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Entrevista: 
Murillo Van Der Laan

‘A proposta de diretiva para a União Europeia é a lei de regulamentação do trabalho de plataforma mais completa que a gente tem até o momento’

Tanto no Supremo Tribunal Federal quanto no Congresso Nacional, o Brasil hoje discute os caminhos para a regulamentação das atividades desenvolvidas por aplicativos – principalmente de entrega e serviço de passageiros – que envolvem cerca de 1,5 milhões de trabalhadores no país. Nesta entrevista, o pesquisador Murillo Van Der Laan, da Unicamp, apresenta as experiências internacionais que ele considera “paradigmáticas” nessa área, com destaque positivo para a Lei Rider, da Espanha, e para a diretiva aprovada no âmbito da União Europeia. Ele analisa ainda o Projeto de Lei Complementar (PLP) 12/24, que tramita neste momento na Câmara dos Deputados como resultado de um Grupo de Trabalho que contou com a participação de representantes dos trabalhadores e das plataformas, argumentando que o texto tem muitas semelhanças com a atual legislação da Califórnia, nos EUA, que foi escrita pelas próprias empresas interessadas e, segundo o pesquisador, é o exemplo de pior regulação construída até agora.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 27/05/2024 14h38 - Atualizado em 27/05/2024 15h09

Eu queria que você fizesse uma avaliação de como a Justiça do Trabalho e, mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) têm respondido ao debate sobre o vínculo dos trabalhadores por plataforma.

Houve inicialmente, como nos casos internacionais, uma proliferação de sentenças contrastantes, tanto o reconhecimento da autonomia no trabalho de plataforma quanto o reconhecimento do vínculo. Na instância superior da Justiça do Trabalho, o TST [Tribunal Superior do Trabalho], no começo você teve turmas rejeitando o reconhecimento do vínculo. Mas posteriormente teve uma espécie de virada do jogo de sentenças muito mais elaboradas, muito mais sensíveis a todo o processo complicado, complexo, das plataformas digitais. E hoje a maioria das decisões do TST, pelo menos até onde eu tenho acompanhado, são no sentido do reconhecimento do vínculo. No entanto, há um conjunto de decisões monocráticas do STF que reverteram essas decisões. Agora, como você disse, o debate foi para o plenário com sinais de que o STF vai, muito possivelmente, fazer linha com país, por exemplo, como a Hungria, que recentemente também rechaçou o reconhecimento do vínculo para entregadores de plataforma. Isso é muito grave. Há magistrados do trabalho, inclusive, que entendem que essa decisão pode ser um precedente para o esvaziamento da Justiça do Trabalho. E se há uma sinalização do STF nesse sentido de rechaço ao vínculo, enfraquece o próprio processo de regulação.

A criação de uma terceira categoria, de trabalhador autônomo com direitos, tem potencial de se espraiar para as mais diversas profissões

O governo [brasileiro] entrou no processo de regulamentação [da atividade de trabalhadores de aplicativos] através do estabelecimento da mesa de diálogos muito inspirado no caso da Espanha, e a Espanha entregou um processo paradigmático de reconhecimento do vínculo, entre 2020 e 2021. O governo entrou inspirado nesse processo, mas acabou entregando uma legislação que eu não tenho muito receio de dizer que parece ter sido escrita pelas próprias plataformas, porque segue de perto o modelo da Califórnia, onde a legislação que foi escrita por elas. A criação de uma terceira categoria, de trabalhador autônomo com direitos, tem potencial de se espraiar para as mais diversas profissões, o que pode ser muito desastroso para o mundo do trabalho. E o que é mais grave é que o governo está anunciando tudo isso como um exemplo para o mundo, essas são as palavras dos representantes do governo.

Quais são as experiências internacionais de regulamentação do trabalho por plataforma que você considera mais exemplares, no sentido positivo?

