Acordar cedo para o trabalho seis dias por semana e cumprir uma jornada de oito horas de segunda a sexta-feira e mais meio período no sábado. Isso quando não é preciso chegar mais cedo para cobrir algum colega que ficou doente, teve um acidente doméstico ou precisou estar com o filho em casa. Essa jornada aumenta com a necessidade de passar mais de duas horas no transporte público lotado e no trânsito para ir e voltar do trabalho. Nessa rotina, falta tempo para cuidar da casa, ficar com os filhos, ter momentos de lazer com a família e amigos e mesmo avançar nos estudos, cursar uma faculdade. Foi em reação a essa realidade vivida por grande parte da população brasileira que nasceu o Movimento VAT, Vida Além do Trabalho, que impulsionou uma das maiores mobilizações sociais dos últimos tempos em torno de uma pauta trabalhista: o fim da escala 6X1. “Existe diálogo com sindicatos e centrais sindicais sim, mas o VAT não nasceu dentro dessas estruturas. Ele nasceu da base, do chão da farmácia, do caixa do supermercado, do balcão da loja. É um movimento construído por e para trabalhadores que decidiram dizer: ‘nossa vida vale mais do que só trabalhar’”, explica Rick Azevedo, criador do Movimento VAT e vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).
"O povo entendeu que descanso não é luxo, é direito. E isso assusta quem se acostumou a ver o trabalhador só como mão de obra barata"
Rick Azevedo
Nas redes sociais não faltam desabafos sobre essa rotina extenuante – e boa parte dessas manifestações foi impulsionada por um vídeo gravado por Rick Azevedo em setembro de 2023, que rapidamente viralizou. “Quando é que nós, da classe trabalhadora, vamos fazer uma revolução nesse país relacionada à escala 6x1? Gente, é uma escravidão moderna. Moderna, não: ultrapassada”, diz o ex-balconista de farmácia e hoje vereador pela cidade do Rio de Janeiro no vídeo. Mas a fama não se limitou a uma postagem e, em poucos meses, o desabafo havia saído da rede para o Congresso e para as ruas. Azevedo não esperava por tamanha repercussão, mas entende o apelo da reivindicação. “Eu acho que quando a pauta toca no que é mais humano, ela rompe bolhas. A jornada de trabalho afeta todo mundo. Quem é de esquerda, de direita, quem nem sabe o que é isso — todo mundo sente na pele. Não é à toa que até quem não costuma se envolver com política está assinando [o abaixo assinado], está debatendo [o fim da escala 6x1]. O povo entendeu que descanso não é luxo, é direito. E isso assusta quem se acostumou a ver o trabalhador só como mão de obra barata”, analisa.
O professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Ricardo Antunes concorda. “A jornada 6 X 1 é expressão de um momento em que a nossa tecnologia tinha um patamar inferior, só que a tecnologia ultra-avançada de hoje atende aos imperativos do grande processo de acumulação: não visa ao bem-estar da humanidade e muito menos da classe trabalhadora”, diz. E é por isso que ele defende que é preciso aproveitar a mobilização em torno dessa luta para reivindicar uma redução maior da jornada e da escala de trabalho: “Todos os estudos de tecnologia mostram que a produtividade na indústria automobilística, no setor bancário e no comércio aumentou poderosamente com o incremento tecnológico. Ao lutar por uma escala 5x2, é muito provável que se mantenha a 6x1”, alerta, argumentando que a demanda deve ser, no mínimo, de uma escala 4X3.
Esse é também o salto que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 8/2025, apresentada pela deputada federal Erika Hilton (PSOL-RJ) como decorrência da popularidade que a pauta ganhou, pretende dar. O texto, que quando esta edição foi fechada aguardava análise da Comissão de Constituição Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara para ser colocada ou não na pauta, prevê a adoção de uma escala 4X3, ou seja, uma jornada de trabalho de quatro dias por semana, com direito a três de descanso e carga horária de oito horas diárias, estabelecendo que o total semanal não poderá ultrapassar 36 horas – 32 horas da escala regular acrescidas de um máximo de quatro horas extras semanais. Em paralelo, tramita na outra Casa legislativa uma PEC mais antiga sobre o mesmo tema, de autoria do senador Paulo Paim (148/2015). A proposta foi desarquivada em março de 2023 e desde abril deste ano, está sendo objeto de uma série de audiências públicas. Apesar de partir de uma preocupação comum, há algumas diferenças entre as propostas: enquanto o texto proposto por Hilton fala em carga horária de 36 horas semanais em uma escala de quatro dias trabalhados e três de descanso, a PEC 148, de Paim, prevê uma mudança imediata para 40 horas e outra gradual para 36, sem que o número de dias trabalhados esteja estipulado. “O importante é garantir 36 horas. E nós temos que ir por partes. Tanto que ninguém acha que nós vamos chegar de um momento para outro nas 36 horas, mas acreditamos que passamos de 44 para 40 horas semanais”, explica o senador.
