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Educação profissional e reforma do ensino médio: mais uma peça na engrenagem?

Portarias do MEC que entraram em vigor nos últimos meses reforçam tendência de fragmentação da educação profissional, com foco em cursos de curta duração ofertados à distância por instituições privadas
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 24/06/2022 10h14 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Entra em vigor no dia 1º de julho uma portaria do Ministério da Educação (MEC) que autoriza o fomento de cursos de qualificação profissional via Bolsa-Formação, uma das modalidades do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), criado ainda no governo Dilma Rousseff, em 2011.  Publicada no Diário Oficial da União no dia 1º de junho, a portaria 359/22 é a última de uma série de normativas relativas à educação profissional publicadas pelo MEC e pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) ao longo de maio e junho. No período houve ainda a publicação, no início de maio, da portaria 314/22, que dispõe sobre a habilitação e autorização para a oferta de cursos técnicos por Instituições Privadas de Ensino Superior, bem como a Resolução nº 1 do CNE, que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Profissional Técnica de Nível Médio.

Segundo Dante Moura, professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN), analisados em conjunto, os documentos apontam para um movimento do governo de “amarrar” o arcabouço normativo da educação profissional com a lei 13.415/2017, que instituiu a reforma do ensino médio. Pelo cronograma do MEC, 2022 é o prazo final para que os estados iniciem a implementação da reforma, no 1º ano do ensino médio. “É tudo muito coerente internamente, muito bem ‘amarrado’. E vai em uma direção muito clara, na lógica de toda a regulamentação da reforma, que é a da fragmentação e da precarização da oferta do ensino médio”, avalia o professor do IFRN.

Mudanças na bolsa-formação

Única iniciativa efetivamente criada pelo Pronatec – que agregou várias medidas na área de educação profissional que já existiam anteriormente, entre elas o acordo de gratuidade com o Sistema S e a expansão dos institutos federais – a bolsa-formação, objeto da portaria mais recente do MEC, foi, segundo especialistas em financiamento da educação profissional, utilizada principalmente para o custeio de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC), de curta duração, por entidades do Sistema S: Sesc, Senai e Sesi, entre outras.

Foi o que mostrou, por exemplo, a pedagoga do Instituto Federal Farroupilha no Rio Grande do Sul Neila Drabach, que em sua tese de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo (USP) em 2018, apontou que 88,6% das matrículas registradas no Pronatec pelo Sistema S – cujas entidades, por sua vez, concentraram 66% das matrículas na modalidade bolsa-formação – foi de cursos FIC com duração média de 160 horas. Para isso as entidades receberam mais de R$ 8 bilhões em recursos públicos – dados que corroboram a crítica de pesquisadores da educação profissional de que o Pronatec não contribuiu para a elevação da escolaridade média dos brasileiros, a despeito da transferência massiva de recursos públicos para entidades privadas.

Para Dante Moura, a portaria 359/22 não deve alterar esse quadro, mas sim reforçar uma concepção inerente à reforma do ensino médio, que permite que o cumprimento da carga horária mínima de 1,2 mil horas prevista pela lei 13.415/17 para o itinerário de formação técnica e profissional no ensino médio seja ocupada não por um curso técnico mas pela somatória de vários cursos de qualificação profissional de curta duração, que podem ser ofertados inclusive por diferentes instituições. “Faltava uma regulamentação mais detalhada”, diz Moura, chamando atenção para os dois primeiros artigos da portaria 359. O primeiro diz que o objetivo do documento é “autorizar o fomento, por meio da Bolsa-Formação, de cursos de qualificação profissional com certificações, a partir das saídas intermediárias que compõem os itinerários formativos dos cursos técnicos do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos”. “Ou seja, ela amarra os cursos FIC às saídas intermediárias previstas pelo Catálogo e não mais à Classificação Brasileira de Ocupações [CBO], como era anteriormente”, destaca Moura. Já o segundo artigo estabelece que os cursos de qualificação profissional ofertados via bolsa-formação “podem ser fomentados de forma desvinculada dos cursos técnicos correspondentes” e que “cabe à instituição de ensino indicar o curso técnico correspondente ao curso de qualificação profissional, para fins de cálculo da carga horária mínima”. “Havia um hiato até então na regulamentação da reforma no itinerário de formação técnica e profissional”, avalia o professor do IFRN, e complementa: “Se um estudante faz um curso técnico, tranquilo, vai receber um diploma de técnico quando concluir o ensino médio. Por outro lado, o estudante poderia receber o certificado de ensino médio sem receber o de curso técnico, porque um conjunto de cursos FIC regulados pela CBO não pode ser validado como curso técnico. Essa portaria faz essa vinculação. Ela torna um conjunto de cursos FIC igual a um curso técnico e diz que a instituição vai fazer a correspondência entre aquele curso e os itinerários formativos dos cursos técnicos segundo o Catálogo, o que precariza mais ainda a qualificação do trabalhador”, diz Moura.