Talvez o melhor esforço para o processo de regulamentação das plataformas tenha sido o da Espanha, até a saída da diretiva da União Europeia agora. Mas eu diria até que o processo da Califórnia, do modo como começou, talvez tenha sido o melhor no sentido de regulamentação das plataformas. Porque essa legislação que eu falei que foi escrita pelas plataformas veio para reverter um processo de regulamentação que tinha acontecido na Califórnia. O processo foi o seguinte: desde 2018 a Suprema Corte californiana tomou uma decisão que teve repercussão nas plataformas. Não era uma repercussão sobre um caso de plataforma, era um processo que se estendia há quase sete anos pelas instâncias judiciais da Califórnia, mas a Suprema Corte em 2018 tomou uma decisão de reelaborar os testes que eram usados para definição de vínculo de emprego lá. Eles usavam o que chamam de testes multifatoriais: eram 11 pontos que eles analisavam para decidir se o vínculo de emprego estaria presente ou não. E a Suprema Corte entendeu que esses 11 pontos acabavam servindo como uma espécie de mapa para as empresas burlarem o vínculo empregatício e as responsabilidades delas com os trabalhadores. Então, decidiu usar o que se chamou o teste AB5, que é um teste muito mais rígido, talvez o mais rígido nessas discussões sobre verificação do vínculo. É um teste que analisa três pontos: o primeiro diz respeito ao controle do trabalho realizado, se a empresa executa esse controle; o segundo, que é decisivo para a verificação do vínculo, é [a verificação] se o trabalhador realiza um trabalho que está fora do tipo do negócio usual da empresa contratante; e o terceiro é se o trabalhador está habitualmente engajado em uma profissão, em um negócio independente. A partir desse teste, são as empresas que têm que provar que nenhum desses pontos está presente na relação que ela estabelece com o trabalhador. Isso teve uma repercussão clara sobre as plataformas. Esse projeto passou, tramitou em 2019, passou pelo congresso californiano e foi assinado pelo executivo em 2019. E a Uber e as empresas por aplicativo falaram abertamente que não iriam cumprir a legislação, e que estavam organizando um referendo para reverter esse processo de regulamentação.
As plataformas escreveram uma lei, que é a chamada Proposition 22, e apresentaram esse referendo com essa lei escrita por elas. E essa legislação dizia que os trabalhadores de plataforma seriam autônomos mas anunciava ali certos direitos que eles passariam a ter enquanto trabalhadores autônomos. E esse caso se tornou paradigmático pelo fato de o próprio projeto ter sido redigido pelas plataformas…

O referendo aprovou o projeto das plataformas?

Foi uma disputa pesadíssima, teve acusações, por exemplo, de assédio por parte de empresas que estavam tocando a campanha das plataformas na Califórnia, de pesquisadores, teve tentativa de cooptação de lideranças... As plataformas gastaram R$ 1 bilhão, foi uma das campanhas mais caras da história dos Estados Unidos para aprovação de um referendo. E finalmente toda essa propaganda funcionou e o referendo passou em dezembro de 2020, instituindo efetivamente a legislação escrita pelas plataformas. Foi um processo longo em que as plataformas conseguiram, inclusive, postergar a aplicação da lei anterior. Mesmo no meio da pandemia, teve uma organização forte de trabalhadores em defesa da legislação anterior, mas que foi finalmente derrotada. Essa legislação tem pontos paralelos muito fortes com o PL introduzido pelo governo.

O caso da Califórnia começou como uma experiência interessante de regulamentação mas foi derrotado. Que outras experiências exitosas foram concluídas? Você citou a Espanha e a diretiva da União Europeia...

O caso espanhol começou em 2020, também com uma proliferação de sentenças [judiciais] contrastantes. O caso lá ficou centrado na figura dos entregadores. E a atuação da inspetoria do trabalho com relação a esses trabalhadores dizia que eles eram classificados como falsos autônomos. Em 2020 o Tribunal Supremo Espanhol se posicionou de maneira muito forte a favor do vínculo empregatício. Analisando o caso da maior plataforma de lá, que é a Glovo, a sentença mostrou com detalhes como o processo dos entregadores, de fato, implica uma subordinação, uma dependência. E decidiu que as plataformas teriam que reclassificar os seus trabalhadores. [A sentença foi] muito elaborada porque conseguiu mostrar como o aplicativo efetivamente acaba induzindo os trabalhadores a longas jornadas, por exemplo, como o aplicativo pune os trabalhadores, como monitoram os processos de trabalho, como determinam como o serviço tem que ser efetuado, como fazem a valoração, como organizam os pagamentos, enfim, [como há] toda uma organização do processo de trabalho por parte das plataformas que é imposta aos trabalhadores, ainda que sob aparência de uma suposta liberdade deles.

