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Entrevista: 
Angela Tamberlini

‘O regime militar prestou esse desserviço à nação brasileira, fazendo com que a qualidade do ensino público caísse muito’

Nesta entrevista, realizada para subsidiar uma reportagem sobre a história da educação profissional no Brasil nos anos 1950 e 60, Angela Tamberlini, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), descreve experiências educacionais exitosas de resistência à ditadura, como os ginásios vocacionais, em São Paulo, e analisa os efeitos da profissionalização compulsória instituída pelos militares
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 30/07/2020 11h39 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Nos anos 1950, no governo de Juscelino Kubitschek, ou mesmo na década de 1960 antes do golpe empresarial-militar, existem marcos, leis, políticas, programas de educação profissional em nível nacional que mereçam destaque? E em nível regional?

O que a gente teve nos anos 1950 foi justamente a questão dos planos de equivalência. Até a Era Vargas, era extremamente marcante a dualidade estrutural do ensino. Os planos de equivalência vieram tentando eliminar essas diferenças que obrigavam as pessoas a terem um ensino [profissional] de caráter terminal, que vai ser recolocado pela lei 5.692 [da ditadura, que institui a profissionalização obrigatória]. Nesse período tem, em 1961, a criação do Ipes [Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais], que [Dermeval] Saviani chama de partido dos empresários, que depois terá uma influência muito grande nas reformas do regime militar, na luta pela criação dos acordos MEC-Usaid, na reforma universitária. Quer dizer, começa a se esboçar ali já uma perspectiva desse grupo de direita de se contrapor a todas as lutas do campo da esquerda. Esse era o momento da educação popular, que foi alvo de perseguição logo no início do governo militar, do movimento estudantil que já vai se desenhando... Isso tudo se construiu no final dos anos 1950 e início dos 1960. Mas sobre a educação profissional estrito senso, não há mais nada muito específico nesse período.

A primeira LDB brasileira data de 1961, no governo João Goulart. Ela traz alguma mudança ou definição importante em relação à educação profissional?

A LDB acaba mantendo um pouco algumas coisas que já existiam, mas o que ela tem de principal é buscar um pouco amenizar as questões da dualidade. Agora, o que acontece de marcante na LDB, que vai depois ser retomado no regime militar, é justamente a questão do substitutivo Lacerda, [que permitiu] o avanço do setor privado na apropriação das verbas públicas por meio da legislação. O substitutivo acaba sendo contemplado e vai abrir brecha depois para a retomada da privatização de segmentos da educação.

Quem estava vocalizando interesses nesse momento da primeira LDB brasileira? Como se expressavam o movimento da sociedade civil, seja dos grupos empresariais, seja dos movimentos de educadores?E como é que isso apareceu na LDB?

Nós temos que lembrar que o final dos anos 1950 e 60 era um período extremamente fértil do ponto de vista dos movimentos sociais e políticos. Já tínhamos as Ligas Camponesas, depois a Igreja Católica, na década de 60, vai se dividir a partir do Concílio Vaticano II, o com o surgimento da Teologia da Libertação. E nós tínhamos uma série de propostas de libertação das classes populares nos mais diferentes vieses: tinha o movimento dos católicos progressistas, muito ancorados nas ideias do Emmanuel Mounier, filósofo do existencialismo cristão que viveu na primeira metade do século passado, cujas ideias foram difundidas pelo padre Henrique Lima Vaz; tinha os movimentos comunistas e socialistas... Esse é também o período, já na década de 1960, em que o Paulo Freire vai atuar com a campanha de Angicos e surgem outros movimentos de educação popular, como a campanha ‘De pé no chão também se aprende a ler’. Ele trabalhou também na prefeitura do Miguel Arraes [de Recife, Pernambuco]. E a gente tinha uma atuação imensa de grupos de esquerda e também já tinha uma articulação dos empresários que sempre repudiaram qualquer ação de libertação das classes populares. Em relação à educação profissional estrito senso, o [Antonio] Gramsci ainda não estava tão traduzido aqui no Brasil, as ideias dele vão ganhar mais alcance mais já para o final da década de 1960. Nós tínhamos algumas escolas renovadas - uma expressão também extremamente ampla, que às vezes dá margem a compreensão equivocada -, que eram propostas de ensino renovado, pensando na concepção que dá centralidade ao estudante no processo educativo. Nós tivemos algumas dessas escolas bastante progressistas que, ao longo dos anos 1960, vão se inclinando para a esquerda e questionando, por exemplo, os GOTs, os ginásios orientados para o trabalho, fruto dos acordos MEC-Usaid. Eu sempre digo que ninguém passa impune pela década de 1960. Muitas outras coisas que eu estudo nas minhas pesquisas acontecem mais na década de 1960 como desdobramentos de movimentos sociais que iam surgindo no final da década de 1950. Muitas coisas que nós vamos ter na ditadura, no sentido de resistência, são oriundas de concepções anteriores.

