condições e classes sociais, precarizando e destruindo a unidade da educação básica.

Na origem do Senai, todos os cursos eram gratuitos, correto? Quando, por que e a partir de que aparato jurídico isso mudou?

Era para ser gratuito, porém foram inúmeras as modificações na legislação - leis, decretos, portarias – que, gradativamente, foram flexibilizando. O Sistema S oferece dois serviços: cursos curtos de qualificação gratuitos e a maioria de cursos técnicos e tecnológicos superiores pagos. Toda história da educação brasileira é uma relação promíscua entre privado e público, entre pago e gratuito. A filantropia nas escolas e universidades confessionais, os programas de financiamento estudantil - como FIES e Pronatec - e a concessão de bolsas são a expressão desta oferta diversificada que o sistema S também reproduz.

Na origem do Senai, como a educação profissional ou industrial se articulava com a educação básica? Houve um momento em que o Sistema S passou a oferecer também educação básica? Quando e por quê?

As reformas de Capanema durante o Estado Novo [de 1937 a 1945] e a regulamentação do ensino a partir de 1942, sob o nome de Leis Orgânicas do Ensino, que estruturou o ensino industrial, reformou o ensino comercial e criou o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – Senai, como também trouxe mudanças no ensino secundário. Gustavo Capanema esteve à frente do Ministério da Educação durante o governo Getúlio Vargas, entre 1934 e 1945. Foram esses os decretos-lei: Decreto-lei nº 4.073, de 30 de janeiro de 1942, que organizou o ensino industrial; nº 4.048, de 22 de janeiro de 1942, que instituiu o Senai; nº 4.244 de 9 de abril de 1942, que organizou o ensino secundário em dois ciclos: o ginasial, com quatro anos, e o colegial, com três anos; e nº 6.141, de 28 de dezembro de 1943, que reformou o ensino comercial.

Em 1946, já no fim do Estado Novo e durante o Governo Provisório, a Lei Orgânica do Ensino Primário organizou esse nível de ensino com diretrizes gerais, que continuou a ser de responsabilidade dos estados; organizou o ensino primário supletivo, com duração de dois anos, destinado a adolescentes a partir dos 13 anos e adultos; a legislação de ensino organizou também o ensino normal e o ensino agrícola e criou o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial - Senac. A relação entre ensino secundário (educação básica) somente se articulou na LDB de 1961 durante governo [João] Goulart. Nesse momento o Ministério da Educação estava a cargo de Raul Leitão da Cunha. Foram esses os Decretos-lei: nº 8.529, de 2 de janeiro de 1946, que organizou o ensino primário a nível nacional; nº 8.530, de 2 de janeiro de 1946, que organizou o ensino normal; nº 8.621 e 8.622, de 10 de janeiro de 1946, que criaram o Senac; nº 9.613 de 20 de agosto de 1946, que organizou o ensino agrícola.

"Mais de 12 milhões de desempregados e mais de 30 milhões na  informalidade são a prova que o discurso de que falta qualificação é falso e ideológico. Falta trabalho, falta emprego e falta educação básica e profissional pública de qualidade para a maioria dos brasileiros"

O discurso de que o país precisa formar trabalhadores qualificados para atender às necessidades do setor produtivo permanece até hoje. Há quem questione a capacidade do mercado de incorporar esses trabalhadores qualificados. Além disso, os números mais recentes apontam, por exemplo, prioridade de cursos FIC em detrimento dos técnicos. Pensando nessa relação entre a política de educação profissional e o setor produtivo, entre o papel do Estado e dos empresários, qual a diferença do contexto das décadas de 1930/40 e hoje? Os autores costumam apontar uma permanência estável e crescente do Sistema S, por exemplo, enquanto o processo de industrialização que de algum modo o justificou não foi contínuo. Qual a sua avaliação sobre isso?

A diferença é o tempo histórico, com suas novas configurações e relações de produção, de trabalho e de qualificação. Mas o problema permanece o mesmo: nossa escolaridade é muito baixa, quase 60% dos trabalhadores adultos não têm ensino fundamental,  ensino médio com qualidade para os trabalhadores ainda é um direito a ser conquistado, a formação profissional continua sendo majoritariamente através de cursos instrumentais e pontuais de curta duração. Com 210 milhões [de habitantes], temos apenas 1,9 milhão de matrículas no ensino técnico e 7,9 milhões no ensino médio. Está evidenciado que a maioria dos trabalhadores não tem acesso nem a educação nem à formação profissional. Tem no Brasil regiões em que falta formação e em outras não, temos alguns territórios em que há mercado de trabalho e na maioria do país não. Mais de 12 milhões de desempregados e mais de 30 milhões na  informalidade são a prova que o discurso de que falta qualificação é falso e ideológico. Falta trabalho, falta emprego e falta educação básica e profissional pública de qualidade para a maioria dos brasileiros.

Leia mais

Nesta entrevista, realizada para subsidiar uma série de reportagens sobre a história da educação profissional no Brasil, José Geraldo Pedrosa, professor do mestrado em educação profissional do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), fala sobre esse segmento educacional nos anos 1930 e 1940. Lembrando o contexto da 2ª Guerra Mundial, ele explica o processo de criação do ensino industrial, fala sobre a atuação do empresariado na construção do Sistema S e aponta as diferenças entre as iniciativas que inauguram essa política no início do século
Nesta entrevista, que contribuiu para a reportagem sobre a história da educação profissional no Brasil principalmente na Era Vargas, Carmem Sylvia Moraes, professora da Universidade de São Paulo, destaca o protagonismo da “província” de São Paulo num tipo de formação que atendesse às necessidades da industrialização. Enquanto nacionalmente a educação profissional se voltava para os desvalidos da sorte, diz, uma burguesia esclarecida paulista se firmava como agente social que interviria também no campo da educação
Profissionalização compulsória e eliminação das experiências progressistas que se desenvolveram a partir dos anos 1950 foram as marcas deixadas pela ditadura
Nesta entrevista, realizada para subsidiar uma reportagem sobre a história da educação profissional no Brasil nos anos 1950 e 60, Angela Tamberlini, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), descreve experiências educacionais exitosas de resistência à ditadura, como os ginásios vocacionais, em São Paulo, e analisa os efeitos da profissionalização compulsória instituída pelos militares
Nesta entrevista, que contribuiu para a série de reportagens da Revista Poli sobre história da educação profissional no Brasil, a professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) Maria Ciavatta analisa a trajetória desse segmento do início do século até a ditadura empresarial-militar, apontando as vertentes e agentes sociais que lutaram por uma educação mais humanística ou mais instrumental
Com o incentivo à industrialização nas décadas de 1930 e 1940, educação profissional ganha um novo papel e nova organização no país. Principal marco dessa mudança é a criação do Senai
Entenda como a Educação Profissional, objeto da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, que está completando 35 anos, está presente na vida cotidiana dos brasileiros, inclusive agora, na pandemia