A Constituição Federal de 1988, no artigo 200, instituiu que cabe ao SUS executar ações de Saúde do Trabalhador. Como era antes?
Não era. Para entender a área, a gente tem que fazer essa pergunta. A Saúde do Trabalhador tinha e continuou tendo a chancela e a tutoria da Organização Internacional do Trabalho [OIT], criada no início do século 20 em função de questões econômicas. O Brasil foi signatário da criação da OIT, em 1919, como parte do Tratado de Versalhes, [firmado] quando acabou a 1ª Guerra Mundial. O tratado era basicamente para falar da dívida de guerra da Alemanha, e aí colocaram um penduricalho, um artigo para tratar da criação da Organização Internacional do Trabalho, que era uma reivindicação antiga dos países capitalistas centrais. A partir daí, houve coisas interessantes, a gente não pode negar a importância da OIT. Mas ela tem uma história que colocou sempre a saúde no trabalho como uma saúde fora do seu lugar. A saúde no trabalho, para a OIT, sempre foi uma questão mercantil, um ativo da relação capital-trabalho. Para isso foram feitas as legislações trabalhistas: onde você discute, por exemplo, salário, você discute saúde. A legislação trabalhista tradicional é fundamentalmente preventivista e à previdência cabe tentar reparar aquilo que a previsão não conseguiu resolver. Até 1988, a Saúde do Trabalhador nunca foi foco da Saúde Pública. Se tivesse uma pessoa acidentada no trabalho que chegasse a uma emergência, podia até ser atendida, mas era imediatamente encaminhada para a Previdência Social, se tivesse carteira assinada. Quem tratava disso eram o Ministério do Trabalho, a legislação do trabalho, o Ministério da Previdência. Esse é um fenômeno inacreditável: pessoas podiam morrer, por exemplo, de uma pneumonia por decorrência do trabalho, uma silicose, e jamais a Saúde Pública se meteria nisso. A tuberculose, sim. A silicose, não. Era assim que funcionava.
Na Reforma Sanitária a gente teve um movimento influenciado pela medicina social latino-americana e pelo modelo operário italiano de Saúde do Trabalhador. A Saúde do Trabalhador surge como um paradigma epistemológico da Itália, nos anos 1960. A Itália do pós-2ª Guerra foi um dos países mais prejudicados financeiramente pelo Plano Marshall [Programa estadunidense de financiamento da reconstrução dos países europeus após a guerra, como parte da estratégia da Guerra Fria]. E, a partir do final dos anos 1940, viveu a maior catástrofe no mundo do trabalho para se reerguer, chegando a se tornar a campeã mundial de acidente de trabalho. O Partido Comunista Italiano e o Movimento Sindical Italiano, a Confederação Geral de Trabalhadores Italianos, se uniram e, num movimento que levou uns dez, 15 anos, começaram uma verdadeira rebelião ideológica e técnica contra a medicina do trabalho, a engenharia de segurança e a saúde ocupacional, que não davam conta das mortes no trabalho na Itália. Eles diziam o seguinte: ‘Saúde não se vende, Saúde não se delega ao técnico, ao médico. O saber técnico é importante, mas não pode ser hegemônico nem autoritário para dizer o que eu tenho que fazer com a minha saúde. Porque nesse modelo a gente está morrendo. A gente quer ter voz’. É uma história bonita. Nos anos 1960, eles chegaram a formar 3 milhões de operários dentro desse modelo, baseado um pouco no modelo do [Antonio] Gramsci, do círculo de cultura, de 40 anos antes. E aí começa o movimento que veio para o Brasil como Saúde do Trabalhador, que fala de pertencimento, diferenciando-se da saúde ocupacional e da medicina do trabalho – veja que a medicina não é do trabalhador, é do trabalho, e a quem pertence o trabalho, se não ao capital? Foi uma discussão vigorosa e vitoriosa e muita coisa avançou. Desse modelo nasce a ideia de saber operário, de que não se faz nada em Saúde do Trabalhador sem a participação do trabalhador. O modelo de mapa de risco que o Brasil adotou na legislação trabalhista [como tarefa] da CIPA, a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, é uma invenção do modelo operário italiano, que depois ganhou força como método pedagógico. Esse modelo passou a ser contra-hegemônico ao da saúde ocupacional e da medicina