Almerico Lima, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e membro da Rede de Ensino, Pesquisa e Extensão da Educação Profissional pública da Bahia (REDEEPT), tem leitura parecida, e avalia que a portaria 359 vem para “institucionalizar” uma concepção fragmentada de formação segundo a qual um conjunto de cursos de qualificação profissional com certificações intermediárias previstas pelo Catálogo Nacional de Cursos Técnicos corresponda a um curso técnico, mesmo que cursados em diferentes instituições e sem o que Lima chama de uma “concepção homogênea” de currículo. “Eu posso fazer um curso em uma escola privada, fazer um outro pedaço no sistema S, outro pedaço na rede estadual, junto tudo isso e tenho um certificado como sendo técnico. Essa portaria facilita esse processo, fomenta isso, com recursos da bolsa-formação”, diz.

Trata-se de mais uma evidência de que a política pública de integração curricular, fundamentada na educação politécnica, vive um processo de desmonte no país - Lucas Pelissari


Fortalecimento do setor privado

Outra normativa, essa publicada no dia 3 de maio, acrescenta, segundo os pesquisadores, mais uma peça à engrenagem da reforma no que se refere à educação profissional. A portaria 314 estabelece critérios para que instituições privadas de ensino superior se habilitem para ofertar cursos técnicos de nível médio. Não é uma novidade: uma portaria do MEC de outubro de 2019 (nº 1.718) já havia normatizado a questão. O que muda, segundo matéria divulgada no site do MEC, é que esse novo documento “facilitará especialmente a ampliação dos cursos técnicos à distância”. “A antiga portaria previa a necessidade de apresentação de um pedido para cada endereço de oferta e, na nova regra, basta um único pedido, por curso, na sede da IPES [Instituição Privada de Ensino Superior], informando todos os polos onde deseja realizar a oferta”, afirma a matéria.

A inserção do setor privado na execução da oferta de cursos de qualificação profissional via bolsa-formação pelo Pronatec vem se consolidando já há algum tempo: em 2013, a lei 12.816 incluiu no texto da lei que regulamentou o Pronatec (Lei 12.513/11) as instituições privadas de ensino superior entre as habilitadas para executar essa oferta. Inicialmente apenas instituições públicas federais, estaduais e municipais e as entidades do Sistema S estavam autorizadas a captar recursos dessa forma. Já em dezembro de 2021, a portaria 1.042 do MEC estabeleceu normas para execução da bolsa-formação no âmbito do Pronatec, prevendo que ela corresponda também ao pagamento de bolsa de estudo na forma de mensalidades para as instituições privadas ofertantes de cursos técnicos concomitantes e subsequentes. “Há uma visão equivocadíssima, que entende que quem oferta o curso superior teria automaticamente a capacidade de ofertar um curso técnico. Isso não é verdade, porque o curso técnico não são apenas os equipamentos, uma sala de aula e nem apenas professor; é capacidade para trabalhar com adolescentes, para trabalhar com determinados aspectos formativos com os quais a educação superior de certa forma não atua”, defende Almerico Lima.