Embora a análise desse momento histórico em relação à educação profissional normalmente se detenha mais na Lei 5.692, o período da ditadura militar não foi um bloco único. Há variações e nuances nas políticas e na concepção de educação profissional ao longo de todo esse período?

Nós nunca tivemos concepções únicas. As resistências sempre aconteceram, só que na ditadura nós não tínhamos espaço para questionamento. Em relação à própria [lei] 5.692, houve alguma resistência no interior do grupo de trabalho [que fez o diagnóstico do equivalente ao ensino médio]. Essa configuração da profissionalização obrigatória encontra algumas resistências em pessoas que eram ligadas ao MEC ou ao Conselho Federal de Educação, como o CNE se chamava na época. Eles apontam que a retirada do tronco comum, dos conhecimentos gerais etc., e a formação direcionada para o trabalho como um bloco único teria que ter muito investimento para que funcionasse. E mesmo assim havia muitos questionamentos em relação a como essa amarração aconteceria. Os investimentos não seriam suficientes e a própria formação seria deficitária. Mas havia muito interesse de brecar as demandas dos estudantes para ingresso no ensino superior, o problema dos excedentes. Para barrar as demandas para ingresso no ensino superior, uma estratégia política do regime militar foi fazer essa profissionalização compulsória, mas mesmo dentro do MEC havia alguma resistência. O Congresso era totalmente alinhado com o Executivo, o que houve foi uma imposição da visão do governo. Mas alguma resistência havia, até em função do relatório do grupo de trabalho, que mostrava que uma série de problemas decorreriam desse modelo da profissionalização compulsória, de um único tipo de formação oferecida e ainda com o empobrecimento dos currículos. A gente tem que lembrar que é desse período a supressão da filosofia, da sociologia, da psicologia. Tinha também uma resistência até dos colégios particulares em relação à 5.692. Os donos de estabelecimentos privados se colocam contra justamente porque não teriam condições de arcar com os custos de uma profissionalização para todo o segundo grau no modelo único, que era a nomenclatura da época. Dentro do Congresso também havia resistência, houve proposta de alguns parlamentares para modificar o dispositivo do governo, do então ministro da educação, Coronel Jarbas Passarinho. Para os movimentos docentes, se colocar [como resistência] ficava muito difícil, depois as conferências nacionais de educação foram proibidas.

Na sua famosa trilogia sobre história da educação profissional, o professor Luiz Antônio Cunha afirma que a concepção de profissionalização universal e compulsória que a lei 5.692 representou não era defendida por nenhuma corrente dentro do MEC nem por organismos internacionais e que não havia experiência semelhante no mundo. Que grupos políticos e econômicos, frações sociais ou segmentos da educação defendiam essa proposta? Qual a sua origem e por que ela vingou naquele momento?

É difícil dizer. Eu localizo isso mais nos militares. [Essa proposta] vem de pessoas que não tinham uma formação na área da educação, não tinham experiência nenhuma com ensino técnico industrial, comercial ou agrícola. Nesse momento a gente já vai ter uma adoção do modelo americano no Brasil mas os próprios Estados Unidos também não defendiam essa visão. O que a gente percebe é o tecnicismo do regime militar porque, na verdade, o que eles fazem é implementar uma reforma tecnicista no primeiro e no segundo graus. É quase uma transposição da fábrica para a escola, sem a mediação de que a educação necessita. Era uma tecnoburocracia do governo que tinha muito pouca formação na área e que vai sugerir essa mudança. Não havia endosso a essa proposta da parte das pessoas que efetivamente tinham acúmulo nas questões de educação. Muita coisa foi desprezada e depois, quando começou o questionamento de que essa reforma precisaria ser aprimorada porque não estava dando certo etc., vão se retomar propostas que vinham sendo feitas anteriormente, como a fala do Roberto Hermeto Correia da Costa, que é retomada. Mais tarde esses argumentos ganham corpo e o Newton Sucupira, que vai ter uma atuação muito forte no campo da educação, no Conselho Federal, também vai endossar as ideias do Roberto Hermeto, mostrando que essa lei teria que passar por transformações. Isso até chegar à lei 7.044, que vai tirar essa profissionalização obrigatória do segundo grau.