do trabalho, que era e continua sendo uma saúde a mando do capital, a mando do patrão. No Brasil, o médico de trabalho e o engenheiro de segurança são empregados do patrão, se falarem alguma coisa que não interessa ao patrão, tchau e benção. A gente tem milhares de histórias de médicos e engenheiros que são demitidos porque se contrapõem a medidas que podem levar à doença e acidentes. A Reforma Sanitária Brasileira foi profundamente inspirada na Reforma Sanitária Italiana, que se baseou em duas grandes lutas pela saúde: a luta antimanicomial, pela Reforma Psiquiátrica, e a luta pela Saúde do Trabalhador. Isso é para entender que, quando chega o processo constituinte no Brasil, a Saúde do Trabalhador entra com uma marca contra-hegemônica profunda contra a saúde ocupacional, que é profundamente enraizada até hoje na Previdência Social e no Ministério do Trabalho.
Em vários textos, você cita a medicina do trabalho, a engenharia de segurança e a saúde ocupacional como áreas técnicas que teriam relação com a Saúde do Trabalhador mas seriam insuficientes para proteger a saúde e, portanto, devem estar subordinadas a ela. Por quê?
O que está em jogo aí é o contrato. É como eu falei: assim como você tem o contrato para a questão salarial, para a folga semanal, para a jornada de trabalho, você tem o contrato para a saúde. Quem dita o contrato para a saúde é a norma de saúde e segurança do trabalho, que é a Norma Regulamentadora, a NR. As NRs têm muitos problemas. Primeiro que elas jamais darão conta da complexidade da saúde. Como é que você vai colocar a questão da subjetividade humana numa NR? Você não consegue alcançar a plenitude da saúde do ponto de vista mais holístico, como direito maior, a questão da integralidade, a questão não só da universalidade, mas também da equidade. Então, o contrato é, a priori, restritivo. Ele é importante, mas tem que ser ampliado. Na Reforma Trabalhista, por exemplo, ao invés de ser ampliado, ele foi restringido. A norma contratual fica muito sujeita a questões de governo. Ela não é uma política de Estado – é diferente de quando um Estado Democrático de Direito tem uma regra [da Saúde do Trabalhador como] Direito Humano, que está acima de um contrato. Nesse caso, independentemente do contrato, que deve ser honrado e cumprido, você tem um outro tipo de ‘contrato’, que é o do Direito Humano, com o Estado Democrático de Direito. É preciso, então, um outro ordenamento jurídico. Tudo aquilo que está dentro da saúde ocupacional está regulamentado pelo contrato. No caso da saúde ocupacional, você tem uma Norma, a NR4, que é sobre o serviço especializado de segurança e medicina do trabalho, mas esses caras só fazem exame admissional e periódico, não saem nem do consultório. Exceções sempre tem, mas são raras. E quem não tem o contrato, como é que faz? Qual a regulação possível numa sociedade que hoje tem um percentual tão grande de trabalho não regulamentado?
A gente quer que a Saúde no Trabalho suba de ordenamento jurídico
Aqui entra a questão da interseccionalidade, porque se precisa de um estatuto vinculado às pautas de lutas pelos Direitos Humanos. As pautas antirracistas já tinham legislações anteriores – a Lei Afonso Arinos que tem mais de 70 anos, o Código Penal, que fala de injúria e difamação... Mas isso não é suficiente. Você tem que buscar ordenamentos jurídicos que calquem mais profundamente na questão do Direito Humano. E foi o que [nas lutas identitárias] aconteceu: hoje você tem uma lei antirracista; a questão da homofobia tem uma lei similar; existe a lei Maria da Penha... Veja só, esse ordenamento não é contratual. O contrato é com o Estado, não com o patrão. Não vai para um acordo coletivo. Essa é a questão que a gente está discutindo hoje. A gente quer que a Saúde no Trabalho suba de ordenamento jurídico. O que a gente pretende nessa conferência é começar a discutir a mudança de patamar jurídico, a mudança do paradigma [da Saúde do Trabalhador], como foi na 8ª Conferência Nacional de Saúde. A 8ª mudou o paradigma da saúde no Brasil e a gente está chamando essa 5ª [Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora] de 8ª da Saúde do Trabalhador.