A deputada Erika Hilton considera possível prever mecanismos de transição, em especial para as pequenas empresas conseguirem se adequar. No entanto, ela não abre mão da redução da escala como parte da diminuição da jornada. “Com a pressão da PEC sobre as grandes empresas, cujos custos de pessoal representam porcentagens pequenas de seu faturamento e custos totais, o que teremos é uma expansão do mercado de trabalho formal, e, por consequência, dos consumidores dessas pequenas empresas”, afirma. Para o senador Paulo Paim, o importante é garantir a redução da carga horária. “O importante é garantir 36 horas. E nós temos que ir por partes. Tanto que ninguém acha que nós vamos chegar de um momento para outro nas 36 horas, mas acreditamos que passamos de 44 para 40 horas semanais”, diz. Já o vereador Rick Azevedo não vê possibilidade de flexibilização da proposta já apresentada pela PEC 8/2025. “A gente não quer uma redução simbólica e nem rebaixamos a pauta. A [escala] 5x2 ainda é muito pesada, especialmente para quem trabalha em pé, com atendimento direto, sem ar-condicionado, sem pausas. O movimento vai seguir firme pela 4x3”, conclui.
Em comum, os proponentes das duas PECs sobre o tema que tramitavam até o fechamento desta revista tinham a previsão de que, além de melhorar as condições de vida dos trabalhadores, a redução da jornada deve gerar um aumento de três a seis milhões de postos de trabalho, já que as empresas precisariam abrir vagas para não interromperem seus horários de funcionamento, o que também mobilizaria positivamente a economia como um todo.
Uma estimativa realizada por pesquisadores do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) calcula que 78 milhões de brasileiros trabalham em jornadas superiores a 36 horas semanais. Para a coordenadora deste estudo, a professora Marilane Teixeira, o alcance da proposta vai depender da mobilização fora das redes, onde já foi muito bem. “A adesão ao fim da escala 6x1 precisa ir para as ruas. Porque essa é uma manifestação concreta de que, de fato, a gente pode incidir nesse debate nacionalmente”, diz.
Quem defende a escala 6X1?
Entre aqueles que têm se posicionado publicamente de forma contrária à redução da jornada estão as Confederações Nacionais do Comércio (CNC) e da Indústria (CNI) e algumas confederações estaduais da indústria e alguns parlamentares. O principal argumento é que os empresários brasileiros não teriam como arcar com os custos dessa redução de jornada – tendo que contratar mais, por exemplo – e que, consequentemente, essa mudança geraria impactos negativos na economia. A Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (Fiemg) divulgou em abril de 2025 um estudo segundo o qual, na melhor das hipóteses, a mudança na jornada e na escala levaria a uma queda de 16% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, à redução de 16 milhões de postos de trabalho e a uma perda de R$ 428 bilhões de massa salarial na economia como um todo. Presente na discussão da Constituição de 1988, quando estava em pauta a redução da carga horária de 48 para 40 horas semanais, o hoje senador Paulo Paim (PT-RS) e autor de diversas proposições em favor da redução de jornada, diz que os argumentos em relação à queda de produtividade e incapacidade das empresas aumentarem os custos com folhas de pagamento se repetem. “Nada disso aconteceu. Inclusive, no primeiro governo Lula chegamos a uma taxa de desemprego de 5%, coisa que nunca tivemos antes”, recorda.