Mas você também estabelece alguma relação da lei 5.692 com a chamada crise dos excedentes, não é? Por quê?

Porque nós estamos num período em que eram muito altas as demandas por acesso ao ensino superior, também como forma de ingresso no mercado de trabalho de uma forma mais qualificada, recebendo maiores rendimentos. E nós tínhamos o problema das universidades: os alunos clamando por mais verba e mais vagas para a educação. Era um momento em que os professores também questionavam o modelo da cátedra, que era extremamente autoritário. E os estudantes, mesmo tendo notas altas, não conseguiam ingressar na universidade porque o número de vagas era extremamente reduzido. Com essa pressão por mais vagas e mais verbas, tinha acontecido a reforma universitária, a lei 5.540, de 1968. Depois disso veio o AI-5 [Ato Institucional nº 5]. A sociedade pedia uma formação melhor para possibilitar uma qualificação maior dos estudantes para que eles pudessem ingressar no mercado de trabalho. E o acesso à universidade ainda era reduzido – aliás, até hoje, nós temos apenas cerca de 17% dos jovens na faixa etária correspondente ao ensino superior cursando este nível de ensino. Tivemos uma melhora significativa perto do que tínhamos antes nos governos do PT, agora os investimentos foram contidos, a Emenda Constitucional 95 acaba congelando os investimentos por 20 anos, já que só poderíamos atualizar os recursos pela inflação do ano anterior, as metas do PNE [Plano Nacional de Educação] não foram cumpridas... Mas naquela época havia uma demanda alta que precisava ter uma resposta e a avaliação que se fazia era de que oferecendo uma profissionalização em nível de segundo grau com caráter terminal [reduziria a demanda ao ensino superior]. É bastante grave porque era uma proposta classista para que as classes populares se contentassem com uma formação profissional em nível médio e não pleiteassem mais as vagas para o ensino superior. Acaba sendo uma forma de tentar não investir o suficiente no ensino superior, embora a pós-graduação tenha sido estruturada. As universidades sempre foram para as elites e, nesse período, também as particulares acabam se multiplicando. O que a gente vê é essa tentativa de frear as lutas por acesso ao ensino superior por meio de uma formação para o trabalho no ensino na época chamado de segundo grau.

A Lei 5.692 valia para toda a educação nacional. Que análise você faz dessa lei em relação ao estímulo ou não da dualidade educacional? É comum ela ser associada a um reforço da dualidade educacional, mas isso não pode parecer contraditório com o fato de que a profissionalização compulsória valia tanto para escolas públicas quanto privadas? O cumprimento e os efeitos foram semelhantes nas escolas das classes populares e nas escolas de elite?

"O aluno das classes populares muitas vezes só tem realmente acesso ao conhecimento sistematizado na escola porque ele tem déficit no capital cultural familiar"

Essa é uma questão fundamental. No discurso, parece que há uma ruptura da dualidade: ‘vamos dar uma formação profissionalizante para todos’. Mas, em primeiro lugar, que tipo de formação é essa? Ela tira o tronco comum das disciplinas de caráter mais geral. E o aluno das classes populares muitas vezes só tem realmente acesso ao conhecimento sistematizado na escola porque ele tem déficit no capital cultural familiar. Essa formação profissionalizante para todos, na verdade, era muito frágil, acaba não dando uma formação profissional adequada nem garantindo empregabilidade para a maioria. Por outro lado, as escolas privadas vão burlar [a lei], no sentido de dar uma maquiada no currículo. Nós tínhamos aquela tradição do curso científico que preparava os alunos que pretendiam ingressar no nível superior na área de biomédicas ou exatas etc. E o clássico [preparava] para humanidades. O que as escolas privadas vão fazer? Maquiavam o currículo. Você põe uma matéria tipo técnico em edificações, dá uma maquiada e continua dando o ensino de caráter acadêmico com a perspectiva propedêutica para que o aluno pudesse ingressar no superior. E o que acontece também é que a classe média, que frequentava muito a escola pública, migra para o setor privado porque almeja que seus filhos tenham acesso ao ensino superior. Todo mundo fala que a escola pública tinha qualidade e realmente tinha. A classe média inclusive pleiteava qualidade para a escola pública. A [lei] 5.692 tira as matérias de formação geral e isso faz com que esse currículo não capacite para ingresso nos exames vestibulares. Então, o que acontece é que o setor privado se fortalece. Nós temos uma multiplicação das escolas privadas. Embora elas façam uma grita contra o modelo do governo, vão acabar maquiando os currículos e o que a gente tem é um declínio vertiginoso da qualidade da escola pública. O regime militar prestou esse desserviço à nação brasileira, fazendo com que a qualidade do ensino público caísse muito. Então, na realidade, essa reforma foi muito ruim para a educação pública porque levou as classes médias a buscarem o ensino privado. E, sem essa pressão e sem investimentos, eles ampliaram em 113% a oferta de vagas, provocando o declínio da qualidade.