Nos seus textos e no próprio documento orientador da 5ª CNST, fala-se sobre o valor simbólico da Saúde do Trabalhador como Direito Humano. Mas, para além da simbologia, que efeitos práticos – jurídicos, legais – essa mudança poderia causar? Quais seriam os próximos passos?
Esse é o grande desafio. A primeira coisa é discutir isso, porque as pessoas não sabem bem do que se trata. Quando a gente fala em valor simbólico, é o seguinte: o trabalhador, quando adoece, é culpabilizado pela sua doença. Por que não se cuidou? Por que não usou o equipamento direito? Por que foi negligente? Por que foi imperito? Se for acidente, então... A chamada culpabilização da vítima é uma regra. É tão gritante a perversidade que, no início do século 20, a saúde ocupacional inventou uma coisa chamada ‘ato inseguro’, a ideia de que quando a pessoa adoece ou se adoenta, ela comete um ato inseguro. Se você pirou, também. Essa expressão hoje está sendo banida mas, mesmo assim, tem muita gente que usa. Eu fiz durante 40 anos fiscalização de empresas e vi que o embate é muito forte.
A gente quer que, quando você tiver algum acidente de trabalho, algum adoecimento, isso seja transformado numa questão de violação do Direito Humano naquele lugar.
Onde é que entra o valor simbólico? Se você coloca a Saúde do Trabalhador como Direito Humano, isso é demolido imediatamente. O simbolismo de culpabilização da vítima é perverso, de transferência da culpa do opressor para o oprimido. A gente quer que, quando você tiver algum acidente de trabalho, algum adoecimento, isso seja transformado numa questão de violação do Direito Humano naquele lugar. A Constituição tem um artigo que eu acho muito sacana. É o artigo 7º, que diz que o empregador, quando for comprovado que tem dolo ou culpa num acidente, estará sujeito a pagar uma indenização [ao trabalhador]. Então, o próprio simbolismo constitucional é [no sentido de] mercantilizar a culpa do cara e fazê-lo pagar uma multa. E ele não paga nunca. O próprio simbolismo constitucional é perverso. É como se uma pessoa que matou outra por ser preta tivesse que pagar uma multa! A questão simbólica é um pouco essa. Isso não vai mudar de um dia para a noite, mas a gente precisa começar a discutir.
A noção de Direito Humano substitui a de direito trabalhista?
Eu acho que eles se complementam. O contrato é muito importante para nós. É o contrato que garante, por exemplo, que a gente tenha uma jornada determinada, férias, folgas. É fundamental, embora o contrato muitas vezes seja desfavorável. A gente, inclusive, está pensando em levar para a conferência o aprimoramento da legislação trabalhista e da legislação previdenciária. Mas o Direito Humano supera o contrato, adiciona ao contrato. Porque a infração ao contrato está dentro do próprio contrato. A vida e a morte são inegociáveis, elas não são passíveis de contrato. O adoecimento, a subjetividade, o enlouquecimento, o assédio moral, o assédio sexual: nada disso está vinculado ao contrato, vai além. Então, a gente precisa ter o contrato mas ir além dele com um ordenamento jurídico que seja capaz de colocar o contrato na rota de um Direito Humano que ele não prevê.
Você costuma dizer que a luta pelo trabalho decente não é suficiente. Por quê? E em que medida a perspectiva da Saúde do Trabalhador como Direito Humano sinaliza essa insuficiência?