Apesar da grande adesão que essa luta ganhou nas redes e nas ruas, não faltou também a alegação – feita, por exemplo, pelo deputado Gilson Marques (Novo-SC) numa entrevista à TV Câmara – de que os funcionários têm o ‘direito’ de ‘querer’ trabalhar mais horas. Antes mesmo da publicação deste estudo já havia na Câmara uma articulação encabeçada pelo vice-líder da oposição, deputado Maurício Marcon (Podemos-RS), para apresentar uma proposta contrária à redução da escala 6x1, que ficou conhecida como ‘PEC da Alforria’. O texto, que até o fechamento desta edição não tinha sido protocolado na Câmara, prevê a manutenção das 44 horas semanais e possibilita acordos entre trabalhadores e empregadores sobre a forma como a jornada será cumprida. Procurado pela reportagem, o deputado não respondeu ao pedido de entrevista. Em suas redes sociais, outros parlamentares também têm se manifestado de forma contrária à redução da jornada, entre eles o deputado mais votada na última eleição, Nikolas Ferreira (PL-MG). Como mostrou reportagem da Folha de S. Paulo de 13 de novembro de 2024, no entanto, muitos dos seus eleitores demonstraram insatisfação com esse posicionamento.
Jornadas de trabalho pelo mundo e custo de contratação
Na linha de frente contra o fim da escala 6X1, o estudo produzido pela Fiemg projeta um futuro catastrófico, de redução do PIB e de faturamento das indústrias em R$ 2,9 trilhões, caso a PEC proposta pela deputada Erika Hilton seja aprovada. O documento, no entanto, considera que essas mudanças gerarão um aumento de no máximo 1% na produtividade – um pessimismo que contraria vários outros estudos e experiências de redução de jornada de trabalho pelo mundo afora. Iniciativas da empresa de consultoria 4 Day Week Global, por exemplo, têm mostrado que a adoção da jornada 4x3 não só aumenta a produtividade e o faturamento das empresas, como melhora a saúde dos trabalhadores. Em abril de 2025, a organização divulgou o experimento realizado com 21 empresas, em que a média trabalhada era de 42 horas e que passaram a adotar 36 horas, distribuídas em quatro dias. O resultado foi a manutenção da quantidade de trabalho e uma produtividade 70% maior. Segundo dados divulgados pela consultoria Conference Board em 2024, o Brasil ocupa a 78ª posição num ranking de produtividade que inclui 131 nações, atrás de países como Uruguai (48º), Argentina (56º) e Chile (59ª). Enquanto o trabalhador brasileiro produz 21 dólares por hora e trabalha uma média de 39 horas por semana, o trabalhador canadense produz 68 dólares no mesmo período e trabalha em média 32 horas.
Ao observar os índices de produtividade brasileiros, Ricardo Antunes acrescenta outro elemento à análise. Ele ressalta que, diferente de nações como a China, que também tiveram uma industrialização tardia como o Brasil, o país não investiu em tecnologia, nem na educação dos trabalhadores. De acordo com dados da própria CNI, no documento ‘Competitividade Brasil 2023-2024’, o país ocupa a 15ª posição em um ranking de 18 no quesito desenvolvimento produtivo, inovação e tecnologia. E o último em relação à educação. De acordo com o professor da Unicamp, o caso da China é particularmente diferente porque, além do investimento massivo na indústria, também houve fomento à educação na segunda metade do século 20. “Nas primeiras três, quatro décadas da Revolução Chinesa, houve um processo massivo de escolarização e foi possível formar a classe trabalhadora chinesa e alcançar o alto padrão tecnológico existente no país asiático”, compara. Lembrando, portanto, que o Brasil investe pouco na qualificação dos trabalhadores, ele ressalta que esse é um fator que deve ser considerado quando se fala em baixa produtividade “sob o ponto de vista da rentabilidade do capital”.
Outro argumento recorrente dos empresários é de que o custo do trabalhador brasileiro é muito elevado, o que impediria novas contratações para compensar a redução da escala. Mas, de acordo com o relatório de 2022 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apesar de trabalharem mais horas, os brasileiros têm um salário mais baixo do que os dos países mais avançados. Nesse levantamento, que inclui 31 países, o Brasil está em penúltimo lugar, com um custo de 5,2 dólares a hora, à frente apenas do México, onde a hora paga é 3,3 dólares. No topo desta tabela está Luxemburgo com 27,7 dólares a hora, seguido de Holanda (26,2) e Austrália com (25). Por outro lado, o Brasil tem uma média anual de 1,9 mil horas trabalhadas, enquanto em Luxemburgo são 1,3 mil. Isso significa cerca de 600 horas ou 75 dias a menos de trabalho em uma jornada de oito horas diárias. Ricardo Antunes explica que essa diferença de carga horária tem justificativas históricas. Em primeiro lugar, boa parte dos países de primeiro mundo tiveram seu desenvolvimento industrial ainda no século 19 e a evolução dessa industrialização foi acompanhada por uma legislação trabalhista. Isso leva a uma maior preservação de direitos nos países do norte global, embora ele lembre que isso não vale para todos. “Os imigrantes ilegais cumprem as jornadas mais exaustivas nesses países”, ressalta.