O que eram os Ginásios Orientados para o Trabalho, os GOTs?

Os GOTs eram uma proposta dos Estados Unidos, com uma visão bastante tecnicista também, que pretendia criar os chamados ginásios modernos para que nós tivéssemos uma formação que já fizesse um mapeamento da orientação vocacional. Não eram exatamente uma formação para o trabalho, eram uma sondagem vocacional que encaminharia esse aluno para uma formação profissional já na educação básica. Ele estaria no segundo ciclo do ensino, que depois vai ser o primeiro grau, o antigo ginásio, para depois entrar no ensino correspondente ao médio para formação profissional estrito senso. Era um modelo. Nessa época, muitas propostas vão surgindo, inclusive nos estados. São Paulo teve a reforma do ensino Industrial que aconteceu antes da LDB e depois essas escolas vão ser respaldadas por artigos da LDB. Depois, quando vem a ditadura, tem um controle muito rígido. Era preciso prestar conta, fazer planos, avaliação etc, mas algumas conseguem se valer de brechas na lei para trazer outras propostas. Nós tivemos outras escolas que buscaram criar modelos que fugissem dessas propostas. O GOT ainda não é formação profissional estrito senso, ele direciona inicialmente para o trabalho, mas tem que ter alguma formação geral. Eles são contrários à formação profissional estrito senso sem formação geral até no segundo ciclo, no segundo grau, imagina no ginásio! É um direcionamento, uma sondagem de aptidões com formação geral e um início de formação profissional com oficinas para atender demandas do setor industrial. Também porque, até dentro do capitalismo, se você não tiver um mínimo de formação geral, fica muito difícil até que o formando consiga desempenhar qualquer papel no mercado de trabalho.

Entre esses modelos alternativos que surgiam nessa mesma época, há algum que mereça ser lembrado?

Sim. O modelo americano ganha corpo justamente no regime militar com o tecnicismo, com a reedição da teoria do capital humano, que é muito forte no período militar, a subordinação da educação a economia, com a preocupação direcionada sempre para o mercado. E nós tínhamos visões diferentes da Teoria do Capital Humano. Por exemplo, no final dos anos 1950, foi criado um grupo de trabalho para pensar novas formas de organização do secundário. A visão francesa é muito forte no Brasil também e um exemplo disso é o Ensino Vocacional. Muitas vezes o nome, para quem não conhece, engana um pouco, mas era um projeto extremamente arrojado e que no seu final foi alvo de muitas perseguições do regime. Os Ginásios Vocacionais foram coordenados pela professora Maria Nilde Mascellani, já falecida. Ela aproveitou uma brecha do ensino Industrial e a fonte de onde ela bebe é muito mais de matriz francesa do socialismo cristão do Mounier, de grupos da Resistência Francesa que depois da Segunda Guerra criaram [movimentos] para que não se reeditassem as visões nazistas do holocausto. Eles tinham uma proposta de educação ancorada na transformação social, com defesa da democracia, com participação social. Eles usam muitas coisas que estão presentes nas propostas da época, no sentido de articular a formação geral com uma formação para o trabalho que incluísse formação conforme às necessidades do local. Eram feitas pesquisas com a comunidade antes da sua implementação e da criação do currículo. Então, se o local era de economia mais agrícola, a parte profissionalizante era voltada para essas práticas, quando era comercial, era voltado para práticas comerciais... Mas eles tinham um tronco comum muito forte. Eram escolas de período integral e tinham um trabalho imenso com artes, teatro, música... Trabalhavam com disciplinas integradas com a visão transdisciplinar e um eixo integrador das disciplinas. De início a legislação exigia estudos sociais, mas tinham história e geografia com professores distintos e trabalhavam essa integração na perspectiva sociológica. Isso no ginásio! Quando vem o projeto mais arrojado do segundo ciclo, equivalente ao ensino médio, o eixo integrador passa pela filosofia, sociologia e psicologia social. É um projeto extremamente interessante. Foram seis escolas que foram implementadas, uma na capital e cinco no interior de São Paulo. Em Batatais, como a cidade era próxima de Brodowski, que era a terra do [Candido] Portinari, a família emprestava as obras de arte dele, a escola fazia a galeria de arte aberta para comunidade, debatia as obras... Em Barretos, o Jorge Andrade, dramaturgo, representava, dava aula de teatro... Foi uma experiência extremamente interessante.