Segundo Dante Moura, o foco na flexibilização da oferta à distância da portaria 314 é mais um exemplo da “coerência” das normativas do MEC relativas à educação profissional  desde a aprovação da reforma do ensino médio, que permitiu que até 30% do currículo dessa etapa seja cumprida à distância. Para ele, a análise conjunta das portarias 359 e 314 sinaliza um aceno à entrada massiva na oferta do itinerário de educação profissional do ensino médio pelas instituições privadas de educação superior, que ficam autorizadas a oferecer cursos técnicos com parte significativa da carga horária feita à distância, inclusive de forma segmentada em cursos de qualificação de curta duração, tudo com financiamento público via bolsa-formação. “Se flexibiliza mais ainda as condições para que essas empresas privadas possam ter acesso ao fundo público”, lamenta Moura. 

Lucas Pelissari, professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e vice-coordenador do GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), argumenta que a tendência é o fortalecimento de iniciativas que já vêm causando polêmica em alguns estados na implementação da reforma do ensino médio. Um exemplo é o convênio no valor de R$ 38 milhões firmado entre o governo do Paraná e uma faculdade particular, a Unicesumar, para a oferta de aulas à distância para os estudantes da rede estadual que escolheram seguir o itinerário da educação profissional instituído pela reforma. Iniciativa cuja implementação, segundo apurou matéria do jornal Folha de São Paulo, se deu sob protestos de estudantes do ensino médio estadual, que organizaram, em abril, manifestações contra a falta de qualidade das aulas ministradas pela televisão sem a presença de um professor em sala de aula, com muitos estudantes inclusive se recusando a assistir as aulas. “Por ser resultado da própria pressão de grupos empresariais, a portaria 314 aprofundou a fragilidade do modelo adotado pela atual reforma na educação profissional”, destaca Pelissari, chamando atenção para a ausência de referência à  modalidade de educação profissional integrada ao ensino médio no texto, que prevê apenas a oferta de cursos nas formas concomitante e subsequente. “Trata-se de mais uma evidência de que a política pública de integração curricular, fundamentada na educação politécnica, vive um processo de desmonte no país”, critica o pesquisador.

Professor não é mais um sujeito formado em uma área que, em razão dessa formação, se torna habilitado a ensinar. Ele é alguém que se forma para ensinar. [O que essas diretrizes trazem] é uma restrição do campo de conhecimento do professor - Marise Ramos

Vale tudo?

Em junho, por sua vez, entrou em vigor uma resolução do CNE que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Profissional Técnica de Nível Médio. A necessidade de uma política pública contínua de formação para a docência na educação profissional é uma reivindicação histórica no Brasil, mas segundo especialistas ouvidos pelo Portal EPSJV, a resolução do CNE faz pouco para avançar nessa questão.

A professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Marise Ramos, em entrevista concedida em maio ao Portal, argumentou que o que as novas diretrizes fazem é “não deixar nada fora da lei”, prevendo todas as possibilidades de formação que já existem – cursos de graduação de licenciatura, cursos de especialização lato sensu em docência na educação profissional, programas especiais de formação, de caráter excepcional, e cursos destinados à formação pedagógica para licenciatura de graduados não licenciados – mais “outras formas, em consonância com a legislação”, incluindo uma formação em serviço a ser propiciada pela instituição a profissionais com o chamado “notório saber”.

Essa é outra “novidade” da reforma do ensino médio, que permitiu que profissionais com experiência profissional em determinada área, ainda que sem formação para a docência, sejam contratados como professores das disciplinas ligadas à formação técnica. “O grande problema sempre foi a formação dos professores que vão atuar nas disciplinas específicas da educação profissional. A resolução ‘resolve’ dizendo que pode um monte de coisa, mais outras. Na verdade, todos os cursos de formação podem, até mesmo, não existir. Porque pode ficar tudo na base do reconhecimento do notório saber”, afirmou Marise.