Poucos meses depois o governo espanhol estabeleceu o que ele chamou de uma mesa de diálogo social, em que também chamaram a patronal e os representantes dos trabalhadores, por meio das centrais sindicais. No caso da patronal, teve um elemento interessante porque existe uma plataforma lá, que é Just Eat, que já trabalha com entregadores contratados, tem um processo de subcontratação e trabalhadores que são contratados com vínculo de emprego. E isso foi importante porque foi um elemento de dissenso na negociação da patronal, a patronal acabou rachando. E as centrais sindicais foram para a mesa de negociação num movimento interessante de defesa do vínculo, atentas também às implicações que o não reconhecimento do vínculo e a permissividade com relação à subordinação numa legislação que saísse dali poderia ter para as demais categorias que a entidade sindical representa. O processo resultou na chamada Lei Rider, que faz duas alterações na legislação espanhola, que são muito breves. A primeira, mais fundamental, é que foi criada o que eles chamam de presunção do vínculo empregatício para as plataformas digitais de entrega, centrada nos entregadores. O que é essa presunção do vínculo? É quase uma autorização, muito mais forte, que as inspetorias do trabalho espanhol têm de demandar e multar as empresas para que elas reclassifiquem os seus trabalhadores como empregados. E aí isso inverte o ônus da prova, porque são as empresas que têm que ir para os tribunais se defender e provar que os seus trabalhadores não são empregados.

O vínculo não está reconhecido de antemão? O trabalhador pode continuar trabalhando sem direito e sem vínculo mas, se ele reivindicar ou se as inspetorias do trabalho verificarem a existência de uma relação de subordinação, a empresa passa a ter que provar que ele não tem vínculo. É isso?

Na verdade, a presunção é quase um fortalecimento dos processos da inspetoria do trabalho. Diferentemente, por exemplo, [de quando] um trabalhador vai entrar na justiça do trabalho, em que ele teria que ir atrás dos elementos, das provas, em processos longos judiciais que vão se arrastar por anos e o trabalhador fica com esse ônus de provar que ele é empregado, que tem uma subordinação. Com a presunção do vínculo, as inspetorias do trabalho podem autuar e multar mais diretamente as plataformas digitais de entrega e a multa vai continuar correndo enquanto essas plataformas não comprovarem [que não existe vínculo]. O ônus é delas, [são elas que têm que provar] nos tribunais que esses trabalhadores são de fato autônomos.

Você dizia que a Lei Rider promoveu duas alterações principais. Qual foi a segunda?

A Lei Rider foi uma legislação paradigmática no sentido de garantir a transparência das plataformas

A segunda alteração da chamada Lei Rider, que é também muito importante, é que eles introduziram um novo item no capítulo, dizendo que esses representantes têm agora de ser informados sobre os parâmetros, regras e instruções que norteiam os algoritmos. Foi uma legislação paradigmática no sentido de garantir a transparência das plataformas. Qual foi o problema do caso espanhol? Foi paradigmático, mas desde 2021, quando a lei foi aprovada, as plataformas simplesmente tentaram manipular os seus modelos de negócio, fizeram algumas modificações, mas essencialmente continuaram trabalhando da mesma forma. E vêm acumulando multas milionárias. A Glovo, que é a maior, mesmo antes de a Lei Rider entrar em vigor, já acumulava em torno de uns €$ 200 milhões em multas. E agora, com a Lei Rider, novas multas estão sendo aplicadas pela inspetoria do trabalho e as empresas vão judicializando e, efetivamente, não mudaram o seu modelo de negócio. Inclusive o governo vem dando sinais de que irá impor sanções, finalmente,  a diretores, CEOs dessas empresas pelo descumprimento da legislação. Mas as plataformas estão dizendo “até agora não pagamos nada de multa”.

Algumas pesquisas apontam que, no Brasil, por razões diversas, a maioria desses trabalhadores não quer passar a ter vínculo formal de emprego com as plataformas, como você relatou que foi a solução encontrada na Espanha. Lá, as centrais sindicais presentes na mesa de negociação bancaram essa defesa, mas a base dessas categorias concordou? O cenário é diferente dessa percepção que vocês têm sobre os trabalhadores daqui?