E essa experiência foi encerrada com a ditadura?

Foi encerrada com a ditadura em 12 de dezembro de 1969, com a invasão das seis escolas por tanques e prisão dos professores. A Maria Nilde ficou um tempo presa. Eles tiveram que fazer relatórios periódicos e a Maria Nilde me falou [em entrevista para pesquisa] que eles maquiavam os relatórios para que o governo aceitasse que eles continuassem trabalhando. Mas começou a ter muita denúncia de que eles eram comunistas. Até que a Maria Nilde e a Áurea Sigrist foram demitidas. Depois houve a invasão por tanques em dezembro de 69 e, em julho de 1970, veio o decreto de fechamento da experiência. Era uma outra concepção de formação, que aliava um tronco comum, que aliava a cultura, que aliava também uma formação profissional e uma atuação social muito forte. Acho que foi em Batatais ou Americana que tinha uma questão de saneamento e eles foram verificar. Eles iam até a Câmara de Vereadores saber o que estava acontecendo e descobriram que tinha interesse privado permeando essa discussão sobre o saneamento. Então, eles incomodavam bastante.

Essa experiência começa ainda no final dos anos 1950?

Ela começa em 1962. O projeto começa a ser gestado no final dos anos 1950 e entra na brecha do ensino industrial de São Paulo. É criado o SEV, Serviço de Ensino Vocacional, mas as três primeiras escolas são implementadas em março de 1962. Depois, em 1963, eles implementam as outras duas. E em 1968, antes do AI-5, eles criam cursos complementares, o ginásio noturno, para o qual eles exigiam que os alunos trabalhassem, e o ensino de segundo grau para o qual também era obrigatório trabalhar mesmo que a pessoa não precisasse.

Qual o papel da Usaid e da cooperação norte-americana em geral na política de educação profissional da ditadura? Havia outras influências além dessa?

Havia um interesse grande de adequar o nosso sistema educacional aos interesses do empresariado. Isso vai aparecer também na reforma universitária, quando o grupo de trabalho colocou que poderia ter um lado mais positivo que seria a autonomia universitária, mas isso foi vetado. O interesse maior era justamente atender aos reclames do empresariado e do capitalismo internacional. Todas essas medidas vêm junto com muita repressão: o [artigo] 477 permitia o jubilamento dos estudantes, reforçado pela Emenda Constitucional de 1969 que, no absurdo artigo 154, dizia que qualquer pessoa que abusasse do direito de cátedra para outros fins políticos que subvertessem o que eles chamavam de “regime democrático’ estaria sujeita de dois a dez anos de remissão dos direitos políticos.

A recente Reforma do Ensino Médio guarda alguma relação com esse processo de profissionalização compulsória e o reforço da dualidade que marcou a educação profissional na ditadura?