Trabalho decente vai ser o quê? Diminuir de 15 segundos para 20, 30 segundos, um minuto o intervalo de morte pelo trabalho?
O trabalho decente é eufemismo para dizer que a OIT regulamenta internacionalmente o trabalho indecente. Porque se a gente está propondo um trabalho decente, é porque reconhece que o trabalho é indecente. A OIT, em 2023, soltou uma estatística oficial de que no mundo há uma morte [por doença ou acidente de trabalho] a cada 15 segundos. Aí o cara vai dizer assim: ah, precisamos fazer trabalho decente. Trabalho decente vai ser o quê? Diminuir de 15 segundos para 20, 30 segundos, um minuto [o intervalo de morte pelo trabalho]? O tripartismo [forma de tomada de decisões da OIT, com representação de empregadores, empregados e governos] é a desgraça da evolução da saúde e do trabalho. Porque você colocou no Estado os capitalistas e coloca os patrões e os trabalhadores para serem as outras partes do tripartismo que vai decidir. É botar um boxer contra dois no ringue. Na primeira reunião que teve [da OIT] sob o tripartismo, o Brasil mandou uma comissão de governo, uma comissão de representantes das indústrias e a representação sindical. Os representantes do governo brasileiro eram todos industriais. Isso é o tripartismo. Agora, é difícil falar isso para alguém de sindicato, que faz parte das comissões tripartites no Brasil. Essa discussão da Saúde do Trabalhador como Direito Humano é muito complicada porque a gente vai enfrentar não só o obstáculo corporativo do Ministério do Trabalho, mas também das corporações sindicais.
O Brasil ocupava o quarto lugar no ranking mundial de acidente de trabalho. Que medidas podem ser tomadas para reverter esse quadro no ordenamento jurídico que a gente tem hoje, nacional e transnacional? E como é que esse esforço de reconhecer a Saúde do Trabalhador como Direito Humano pode ajudar?
A Vigilância Sanitária não assumiu a Saúde do Trabalhador no Brasil
É muito difícil, mas a gente tem um plano já antigo: Vigilância. Por exemplo, se lembra do ‘Mal da Vaca Louca’? E agora tem a gripe aviária. O que é feito? Vigilância Sanitária. Então, se tem trabalhadores morrendo num determinado setor econômico, num determinado local, o que você tem que fazer? Tem que ir lá e investigar. Hoje a mortalidade materna é muito menor do que já foi porque, se morre uma mulher de parto, imediatamente você tem uma tropa de elite para investigar o que aconteceu. Isso é um dos caminhos. É fácil? Não. Por quê? Primeiro porque a Vigilância Sanitária não assumiu a Saúde do Trabalhador no Brasil. Ela se omite e, com isso, contraria a Constituição. Por que a Vigilância Sanitária assume a morte materna e não assume a morte de um peão que cai da obra? Agora, por exemplo, estão criando comitês de investigação de óbitos no trabalho. Já é um avanço, mas não é suficiente. A gente vê isso o tempo todo: o cara morre, [a empresa] bota outro no lugar. O comitê de investigação serve para ir lá e dizer: ‘Não, aqui você não vai botar outro no lugar. Você vai mudar esse lugar porque ele não pode ser assim’. É igual o comitê de investigação de óbito materno: se tem infecção hospitalar, você não vai deixar para lá, você vai interditar o local. Agora, não adianta só ir ali naquela obra porque lá caiu um cara, ou na padaria porque alguém cortou a mão... No Brasil, o número oficial de mortes por dia é de três a cada quatro horas. Então, tem que ter intervenções de impacto. Não adianta só pegar o seu Zezinho ali da padaria, tem que pegar os grandes conglomerados econômicos. Se tem um problema num supermercado, você tem que fiscalizar todos os supermercados daquela região. Se, por exemplo, as meninas do caixa de um supermercado estão tendo que usar fralda porque não podem ir ao banheiro, não basta você ir ao supermercado de São João de Meriti [município da Baixada Fluminense], tem que fazer no atacado. Isso é planejamento de vigilância, fundamental para pensar o país do ponto de vista de um modelo preventivista.
