O último dia de programação do 12º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrascão) que aconteceu na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro, cedeu espaço para a discussão das ‘Conquistas, limites e desafios da Educação profissional em saúde no Brasil. Maria Ciavatta, professora titular em Trabalho e Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Grupo THESE (Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde) apresentou a educação a distância (EaD) como um dos maiores desafios da educação profissional integrada em todas as áreas, mas principalmente para a saúde. “É possível entregar a educação de jovens apenas à educação a distância? A força de um professor no mundo de hoje não é mais o conhecimento, e sim sua capacidade de discutir o conhecimento, mas a educação profissional mecanizada não traz isso”, afirmou.
Ela também chamou atenção para a Reforma do Ensino Médio. “A Reforma abre brecha para até 40% de EaD no ensino médio, o que representam dois dias por semana fora da escola, e 100% de EaD na Educação de Jovens e Adultos”, explicou Ciavatta e ainda reforçou: “A educação precisa de interlocução do aluno com o professor. Os itinerários formativos aligeiram o ensino médio, privilegiam o preparo para o Enem e impelem os jovens pobres à educação profissional. Em vez da universalização do ensino médio, acontece a privatização da educação e a desresponsabilização do Estado com a Educação”.
Para professora, o ensino médio integrado coloca em pauta uma concepção de educação que está em permanente disputa na história da educação brasileira. “O limites da formação integrada estão no próprio modelo instalado. Pois ela prevê a politecnia, que é completamente oposta ao que o mercado prevê. Educar a todos ou uma minoria supostamente mais apta ao conhecimento? A ideia de formação integrada remete ao sentido de aproximação das partes, dos campos do saber, das formas de conhecimento, das classes sociais. Remete principalmente ao sentido marxista de politecnia ou de educação tecnológica, do atendimento a todas potencialidades humanas, uma educação omnilateral”, definiu.
Segundo Ciavatta, essas questões foram acentuadas a partir do Golpe de 2016, com um desmonte progressivo e acelerado do ensino médio, da qualidade da educação profissional e dos direitos sociais assegurados pelo Estado democrático. “A regressão nos direitos trabalhistas, educacionais e previdenciários a que estamos sujeitos tem antigas raízes no tecido social brasileiro. Elas alimentam as relações de classe, a forte desigualdade social e a permanência dos privilégios das elites até os dias de hoje. O governo ilegítimo desloca-nos para a posição de povo que aspira ter direitos sociais assegurados e condições dignas de vida, para posição de público atônito”, disse.
Mas o que é necessário para que a educação seja de fato integrada? Para a professora, esse projeto “ousado” demanda vontade de gestores e professores de se prepararem para implantar a formação integrada entre o ensino médio e a educação profissional, técnica ou tecnológica; a reversão da orientação da educação para o mercado em direção aos processos de formação humana mais amplos; a democracia como método, como conteúdo e processo, através de formas participativas com base no coletivo; apoio do poder público e institucional na forma de recursos materiais e humanos; trabalho de preparação, acompanhamento e avaliação de experiências e sua socialização para a renovação da mentalidade sobre os fins da educação. “Vivemos um retrocesso no processo civilizador, de., violência, a barbárie e comprometimento do Estado com o Estado de exceção em todos os ambitos sociais. Mesmo precarizado, reafirmamos a centralidade do trabalho na produção da vida, da cultura, dos modos de vida e da educação do ser humano. São muitas as contradições e desafios que cercam o projeto de formação integrada entre o ensino médio e a educação profissional”, concluiu Maria Ciavatta.
Ganhos e perdas
Diretora da Escola Técnica do Sistema Único de Saúde em Brasília (Etesb), Ena Galvão fez um histórico dos programas de incentivo à educação profissional em saúde no Brasil. O pontapé inicial foi na década de 1980, com a implantação do Projeto Larga Escala (PLE), que previa a formação de mais de 300 mil trabalhadores espalhados por todo território nacional, com as mais distintas realidades. “As peculiaridades exigiam um modelo de docência diferenciado, com o eixo metodológico que integrava ensino, serviço e comunidade e a elaboração de um currículo diferenciado. Também houve grande adesão dos gestores municipais e estaduais e articulação políticas de 26 Escolas Técnicas do SUS (ETSUS) com os gestores de educação saúde e conselhos profissionais”, explicou Ena ao mencionar que o resultado do projeto foi a formação de 100 mil trabalhadores, sendo 80% na área de enfermagem.
