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EaD e formação técnica: o papel das Diretrizes

Novas Diretrizes Curriculares da Educação Profissional foram homologadas pelo MEC em janeiro. Em reportagem da última Revista Poli, pesquisadora apontava que texto pode fragilizar o ensino médio e criar um mercado para o setor privado nas redes estaduais
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 19/01/2021 15h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

O novo Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos tinha acabado de ser construído e, apesar de vários elogios, um grupo de professores ouvidos pela Revista Poli criticava o fato de suas análises sobre a oferta dos cursos à distância simplesmente não ter sido considerada. A diretora de ensino médio e técnico do Instituto Federal do Paraná (IFPR), Patricia Maciel, no entanto, alertava: "O ‘perigo’ não está propriamente no Catálogo". Segundo ela, tampouco foi a pandemia, com sua exigência de ensino remoto, que ‘abriu a porteira’ para iniciativas que ampliem ou fortaleçam a Educação a Distância (EaD) nos cursos técnicos. O ‘pulo do gato’ para entender o que realmente há de novo, diz Patrícia, está na leitura atenta das diretrizes da educação profissional aprovadas em maio deste ano pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e que acabam de ser homologadas pelo MEC, em 5 de janeiro. Nelas, pela primeira vez, está autorizada a oferta de “cursos híbridos”, que combinem atividades presenciais e à distância. Já a motivação de tudo isso estaria num período ainda anterior: mais precisamente, 2017, quando foi aprovada a reforma do ensino médio.

Para quem não lembra, foi nessa reforma que se estabeleceu que uma parte da carga horária do ensino médio deveria ser organizada na forma de itinerários formativos, escolhidos a partir de cinco grandes eixos. E um deles era o da formação profissional. “Seria a oferta da educação profissional aos estudantes do ensino médio. Aí criou-se um problema, porque a grande questão que ficou é: quem vai oferecer os itinerários formativos para todas as escolas brasileiras de ensino médio, na medida em que os próprios estados, muitas vezes, não têm essa estrutura?”, questiona Patrícia. De acordo com Maria Leopoldina Camelo, coordenadora da Câmara de Ensino do Conselho Nacional dos Institutos Federais (Conif), o MEC tem realizado reuniões para incentivar parcerias entre a Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPCT) e as secretarias estaduais para implantação da formação profissional – um resultado concreto desse movimento seria um curso de formação docente. “É um desafio muito grande porque tem que ter a formação dos professores, a preparação, infraestrutura. Nós sabemos que vai exigir muito do governo para a implantação de laboratórios, adequação de espaços físicos, considerando, inclusive, que a Rede [EPCT] já tem muitos desses laboratórios”, conta Maria Leopoldina.

O fato é que, diante de todas essas dificuldades, Patrícia Maciel acredita que uma possibilidade é, em alguns casos, a EaD ocupar esse espaço, o que, na prática, significa introduzir um percentual significativo de educação à distância no ensino médio. “E aí abre-se um mercado, inclusive para o setor privado”, alerta. O ineditismo da situação estaria, por um lado, na ampliação da EaD na educação básica, e, por outro, na impacto que isso geraria sobre a concepção integrada de currículo que orienta os cursos técnicos na Rede e em outras instituições, como a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). “O estudante teria aqueles conhecimentos básicos da educação básica e, junto com isso, algo direcionado ao mercado de trabalho. É muito diferente da proposta da rede federal”.

“A gente quer a educação a distância como uma proposta metodológica organizada para determinados estudantes que estão em espaços e tempos diferenciados, às vezes fora das condições de quem pode fazer ensino presencial. Isso é uma coisa. Outra coisa é usar [a EaD] para flexibilizar currículos que já existem"
Patricia Maciel

E a diferença não está apenas na integração curricular que marca a trajetória da Rede. Patrícia compõe a gestão de um instituto que tem uma longa e consolidada experiência em EaD na educação profissional. Portanto, ela faz questão de ressaltar que não se trata de recusar essa modalidade, mas de se ter clareza sobre a que proposta e que princípios ela atende.

Para início de conversa, o IFPR só oferece cursos técnicos à distância na forma subsequente, ou seja, para aqueles estudantes que já concluíram o ensino médio e buscam uma formação profissional. A proposta, diz ela, é atingir pessoas que moram em regiões distantes ou não têm condições de acesso ao ensino presencial. E para fazer isso com qualidade, argumenta, é necessário contar com toda uma estrutura que vai muito além da tecnologia. “Nós temos que ter professores formados, tutores, desenvolvimento de conteúdo para as plataformas. Nós precisamos ter a plataforma, que é uma exigência, inclusive, da resolução nº 6”, enumera, referindo-se às diretrizes curriculares da educação profissional que estão em vigor hoje mas que deixarão de valer quando as novas forem homologadas pelo MEC. “Toda essa educação a distância a gente busca construir dentro de uma proposta de educação integrada, que pressupõe uma estrutura de apoio ao estudante, acompanhamento da sua trajetória formativa. Todos os nossos cursos em EaD hoje preveem momentos presenciais e exigem profissionais capacitados”, explica.

Exatamente por considerar essas ‘exigências’, ela alerta também para os riscos da autorização de que 20% do conteúdo dos cursos que não são de EaD sejam oferecidos como atividades não-presenciais. “Como os professores vão oferecer, dentro dos seus componentes, 20% de uma carga horária em EaD se eles não têm formação para trabalhar à distância?”, pergunta. É inclusive por isso, conta, que o IFPR não utiliza ainda essa possibilidade aberta pela legislação. Segundo Patrícia, o instituto estava começando a organizar e regulamentar essa prática quando chegou a pandemia e os esforços precisaram se voltar para o ensino remoto emergencial.

Por tudo isso, Patrícia recomenda alerta sobre as possíveis consequências das mudanças em curso desde muito antes do novo Catálogo: em vez de aumentar as possibilidades de acesso, diz, esse caminho pode “precarizar” o ensino que já existe. “A gente quer a educação a distância como uma proposta metodológica organizada para determinados estudantes que estão em espaços e tempos diferenciados, às vezes fora das condições de quem pode fazer ensino presencial. Isso é uma coisa. Outra coisa é usar [a EaD] para flexibilizar currículos que já existem e, com isso, acabar precarizando uma formação que a gente sabe que precisa de um embasamento muito grande, tendo em vista que a gente está falando de educação básica”, compara. E conclui: “Parece que esse é o grande cuidado que a gente precisa ter daqui para a frente”.

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