Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Financiamento: o ‘x’ do Sistema

Projeto aprovado no Senado, que aguarda discussão na Câmara, estabelece critérios para a qualidade da educação mas não garante financiamento extra para estados e municípios que não tenham recursos suficientes
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 23/05/2022 15h28 - Atualizado em 01/07/2022 09h40
Novo Fundeb aumenta complementação da União, mas luta é para que lei do Sistema Nacional de Educação traga mais recurso para garantir qualidade Foto: Gustavo Bezerra

Ambiciosa, a luta pela criação de um Sistema Nacional de Educação (SNE) nunca foi um debate apenas sobre financiamento. Se fosse, em 2022 talvez ela fizesse menos sentido .do que em outros tempos já que, em relação à educação básica, que é o segmento mais atingido pelas mudanças no pacto federativo que o SNE pretende estabelecer, o país viveu uma mudança de legislação recente, com a aprovação do novo Fundeb, em 2020. É inegável, no entanto, que para promover a “igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, inclusive para aqueles que não tiveram oportunidades na idade própria”, entre outros princípios e diretrizes do Sistema listados no projeto aprovado no Senado, é necessário dinheiro. E isso tem a ver tanto com a definição de funções de cada ente federado quanto com a ampliação do diálogo e negociação entre eles que o projeto do SNE propõe. “O Sistema Nacional de Educação é predominantemente ligado ao financiamento, mas recessivamente é também ligado às políticas de educação”, diz Carlos Jamil Cury, professor da PUC-MG, identificando o CAQi, o Custo Aluno-Qualidade Inicial, e o CAQ, o Custo Aluno-Qualidade, como “pontos de interseção entre a organização pedagógica da educação brasileira e o financiamento”, expressos no projeto do SNE.

O professor refere-se aos dois indicadores criados pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação para definir “quanto deve ser investido por ano por aluno de cada etapa e modalidade da educação básica”, como explica o site da entidade. O “i” da primeira sigla sinaliza um ponto de partida inicial, ou seja, o custo para se manter um padrão mínimo de qualidade. “O CAQi diz respeito a um conjunto de insumos que não dá mais para ignorar nas escolas brasileiras”, resume Cury, ressaltando como a ausência dessa padronização mínima ficou evidente durante a pandemia, escancarando a desigualdade na capacidade das escolas de adquirir e manter insumos pedagógicos, principalmente as tecnologias de comunicação e informação necessárias para as atividades remotas. Acontece que, por definição, “mínimo” é menos do que “suficiente”. Por isso, o site da Campanha também explica que, dado esse primeiro passo, o CAQ avança incluindo outros insumos, com o objetivo de aproximar o investimento brasileiro do de “países mais desenvolvidos em termos educacionais”.

Como, mesmo para atingir o mínimo, é preciso aumentar muito o gasto em educação, a construção do CAQi e do CAQ incluiu a definição de critérios objetivos de qualidade, o que significa apontar coisas que não podem faltar nas escolas e nas redes educacionais para que seja possível oferecer uma educação de qualidade. Entre elas estão uma infraestrutura adequada, com instalações como laboratórios, bibliotecas e quadras esportivas, a disponibilização de materiais didáticos, adoção de parâmetros para o tamanho das turmas e salário dos professores. “O CAQi contempla as condições e os insumos materiais e humanos mínimos necessários para que os professores consigam ensinar e para que os alunos possam aprender”, diz o site da Campanha.

Na verdade, a defesa de que é preciso estabelecer um padrão mínimo de qualidade para a educação não é nova: está no artigo 206 da Constituição Federal, assim como na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Mas foi quando a Emenda Constitucional 108 criou o novo Fundeb, em 2020, que o CAQ foi apontado como referência para essa qualidade, o que se repetiu na lei que regulamenta o novo Fundo (nº 14.113, do mesmo ano). Em ambos os casos, o texto legal aponta a necessidade de uma regulamentação futura, que chega agora, com o projeto de lei complementar que institui o Sistema Nacional de Educação. “Uma inovação que o texto traz é regulamentar o Custo Aluno-Qualidade, que, com certeza, se já estivesse implementado, teria conseguido diminuir as desigualdades regionais e econômicas que se tem Brasil afora no que diz respeito aos orçamentos educacionais”, diz Yuri Santos, assessor parlamentar do senador Dario Berger (PSB-SC), autor do substitutivo aprovado.

Em nota técnica publicada após a aprovação do PLP 235 pelo Senado, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação comemora a votação, reconhece a urgência do tema, mas sugere emendas a serem feitas durante a tramitação do texto na Câmara. “Reconhecemos que é imprescindível aprovar o SNE, mas o PLP 235/2019 precisa de ajustes”, diz Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha. E um dos principais pontos que, segundo ela, deve ter o debate aprofundado está relacionado exatamente ao Custo Aluno-Qualidade – os outros dois temas destacados por Pellanda são o aprimoramento do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) e a garantia de uma gestão mais democrática.