"A luta pela redução da jornada de trabalho nos países do sul global é vital. Porque no caso brasileiro e de tantos outros países, o capitalismo foi constituído com base na escravidão. E essa chaga você não elimina facilmente”
Ricardo Antunes
Mas essa desigualdade no cumprimento da carga horária fica ainda mais evidente quando comparamos diferentes partes do mundo. Um artigo intitulado ‘Unequal exchange of labour in the world economy’ (‘Troca desigual de trabalho na economia mundial’, em tradução livre), publicado na revista Nature em 2024, concluiu que os trabalhadores do sul global, que são em maior número e trabalham mais horas, são responsáveis pela produção de 90% dos bens. No entanto, seu salário representa cerca de 20% do valor destinado aos trabalhadores do norte em cargos equivalentes. Antunes explica que essa desigualdade reflete uma divisão internacional do trabalho, que reserva lugares diferentes para os países do centro e da periferia do capitalismo. Historicamente, diz, os trabalhadores nos países mais ricos conseguiram aprovar legislações com maior proteção e maior valor salarial, mas esse movimento também levou as empresas a transferirem suas fábricas para locais em que o custo de produção fosse mais barato, como a Índia, a China, Brasil e o México. “Por que as empresas, como as norte-americanas, por exemplo, preferem se instalar no México? Porque é mais barato e há menos barreiras legais”, ilustra Antunes e completa “Isso torna a luta pela redução da jornada de trabalho nos países do sul global vital. Porque no caso brasileiro e de tantos outros países, o capitalismo foi constituído com base na escravidão. E essa chaga você não elimina facilmente”.
Excesso de horas trabalhadas
A partir dos dados do terceiro trimestre de 2024 publicados pela Pesquisa Nacional de Amostra em Domicílio Contínua (PNADc), pesquisadores do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp calcularam que 75% da população ocupada cumpre uma carga horária maior do que 36 horas semanais – limite previsto pela PEC 8/2025 –, embora neste contingente de 103 milhões de pessoas, apenas 37% tenham vínculo formal e, portanto, seriam diretamente beneficiadas por uma redução de jornada. A nota técnica produzida pelas pesquisadoras explica que não há dados que discriminem a escala cumprida, apenas a carga horária, por isso, a relação com a jornada é feita a partir de exemplos de algumas categorias de trabalhadores. Entre as categorias que cumprem jornadas superiores a 44 horas semanais, de acordo com esses dados, que não fazem distinção entre formais e informais, estão aqueles que trabalham com transporte, armazenagem e correio, seguidos dos que estão nos serviços de alojamento, alimentação, comércio e serviços de reparação de carros e motos. Os homens negros têm um maior percentual de sobrecarga (36%), seguido pelos homens brancos (29%). As mulheres negras e brancas estão em índices próximos: 17% e 15%, respectivamente.
Um dos indícios da insatisfação desses trabalhadores com essas longas jornadas são, segundo as pesquisadoras do Cesit, os números sobre pedidos de demissão. De acordo com dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), que registra apenas os trabalhadores formais, a média nacional de demissões ‘voluntárias’ em 2024 foi de 36%. Mas algumas categorias que costumam estar submetidas à escala 6X1 estão acima dessa média: 38,5% para vendedores, 47,2% para operadores de caixa, 42,9% para atendentes de lojas e mercados, 46,2% para repositores de mercadorias (46,2%) e 55,7% para operadores de telemarketing. De acordo com a nota técnica, além de expressar uma grande insatisfação entre os trabalhadores da escala 6x1, esse movimento é realizado especialmente pelos jovens e motivado por um mercado aquecido.
Responsável pela nota técnica do Cesit, a professora da Unicamp Marilane Teixeira atribui ao estresse e à exaustão mental pelo menos parte dos mais de oito milhões de pedidos de demissão registrados em 2024. “É claro que as pessoas estão insatisfeitas com essa condição, e isso alimenta o sistema de rotatividade”, diz. E ela acrescenta que o prejuízo não é apenas para os trabalhadores, já que a alta rotatividade também gera um custo a mais para as empresas com contratação e treinamento – um diagnóstico reconhecido pela Confederação Nacional das Indústrias em documento publicado em 2023. “A rotatividade da mão de obra tem impactos negativos sobre os níveis de produtividade, pois desestimula os investimentos em capacitação e reduz o comprometimento do trabalhador com o desempenho da empresa a longo prazo”.