Mais ou menos. Cada caso é bastante heterogêneo, dependendo do contexto de cada país. Mas a gente entrevistou algumas lideranças de trabalhadores espanholas e tem alguns pontos curiosos. Primeiro, o movimento mais significativo lá, o Riders x derechos, além das centrais sindicais, era a favor do vínculo empregatício. Inclusive, eles tinham uma certa desconfiança com o estabelecimento da mesa de diálogo social porque falavam que a decisão do Tribunal Supremo já era suficiente, que o que tinha que ser feito era fazer cumprir a decisão e os trabalhadores serem reclassificados como empregados. Mas paralelo a isso, houve a criação de associações falsas de trabalhadores. As plataformas criaram essas associações, inclusive, com ex-funcionários das plataformas como lideranças, que organizaram atos em defesa da autonomia. E o que os trabalhadores nos disseram é que essas lideranças inclusive recebiam determinados benefícios por parte das plataformas, numa tentativa de cooptação. Uma das principais lideranças lá comentou isso com a gente, mas tem nos documentos das centrais sindicais. O [Paulo] Galo falou uma coisa até profética, que aconteceu com essas associações falsas de trabalhadores, que é o seguinte: “a gente corre o perigo de ter uma greve de trabalhadores contra a CLT”. Lá, durante a mesa de negociação chegou a ter atos e inclusive uma paralisação geral de plataformas e de trabalhadores pela suposta defesa de autonomia. E tem um elemento que é mais difícil, que é a dimensão da imigração na Espanha. Algumas lideranças falaram para a gente: “tem entregadores aqui que vêm de uma experiência ruim, como da Venezuela, por exemplo, que tem um caráter muito mais conservador”. E, ao mesmo tempo, imigrantes indocumentados que trabalham com contas que não são deles e preferem que a coisa continue dessa forma, para que não sejam penalizados. Então, é um cenário bastante complexo. Mas eu diria que o principal movimento espanhol, que é o Riders x derechos, se posicionou de maneira bastante forte e contundente em defesa do vínculo.

A outra experiência que você mencionou foi a recente regulamentação proposta pela União Europeia. Queria que você falasse um pouco sobre isso.

Os tribunais no âmbito da União Europeia também estão mostrando uma certa tendência de reconhecimento do vínculo. E isso se fortaleceu em 2021 com a proposta da Comissão Europeia, que é uma espécie de órgão executivo da União Europeia, mas que tem a prerrogativa de iniciar um processo legislativo, de tentar harmonizar as relações no âmbito dos estados-membros com relação às plataformas. E aí eles fizeram algo parecido também com o diálogo social, foram consultar as patronais, as entidades sindicais no âmbito da União Europeia, os pesquisadores. E, no final de 2021, introduziram uma proposta de diretiva para a União Europeia que eu acho que é a lei de regulamentação do trabalho de plataforma mais completa que a gente tem até o momento. Essa sim é bastante paradigmática, é bastante forte, comparada com as outras. Essa legislação passou por um longo processo de negociação, demorou um ano de consultas até a Comissão Europeia introduzir a legislação. Depois de a Comissão Europeia propor, a legislação tem que passar pelo Parlamento Europeu, que fez emendas no sentido de fortalecer ainda mais a regulamentação das plataformas, mas tem que ser aprovado também pelo Conselho da União Europeia, que é uma entidade que reúne representantes dos 27 estados-membros, e ali a coisa travou um pouco. As negociações entre os países, principalmente em alguns do Leste Europeu, tentaram minar um pouco a regulamentação. As três entidades ficaram negociando até que finalmente aprovaram uma versão do texto que não é tão forte quanto a proposta inicial do Parlamento Europeu, mas que representa um marco na regulamentação das plataformas, não só porque constrói também uma presunção do vínculo empregatício, como o caso espanhol, mas porque avança também no sentido de uma regulamentação que a gente chama de gestão algorítmica, que é o ponto crucial dessas novas plataformas. A proposta da diretiva da União Europeia abrange não só motoristas e entregadores das plataformas mais conhecidas, mas todos os trabalhadores plataformizados. Boa parte das disposições relativas à gestão algorítmica, inclusive, se aplica, a trabalhadores de plataformas que não sejam necessariamente empregados. Então, mesmo que um dos estados-membros não entenda que determinado trabalhador de plataforma é empregado, ainda assim, as disposições da gestão algorítmica que vão tratar de fiscalização e transparência das plataformas têm que ser aplicadas também a esses trabalhadores. Essa é, de fato, a legislação mais forte no sentido de regulamentação das plataformas que a gente tem até aqui.