Nós temos novamente a introdução da dualidade estrutural que estava lá na Era Vargas e que estava na ditadura porque essa suposta formação para todos no fim não era para todos. A escola pública, com o currículo esvaziado e com a qualidade ruim, manda as classes altas para o setor privado e acaba sendo oferecida para a população de menor renda. Hoje nós temos uma situação ainda agravada, nós temos as cinco áreas previstas de formação, esse discurso dos diferentes itinerários [formativos] que se ancoram muito na concepção do trabalho flexível para atender às necessidades imediatas do mercado. E é importante lembrar que essa oferta está subordinada às condições dos sistemas públicos, não é obrigatório que haja os cinco itinerários - eu detesto essa expressão porque ela é típica do trabalho flexível. Como disciplina obrigatória mesmo, só temos português e matemática, quando muito inglês. Então, é um adestramento como o que houve no regime militar, é isso que a gente tem hoje para o ensino técnico profissional que é a quinta modalidade [de itinerário]. Isso sem entrar ainda nas discussões que aconteceram durante muito tempo no ensino médio porque o que a gente defende é o ensino médio integrado ao ensino profissional e não concomitante ou subsequente. O [itinerário] técnico profissional permite formação em módulos, com terminalidade específica. Quer dizer, o aluno nem precisa concluir o curso completo! Permite ainda o profissional com notório saber [como professor]. Quem é que vai avaliar o notório saber no ensino médio? Na universidade são raríssimos os casos e com uma comissão de pessoas altamente qualificadas na área etc. Na verdade, o que temos aí é uma disputa fortíssima pelo investimento público. Porque o setor privado defende muito a iniciativa privada com financiamento público. Então, eles estão se apropriando das verbas públicas para o setor privado e várias entidades estão oferecendo formação rápida [para professores]. A ideia é que os professores tenham uma formação mais aligeirada para que, como eles dizem, as “pessoas certas” comecem a lidar com a educação. As pessoas certas são aquelas que vão aceitar ser meros executores de políticas não elaboradas por eles. Outro dado alarmante é que mais de 70% da formação de professores vem sendo oferecida pelas escolas privadas superiores, que dão uma formação aligeirada e domesticadora. Alguns grupos transnacionais em São Paulo estão propondo que a formação seja à distância, que só as práticas educativas e metodologias sejam oferecidas presencialmente em oficinas. Então, você já imagina o tipo de formação bastante precária que vai sendo oferecida aos profissionais para atuar na educação básica de uma maneira geral. E na educação profissional pior ainda porque pode prescindir da formação pedagógica com o chamado notório saber. A gente tem aí a reedição da dualidade. Esse empobrecimento do currículo, sobretudo com o impacto nas ciências humanas, é algo bastante preocupante e também semelhante ao que ocorreu no regime militar.

Existem marcas ou heranças da política de educação profissional da ditadura ainda hoje?

Essa questão está ligada a toda uma discussão de classe social no Brasil. Essa ideia classista é muito marcante na educação brasileira, ela antecede a ditadura e permanece depois da ditadura. Nós tivemos uma tentativa de minimizar isso com algumas políticas sociais mais interessantes presentes nos governos do PT. A ampliação da rede federal [de educação profissional, científica e tecnológica] não é uma questão tranquila, há questionamentos, mas sobretudo nos governos Lula, nós tivemos ampliação das vagas nas redes federais, criação de vários cursos, de campi. Faltou muito investimento e hoje está numa situação bastante difícil, mas, como uma formação que pretendia ser melhor, o projeto do Eliezer Pacheco [secretário de educação tecnológica no governo Lula] tinha coisas interessantes. Nós tivemos uma tentativa [de atacar a dualidade educacional] com o decreto 5.154, de 2004. Não era o que se prometia na campanha: o que se prometia era a revogação do decreto do Paulo Renato [nº 2.208]. Fazer isso por decreto também não era a forma que o movimento docente defendia mas, bem ou mal, ele religa a formação geral com a formação profissional no ensino técnico federal. Mas a ideia da dualidade - a diferença de classe à qual a educação se destina, com um acesso à formação de acordo com a classe social, [oferecendo] ensino acadêmico para a classe dominante e profissionalizante para as classes populares - atravessa toda a nossa história. Ela é própria do capitalismo e no Brasil é muito mais acentuada ainda. É uma formação excludente que dá poucas oportunidades para a classe trabalhadora e quando se desenha uma tentativa de mudar esse quadro que estava começando a acontecer, a gente tem o golpe parlamentar de 2016 e esse processo é freado. Se a gente pensar lá na legislação de 1909, voltada para os desvalidos da fortuna, os esquecidos da sorte, a gente vai ver que esse processo atravessa toda a nossa história e que no Brasil, um país periférico, oligárquico e desigual, isso é muito mais agudo ainda do que em outros países capitalistas. A superação de fato da dualidade estrutural exigiria uma sociedade sem classes, no limite, mas a gente pode ter uma utopia como norte para tentar caminhar ao máximo que pudermos no sentido de minimizar essa questão. Mas, neste momento, eu não veja como.

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