Ressaltando que a elaboração do projeto substitutivo teve como característica o diálogo permanente com os principais atores do campo da educação – o que teria facilitado sua aprovação por unanimidade –, o assessor do relator do projeto, Yuri Santos, diz que poucas demandas ficaram de fora: duas delas têm a ver diretamente com o financiamento que pode (ou não) garantir a qualidade da educação. Segundo ele, a Campanha defendia que o projeto apresentasse uma lista mais completa de insumos necessários para se considerar a qualidade da educação. O texto votado no Senado cita diretamente a “estrutura física, tecnológica e de pessoal das escolas”; “estrutura das carreiras docentes”; “gestão democrática”; “programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde, entre outros”; e “indicadores de gestão”. “Nós enfatizamos, como contribuição, que apareça de forma mais detalhada o Custo Aluno-Qualidade dentro do projeto”, pontua Nalu Farenzena, da Fineduca, que também integra a Campanha.  De acordo com Santos, o PL optou por “um meio termo”. “A gente não gostaria de deixar o CAQ tão fechado a ponto de dizer que tem que ter ar-condicionado em toda sala de aula. Isso quem tem que debater são os gestores e não a lei em si”, defende. O PL define que cabe à Cite, instância de pactuação tripartite, estabelecer “diretrizes e a metodologia para a formulação do CAQ nacional, com base em proposta tecnicamente fundamentada”. A partir dessa metodologia, a Cibe, que reúne os gestores municipais e estadual, calcula o CAQ daquele estado e o submete para aprovação da instância de pactuação nacional.

De fato, a nota técnica da Campanha propõe um detalhamento muito maior do que o que consta do projeto encaminhado à Câmara. Só no primeiro tópico, que se refere à “estrutura física, tecnológica e de pessoal das escolas”, a entidade sugere elencar oito critérios objetivos, que vão desde insumos como biblioteca, laboratórios de ciências ou informática, internet banda larga e quadra poliesportiva, até direitos básicos como saneamento, água potável, luz elétrica e acessibilidade. A ideia é que, sem isso, não há pactuação que possa garantir uma educação de qualidade.

A preocupação com o impacto financeiro de decisões que passariam a ser tomadas num espaço que contará com a participação dos três níveis de governo atravessa todo o projeto. Um dos artigos, por exemplo, estabelece que as deliberações que implicarem “obrigações administrativas ou financeiras a ente federado” devem produzir também uma “memória de cálculo do impacto orçamentário-financeiro”das medidas. Mas o verdadeiro pomo da discórdia é o fato de, na prática, o projeto condicionar o uso do CAQ como referência de qualidade na educação brasileira à disponibilidade de recursos. Para citar apenas um exemplo da forma contraditória como esse tema aparece no texto, enquanto o parágrafo primeiro do artigo 40 afirma que “o valor do CAQ em âmbito nacional será progressivamente assegurado a todos os estabelecimentos públicos de educação básica do país”, o caput do artigo diz que “é facultada à União” a suplementação de dinheiro para estados e municípios que não tenham recursos para “assegurar a implementação de padrão mínimo de qualidade”. “Está faltando no projeto garantir o financiamento federal para que todas as redes públicas do Brasil alcancem o Custo Aluno-Qualidade”, resume Farenzena. Ela explica que, apesar de o CAQ ter sido constitucionalizado com a Emenda que instituiu o novo Fundeb, o recurso do governo federal necessário para que ele seja atingido não está garantido na Constituição e, se não for definido na lei complementar do SNE, pode simplesmente não se realizar.

Santos explica que, nas negociações feitas para a tramitação do projeto, foi “um pedido” do governo federal que o texto não o obrigasse a investir mais recursos para garantir o CAQ. A principal justificativa é que não se sabe ainda o impacto no orçamento do aumento da complementação da União para o Fundeb, que chegará a 23% em 2026, como estabeleceu a Lei 14.113, aprovada no final de 2020. “A União pode fazer [o aporte de mais dinheiro] de acordo com os recursos que ela tem disponíveis para isso, assim como os estados também podem ajudar os municípios a chegarem a esse CAQ”, explica Santos. Pode, mas não é obrigada. “A gente sabe que isso não vai acontecer da noite para o dia. Agora, a gente cria mecanismos e liberalidades para que a União, estados e municípios, através de conversas entre si, consigam colocar mais dinheiro na educação para além do que já vem no Fundeb”, argumenta. Farenzena, no entanto, pondera: “A lei do Sistema Nacional de Educação contempla um financiamento mais justo por meio desse dispositivo que é o Custo Aluno-Qualidade, e que, para se concretizar, precisa de um aporte de recursos por parte do governo federal muito maior do que hoje nós temos de complementação da União ao Fundeb”. Segundo Santos, o projeto abre uma “possibilidade de diá-logo”, mas sem garantias. “Tudo vai depender da correlação de forças daqui para frente”, diz.

Leia mais

Demanda antiga de profissionais, pesquisadores e militantes, a construção de um Sistema Nacional de Educação pode se tornar realidade. Aumentar a participação social ainda é desafio
Texto traz de volta a possibilidade de recebimento de recursos do Fundo por instituições do Sistema S, que havia sido rejeitada durante tramitação da Lei do Fundeb em 2020