Uma das versões anteriores dessa diretiva da União Europeia apontava critérios que deveriam ser analisados para se estabelecer se existe ou não vínculo empregatício nas relações de trabalho. Isso se mantém?

Isso passou um pouco pelo processo de negociação. O texto da Comissão Europeia estabeleceu cinco critérios, o que foi muito inovador e foi uma recomendação das centrais sindicais e dos próprios pesquisadores. Os cinco critérios [verificam] se a plataforma controla o nível de remuneração, se controla o trabalho que está sendo feito, se monitora esse trabalho, se avalia por meios eletrônicos, se restringe a liberdade de horário do trabalhador de horário, [se pode] substituí-lo numa tarefa a ser executada, se restringe a liberdade dele de aceitar ou não tarefas, e se impede os trabalhadores de terem uma carteira de clientes própria. E tudo isso vai ordenar o acionamento da presunção do vínculo. Se dois desses critérios fossem verificados, a presunção do vínculo estaria presente. Então, a autoridade responsável pela fiscalização do trabalho em cada país estaria autorizada a multar as plataformas e fazer com que elas recorressem à justiça para mostrar que esses trabalhadores são autônomos. O que aconteceu? Tinha uma preocupação de pesquisadores, por exemplo, com essa permissividade dos cinco critérios, dizendo: “olha, você está permitindo que  a plataforma não cumpra um desses critérios e, ainda assim, [a relação] vai ser classificada como trabalho autônomo e isso pode enfraquecer inclusive as legislações nacionais”. Porque, em alguma legislação nacional a subordinação do controle do trabalho já é um requisito suficiente para a verificação do vínculo, e com a proposta da Comissão Europeia você pode acabar enfraquecendo isso. Então, o Parlamento Europeu jogou esses critérios para uma outra seção do texto [mudando de modo a não dar] essa permissividade às plataformas de incorrerem em nenhum desses critérios. Então fortaleceu no sentido da presunção do vínculo muito mais esse processo. No Conselho da União Europeia, a coisa foi por um outro caminho, eles tentaram estender esses critérios de cinco para sete e permitir que as plataformas incorressem em três. Principalmente os estados que eram favoráveis a uma regulamentação mais forte, como Espanha e Holanda rejeitaram essa proposta. Passaram 2022 e 2023 inteiros e muita gente já achava que a diretiva da União Europeia não ia ser aprovada porque as eleições para o Parlamento Europeu são agora, no meio do ano. Mas sob a presidência da Bélgica, eles chegaram a um determinado acordo, que foi o seguinte: não usar mais critério nenhum para presunção de vínculo de emprego. Cada Estado-membro vai ter que necessariamente criar a presunção do vínculo de emprego para as plataformas de cada país. Como vai ser determinado o acionamento ou não desse vínculo de emprego? Depende da legislação trabalhista de cada país. Então, eles vão ser obrigados, como na Espanha, a criar a presunção do vínculo, mas o que vai determinar essa presunção do vínculo é o que já está disposto na legislação trabalhista deles.

Mas as legislações trabalhistas dos Estados nacionais não necessariamente dão conta dessa realidade completamente nova, que é das plataformas...