Além dos acidentes e morte no trabalho, existem outros indicadores relevantes para se identificar o estado da relação saúde-trabalho no Brasil?
O sofrimento mental hoje é enorme. E ainda bem que isso está tendo uma repercussão grande, que as pessoas estão falando disso, verbalizando e reconhecendo o problema no colega. É o assédio, é a sobrecarga, é uma epidemia que a gente tem hoje. Mas isso é consequência, a gente tem que resolver a causa.
Embora o Brasil venha aumentando o número de empregos com carteira assinada, os dados do primeiro trimestre deste ano mostram que pouco mais de 38% da população ainda vive na informalidade. Como o reconhecimento da Saúde do Trabalhador como Direito Humano pode atingir esse contingente?
Todos os trabalhadores têm algum tipo de vinculação com algum tipo de comprador, mesmo quem produz alguma coisa no fundo do quintal da casa, mesmo quem trabalha com plataforma, aplicativo ou como microempreendedor. A não ser o camelô, que não tem muita vinculação, mas mesmo assim tem com o poder público. Como é que você vai regular isso? Só tem um jeito: Direito Humano. O cara que trabalha para uma plataforma digital vai estar regulado por uma legislação que entende que você precisa respeitar o Direito Humano dele. Aqui é que entra aquela referência ao artigo 7º da Constituição: se for provado dolo ou culpa, vai pagar indenização? Não. Vai seguir o novo ordenamento jurídico. Pode até pagar a indenização, mas vai ter uma outra forma [de responsabilização]. Está lá no Congresso sendo discutida a regulamentação dessas plataformas [leia mais na edição 95 da Poli]. Qual ordenamento jurídico vai tratar disso? Eu acho que pode ser um ordenamento novo, ou mesmo aquele que já existe, do Direito Humano.
Mas no caso das plataformas, a grande questão é elas dizerem que não existe vínculo, que são apenas facilitadoras do contato dos profissionais com os usuários. Ainda assim, esse reconhecimento da Saúde do Trabalhador como Direito Humano pode contribuir para melhorar essa situação?
Eu acho que sim. Porque, por exemplo, se eu andar na rua e xingar uma pessoa de macaco porque ela é preta, mesmo não existindo contrato nenhum – eu não trabalho para ela nem ela trabalha para mim –, vou responder por aquilo. Se o cara trabalha para uma plataforma e foi obrigado a fazer uma entrega [que causou algum dolo] e isso for comprovado, essa é uma infração de Direito Humano e ela vai pagar por isso. Enfim, a nossa questão é acolher a garotada que está morrendo. São meninos de 20, 25 anos. Se você vir os acidentados do trabalho, a média [de idade] é essa. De bicicleta, moto...
Existem desafios específicos da Saúde do Trabalhador em relação aos trabalhadores da saúde?
Os trabalhadores da saúde sofrem tanto quanto os trabalhadores em geral. Eu acho que a puxada para os trabalhadores da saúde para fazer o debate sobre a Saúde do Trabalhador como Direito Humano desvia o foco. Vira uma pauta corporativa. Trabalhador da saúde tem que ser visto? Claro. E o da construção civil, não? A gente está discutindo Saúde do Trabalhador como Direito Humano em geral, inclusive com os trabalhadores da saúde.
O que vocês esperam dessa 5ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora? Em que medida ela deve marcar diferenças em relação às edições anteriores?