No entanto, havia muitos limites, como a falta de material didático específico – os textos eram de nível superior com recortes –, a heterogeneidade dos trabalhadores da saúde, a implantação de escolas em todas as unidades federativas e o financiamento. Mas na década de 90, com o Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem (Profae), alguns desses desafios puderam ser superados. “Conseguimos formar mais de 200 mil auxiliares de enfermagem, mais de 9.500 técnicos. Em articulação com as secretarias de educação, mais de 12 mil profissionais concluíram o ensino médio. A execução descentralizada dos cursos permitiu que chegássemos a mais de cinco mil municípios e à construção de 11 ETSUS e reforma de mais três e também à elaboração de livros texto”, contou Ena.
Nos anos 2000, segundo ela, dá-se início ao período mais fértil da educação profissional em saúde com a criação, em 2010, do Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps), que ampliou a formação para outras áreas profissionais, com ênfase em biodiagnóstico. No mesmo período, foi instituída a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), que agora é composta por 41 escolas e possibilitou a oferta do Mestrado Profissional aos docentes da Rede, e a criação da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) na estrutura ministerial. “No entanto, nos últimos anos estamos passando por algumas dificuldades. Ainda carecemos de um quadro de docente menos flutuantes para essas escolas e também o estabelecimento de mecanismos permanentes de gestão financeira que não estejam fixados ao orçamento geral das secretarias”, orientou Ena.
Riscos
Marcia Valéria Morosini, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) coordenou a mesa e fez algumas reflexões do que o cenário atual indica para a educação profissional. “O ensino médio integrado na área da saúde tem desafios muito próprios e específicos.. Vemos um Ministério da Saúde que desenvolve um Profags ao invés de dar continuidade ao Profaps, que estendeu a formação técnica dos trabalhadores da área de enfermagem para ouras áreas, como por exemplo a construção do currículo técnico da formação em vigilância em saúde, área de análises clínicas”, argumentou Marcia que se refere ao Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde (Profags), em que o Ministério da Saúde financiará a abertura de 250 mil vagas para qualificação de agentes comunitários de saúde (ACS) e de combate à endemia (ACE) como técnicos em enfermagem em todo Brasil.
Para a professora, querem “colocar na conta de um único profissional a responsabilidade que equivale a três”. “Os agentes comunitários em saúde (ACS) e os agentes comunitários em endemias (ACE) não estão pedindo para serem formados técnicos em enfermagem. Eles querem ser formados técnicos em suas áreas. O referencial curricular do ACS já pronto desde 2004 e de vigilância em saúde desde 2011, criado pelas ETSUS no âmbito do Profaps”, criticou.
Marcia ainda fez uma comparação entre o Profae e o Profags e mostrou os riscos. “São construções que estão em perigo. Enquanto o Profae investiu em materiais didáticos, formação docente na área da saúde, trouxe um componente de investimento específico para infraestrutura das ETSUS – que dependem fortemente do orçamento ministerial –, o Profags abre um edital que convoca, sem nenhuma distinção, a rede a pública e a privada a concorrerem ao mesmo montante de recursos que o Profaps teve para fazer formação e investir na RET-SUS ao logo desses anos”, afirmou Marcia e ainda acrescentou: “Temos uma formação profissional no país que há anos permanece, majoritariamente, sendo feita pelo setor privado. São escolas técnicas privadas formando os trabalhadores para atuarem no setor público. Somente recentemente, e de modo ainda restrito, a Rede Federal tem desenvolvido formação na área da saúde. Seria importante que essa rede se aproximasse da RET-SUS para unirem esforços em prol da formação técnica em saúde”, almejou.