A proposta da diretiva europeia tem um capítulo todo sobre a gestão algorítmica, que permite não só a transparência, mas a avaliação, a consulta dos trabalhadores e efetivamente uma fiscalização das plataformas

Na verdade, os cinco critérios são para verificação do controle ou do direcionamento do trabalho a ser executado por parte das plataformas. Por todo esse imbróglio de negociação, eles retiraram isso e falaram: “olha, a legislação de cada país que vai decidir se tem controle ou se tem subordinação, mas vocês precisam criar uma presunção pro vínculo de emprego especialmente para as plataformas”. Agora a gente vai ver efetivamente como isso vai funcionar no âmbito da legislação de cada país. Esse ponto vai novamente ser contencioso, mas eu penso que já é um avanço significativo, porque vai forçar as autoridades nacionais a fazerem essa verificação e vai fortalecer também os tribunais nesse sentido. O segundo ponto decisivo é a questão da regulamentação da gestão algorítmica, que é bastante significativa no sentido de dar uma transparência efetiva para as plataformas – porque o governo aqui está dizendo que o projeto [PLP 12/24] abriu a caixa preta das plataformas, mas isso não é verdade, é muito fraca a disposição do PL brasileiro. Mas a proposta da diretiva europeia tem um capítulo todo sobre a gestão algorítmica, que permite não só a transparência, mas a avaliação, a consulta dos trabalhadores e efetivamente uma fiscalização das plataformas, além da restrição do tipo de dados que elas podem utilizar nos seus processamentos algorítmicos.

E nesse caso é impositivo a todos os Estados-membros?

É impositivo a todos os Estados-membros. Inclusive, boa parte dessas disposições se aplicam para trabalhadores onde o vínculo não for reconhecido. Então, por exemplo, no caso espanhol, as empresas não estão cumprindo a presunção de vínculo, não estão classificando seus entregadores como empregados, ainda assim a disposição da gestão algorítmica vai se aplicar a elas. A disposição fala que os trabalhadores têm que ser informados, por exemplo, sobre os algoritmos que vão construir os perfis deles, porque as plataformas têm essa capacidade de assimilar tudo quanto é tipo de dado que você está gerando no seu celular e processá-lo de acordo com seus interesses. São dados como que tipo de corrida eu estou acostumado a aceitar, qual o preço da corrida que estou acostumado a aceitar... E as plataformas usam isso a favor delas sem que o próprio trabalhador tenha clareza sobre isso. [Pela diretiva da União Europeia], essa construção dos perfis automatizados tem que ser informada aos trabalhadores como são feitas, as decisões automatizadas das plataformas têm que ser informadas. Há decisões bastante significativas como, por exemplo, a de que bloqueio, suspensão dos trabalhadores, cancelamento das contas não podem ser feitos de maneira automatizada, têm de ser feitos por um ser humano. Há toda uma restrição de tipos de dados que as plataformas podem captar dos trabalhadores, tem uma lista de tipos de informações que as plataformas não podem processar. E elas só podem processar e captar dados dos trabalhadores durante o momento em que ele está efetivamente trabalhando. Os trabalhadores também vão ter de ser consultados sobre a introdução de alterações nos sistemas algorítmicos. Inclusive, tem uma disposição na diretiva da União Europeia dizendo o seguinte: os representantes dos trabalhadores têm que ser informados dessas introduções de alterações nos algoritmos e, pela complexidade da análise, no caso de empresas de plataformas com mais de 250 trabalhadores, os representantes têm direito a um especialista que eles mesmos escolham para analisar essas mudanças algorítmicas. E esse especialista vai ser pago pelas próprias plataformas, mas são os representantes que vão escolher. Os sistemas automatizados das plataformas vão ser avaliados regularmente e as plataformas vão ter trabalhadores específicos para fazer essa avaliação, junto aos representantes dos trabalhadores, que têm que estar protegidos de sanções por parte das plataformas – por exemplo, não podem ser demitidos, não podem ter seus salários suspensos. Uma outra disposição interessante é que as plataformas vão ter que disponibilizar esses dados com relação à gestão algorítmica também para os Estados. E há uma disposição também dizendo que as plataformas têm que disponibilizar todos os elementos de provas dos algoritmos e da gestão algorítmica em casos judiciais.

Existem exemplos de regulamentação internacional que você também considere paradigmáticos, mas no sentido negativo?