Deve ser uma mudança de paradigma. Se a gente conseguir entender a Saúde do Trabalhador não mais como uma questão trabalhista, previdenciária, sanitária, ambiental, eu acho que já seria um grande ganho. Eu acho que a gente tem que ter cuidado com a expectativa das pessoas, mas tem que estar preparado para mobilizar, explicando, afinal, do que se trata. Quando a gente fala de Saúde do Trabalhador, estamos falando de quê? A primeira pergunta pode ser direta: você é contra que a saúde laboral seja um Direito Humano? O trabalhador ter uma condição de não adoecer nem morrer no trabalho: você é contra isso? Ninguém vai ser contra. É começar a pensar que temos que ter um direito que seja mais evoluído. Quer ver um exemplo claro? O [combate ao] trabalho escravo não lida com a legislação trabalhista nem previdenciária nem sanitária. Ele trabalha com convenções internacionais. O trabalho [se baseia no] Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, no Código Civil, no Código Penal. Você já trabalha com outros estatutos que não são aqueles da [legislação] trabalhista. Por que o cara que morre no trabalho por uma negligência [tem que ser tratado] por uma NR [Norma Regulamentadora]? Mas essa mobilização não é fácil. E a gente tem que ter muita paciência quando as pessoas chegarem lá [na Conferência] com suas angústias e necessidades, querendo tratar do problema do garoto que perdeu a perna [no trabalho], foi para a fila do INSS e não resolveu. Eu tenho muita tranquilidade porque sei que isso não é para já. Lembra da música do Chico [Buarque] que diz que “nada é pra já”? [A música se chama ‘Futuros Amantes’ e o trecho referido diz: ‘Não se afobe não, que nada é pra já...’]. Então, eu estou com o Chico: nada é para já, mas se a gente começar a falar, um dia a gente se encontra lá.
E qual o papel do sindicalismo nessa luta?
Uns 20 anos atrás, uma pesquisadora chamada Diana Antoniazzi, junto com um antropólogo chamado José Sergio Leite Lopes, da UFRJ, escreveu um texto sobre os desalentados do trabalho que dizia que o sindicalismo brasileiro era muito burocrático, negocial, administrativo. Ele cuida de dinheiro, do salário mas não cuida do seu rebanho. O sindicalismo brasileiro não tem banco de dados, não sabe quantos trabalhadores adoecem... É uma coisa meio arcaica. E eles escreveram nesse texto, que é muito importante, o seguinte: por exemplo, os bancários que tiveram LER/DORT, lesão por esforço Repetitivo muito grave, para os quais o sindicato não dava bola, faziam o quê? Se organizavam em associações de LER/DORT.
O sindicalismo teria que ter uma relação com as suas bases em relação ao adoecimento
Há associações de expostos ao amianto, expostos à sílica e por aí vai. Esses caras o sindicato não atinge, eles fazem um caminho por fora. Eles vão lutar não só por aqueles direitos que são trabalhistas, mas vão também judicializar as suas questões. Então, nessa perspectiva do Direito Humano, o sindicalismo teria que rever essas práticas, ter uma relação com as suas bases em relação ao adoecimento, [saber] quem é que está morrendo. Se o cara morreu, eles têm que ir lá visitar a família. Tem que ver o que foi feito, bater em cima da empresa. Essa é uma discussão muito problemática, porque o sindicalismo hoje está combalido, não tem grana por causa da reforma [trabalhista], mas a gente tem que levar isso adiante. Outra coisa é que o sindicalismo tem que discutir as questões identitárias. No movimento sindical, grande parte são pessoas negras, são poucas mulheres, mas tem. Mas eles não discutem as questões das mulheres, as questões LGBTQIA+, as questões do racismo. E isso tem que ser revisto nessa discussão da Saúde do Trabalhador como Direito Humano. E, por outro lado, os movimentos identitários têm que discutir trabalho. Muitas vezes a luta de classe é abolida na discussão das lutas identitárias. E isso é um problema. Porque aí você passa a ter um inimigo que não é visível. O inimigo é todo mundo: é a sociedade, é o machismo estrutural, mas cadê o capital? Então, eu acho que, na questão da interseccionalidade, a gente tem que chamar os movimentos identitários para se juntarem com o movimento sindical e começarem a bater a cabeça para chegarem a um ponto comum.