A falta de uma regulamentação mais precisa do que significa o notório saber tem sido uma crítica frequente de especialistas em educação profissional desde a aprovação da lei 13.415 e da publicação pelo CNE de normativas subsequentes, como as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Profissional e Tecnológica (de janeiro de 2021) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica (de dezembro de 2019). Segundo Ramos, a resolução de 2022 não preenche essa lacuna, o que preocupa. “Ela ainda não disciplina o notório saber, somente exige que a instituição apresente um plano ao órgão supervisor do respectivo sistema de ensino”, avalia a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, destacando que “há uma prevalência da experiência prática em detrimento do conhecimento teórico, do conhecimento científico” como critério para atuar como docente na educação profissional. No artigo 2º da resolução, por exemplo, lê-se que os programas de formação podem ser organizados por habilitação profissional e não apenas por eixos ou áreas tecnológicas. “É uma restrição absurda. Então você vai se formar como um professor da sua habilitação específica, por exemplo, dentro da gerência em saúde, sem ter uma formação na área da saúde como um todo?”, critica Ramos. Outro trecho problemático, segundo ela, é o artigo 9º, nas disposições finais da resolução, que diz que “a experiência efetiva e atualizada como profissional no mundo do trabalho, referente à habilitação profissional, eixo ou área tecnológica em que for exercer a docência, é requisito preferencial para atuar em curso de Educação Profissional Técnica de Nível Médio”. “Tem uma redução do conhecimento pedagógico ao elemento didático ou didático metodológico, que é uma das dimensões do saber docente, mas não é o único nem o principal. Isso não é uma questão exclusiva da educação profissional, é como a concepção de formação de professores hoje está disciplinada”, analisa Ramos, para quem essa lógica fica ainda mais grave na educação profissional. “Professor não é mais um sujeito formado em uma área que, em razão dessa formação, se torna habilitado a ensinar. Ele é alguém que se forma para ensinar. [O que essas diretrizes trazem] é uma restrição do campo de conhecimento do professor”, conclui.

O MEC não respondeu à solicitação de entrevista enviada pelo Portal EPSJV.

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Entra em vigor no dia 1º de junho a resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) que instituiu as Diretrizes para Formação de Professores da Educação Profissional Técnica de Nível Médio, aprovadas em 6 de maio e publicadas no Diário Oficial da União no dia 11. Nesta entrevista, Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), analisa o conteúdo da resolução. Segundo ela, ao invés de estabelecer diretrizes para uma política consistente de formação para a docência na educação profissional, uma reivindicação histórica de trabalhadores, pesquisadores e gestores no Brasil, a resolução serve apenas para “não deixar nada fora da lei”, acolhendo as diversas possibilidades de formação que já vinham sendo implementadas no país ao longo dos anos. Ramos ressalta ainda que o texto regulamentar deixa de lado a regulamentação da brecha aberta pela lei 13.415/17, da Reforma do Ensino Médio, que permitiu a atuação de professores sem formação para a docência na educação profissional, através da instituição do chamado “notório saber”
O Ministério da Educação (MEC) divulgou recentemente dois documentos relacionados à oferta do itinerário de educação profissional previstos pela lei 13.415/17, da chamada Reforma do Ensino Médio. Um deles é a ‘Cartilha de Orientação às Redes Ofertantes de Educação Profissional e Tecnológica’. Segundo o MEC, o documento, em sua segunda edição, traz uma série de ferramentas e base de dados que de acordo com o ministério podem ser utilizadas por gestores para a definição da oferta de educação profissional alinhadas “a demanda dos diferentes setores econômicos”. O segundo documento é o ‘Itinerário da formação técnica: guia de implementação’, que como o próprio nome diz, procura orientar gestores de forma didática quanto às possibilidades de organização dos arranjos curriculares para oferta de cursos técnicos e de qualificação profissional no bojo da reforma. Segundo Lucas Pelissari, vice-coordenador do GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR), onde coordena o grupo de pesquisa ‘Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional’, os dois documentos explicitam o “discurso tecnicista” que orienta as políticas voltadas para a educação profissional a partir da lei 13.415/17, que subordina, de forma acrítica, a formação profissional somente às demandas do chamado setor produtivo. Além disso, expõem a extrema fragmentação curricular possibilitada pela reforma para a educação profissional.