A instância superior do Tribunal húngaro decidiu pelo não reconhecimento do vínculo dos entregadores. Mas o paradigmático efetivamente no sentido negativo é a resolução da Califórnia, a Proposta 22. Ali as plataformas mostram todo o processo de mistificação que, inexplicavelmente, o governo brasileiro comprou de maneira piorada. A proposta de remuneração do PL do governo segue o modelo da Califórnia mas consegue piorar o modelo californiano. Na Califórnia,  eles dizem que vão pagar 120% acima do salário-mínimo. Só que esse é um valor calculado a partir do que eles chamam de tempo engajado, ou tempo de corrida ou tempo de entrega.

O Supremo Tribunal Federal está na contramão dos tribunais no âmbito da União Europeia e da Califórnia

Então, na verdade, é uma redução do salário-mínimo que se anuncia como sendo mais que o salário-mínimo. Porque o salário-mínimo por tempo engajado, por corrida ou por entrega efetivamente é uma redução do salário-mínimo por hora. O outro lado da legislação da Califórnia é o reembolso pelos custos da atividade em que o motorista ou entregador incorre. Em 2021 eles falaram: “a gente vai pagar US$ 0,30 por milha rodada”, que era um valor substantivamente menor do que se eles fossem classificados como empregados. Eles iriam pagar por milha por hora e o reajuste desse valor seria feito de acordo com um índice de preços ao consumidor. Aqui no Brasil a remuneração segue mais ou menos o mesmo formato, fala que vai pagar R$ 8,03 – que é em torno de 120%, 125% a mais do que o salário-mínimo por hora, mas o governo decidiu  com as plataformas e, ao que parece,  com os representantes dos trabalhadores também, que vai remunerar os custos dos trabalhadores não por quilômetro rodado, mas por hora também. Isso irritou bastante a base. Mesmo os custos serão remunerados por hora - e com essa hora engajada novamente. O reajuste desse reembolso dos trabalhadores vai ser calculado pelo reajuste do salário-mínimo. Mas a gasolina pode subir 12%, 13%, 14% e o salário-mínimo pode ter um reajuste de 6%, por exemplo. Então, fica uma defasagem grande. Nesse sentido, vai ser uma versão piorada num ponto fundamental para a categoria, que é a remuneração. E o Supremo Tribunal [Federal] está na contramão dos tribunais no âmbito da União Europeia e da Califórnia. A mesa de diálogo aqui entrou de uma forma aparentemente parecida com a da Espanha, mas entregou a legislação das plataformas, anunciado como um exemplo para o mundo e com uma potencial repercussão para as demais categorias. Sobre o ponto da gestão algorítmica, o governo tinha desde 2021 o exemplo da União Europeia. Ignorou. [O texto do PLP 12/24] tem um ponto sobre transparência mas não menciona os algoritmos, não menciona as decisões automatizadas e não estabelece um processo efetivo de fiscalização para além da transparência de que isso vai ser cumprido. É um desastre completo.

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Como parte da sua pesquisa, Marco Gonsales fez uma experiência etnográfica trabalhando como entregador de aplicativo na cidade de São Paulo. Além disso, fez entrevistas, sistematizou dados e acompanha todos os movimentos de luta dos sindicatos e associações que representam esse contingente de quase 1,5 milhões de trabalhadores plataformizados que existem no Brasil, segundo levantamento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) referente a 2022. Nesta entrevista, ele explica como funcionam as relações de trabalho com as plataformas, analisa as escolhas e o processo de construção de consciência desses trabalhadores e debate criticamente o Projeto de Lei Complementar 12/24, apresentado pelo governo federal para regulamentar a atividade dos motoristas de aplicativo de passageiros.
No judiciário, num julgamento que terá repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal em breve vai decidir se o trabalho por plataformas como Uber e Ifood configura ou não vínculo empregatício. No legislativo, um Projeto de Lei Complementar (PLP 12/24), apresentado pelo governo federal com o objetivo de regulamentar a atividades dos trabalhadores de aplicativos de passageiros tem recebido crítica de juristas, pesquisadores e muitas entidades de trabalhadores. Mas, em meio à polêmica que esses dois debates têm gerado, o que está em jogo pode ser algo mais profundo, estrutural e grave: o fim dos direitos do trabalho. Essa é a avaliação que o procurador do Ministério Público do Trabalho e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ Rodrigo Carelli faz nesta entrevista, realizada durante a apuração da reportagem de capa da Revista Poli 95.
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