O ex-comerciário e hoje vereador pela cidade do Rio de Janeiro que criou o Movimento Vida Além do Trabalho concorda. “O setor do comércio é um dos que mais concentra jornadas exaustivas, alta rotatividade e adoecimento relacionado ao trabalho. A mudança da escala nesses casos não é só possível, é necessária. Não dá para normalizar um modelo que se sustenta com base em sobrecarga e desgaste físico e mental de quem está na linha de frente”, avalia Rick Azevedo, que acrescenta: “A adoção da escala 4x3 pode trazer impactos positivos, inclusive no funcionamento desses setores, com trabalhadores mais saudáveis, menos afastamentos e maior estabilidade nas equipes. O que precisa mudar é a lógica de que o funcionamento ininterrupto [dos serviços] justifica a exploração contínua”.
Dados do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho (SmartLab) mostram que os trabalhadores do comércio estão entre as categorias com o maior número de afastamentos por saúde mental pelo INSS. Em 2024, foram 36,3 mil, pouco acima dos 29,3 mil trabalhadores afastados da administração pública em geral e dos trabalhadores em atividades e atendimento em hospital: 23,1 mil. “Produtividade não é só tempo de trabalho, é também saúde, concentração e qualidade de vida. Um trabalhador descansado rende mais, falta menos e comete menos erros”, argumenta Azevedo, que defende a redução da escala como forma de aumentar o tempo de descanso dos trabalhadores para que, entre outras coisas, eles possam cuidar da sua saúde. “O burnout [estresse crônico relacionado ao trabalho] está se tornando uma realidade constante, não mais restrita às áreas consideradas de alto stress, como o magistério, a saúde, o setor bancário e etc, está se tornando generalizado”, completa Erika Hilton.
Histórico de redução da carga horária
A redução das horas trabalhadas sem redução de salário sempre esteve no horizonte das reivindicações dos trabalhadores organizados no Brasil, ainda em baixa intensidade nos últimos anos. A memória mais recente de luta ampla por essa pauta ocorreu ainda no primeiro mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva, que tinha entre as propostas a valorização do salário-mínimo, a redução da jornada e relações mais democráticas no trabalho. “O que avançou foi o salário-mínimo, o sistema democrático de trabalho não andou e a discussão da redução da jornada de trabalho também não”, recorda a também professora da Unicamp, Marilane Teixeira.
Na visão da pesquisadora, a forte pressão dos empresários impediu que a pauta avançasse. No entanto, apesar de não estar previsto em lei, ela afirma que a jornada de 40 horas já foi adotada por muitos segmentos industriais. “As categorias menos estruturadas foram ficando para trás com jornadas mais extensas, que é uma jornada de 44 horas. O tema está lá na agenda, mas não ganha centralidade”, diz.
Ela cita como exemplo o setor administrativo de indústrias farmacêuticas, em que a jornada é de 40 horas, enquanto na produção foi reduzida para 42. E acrescenta que essa mudança não se restringe a grandes indústrias, como ela pode constatar em entrevistas realizadas com dirigentes sindicais para realizar a nota técnica. “Empresas pequenas, com menos de 100 trabalhadores, registraram acordos de redução de jornada para 40 horas semanais em que, por exemplo, a tarde da sexta-feira é livre”, diz. Outra questão trazida por Teixeira é o fato de no Brasil hoje haver menos empregos no setor da indústria e um baixo índice de sindicalização, em torno de 8%, o que leva, segundo ela, a um distanciamento das grandes centrais sindicais em relação às categorias que reúnem um grande número de trabalhadores, como aqueles submetidos à escala 6X1. “A CUT, por exemplo, se estruturou em torno de metalúrgicos, bancários, químicos, petroleiros. Essas são categorias que, em uma boa parte, têm jornada de 33, 36, 40 horas e estão, de certa forma, numa outra condição”, avalia. Procurada pela reportagem, a CUT preferiu não conceder entrevista, mas, em meio ao debate sobre o fim da escala 6X1, a entidade emitiu uma nota em que avalia que a indústria já não gera empregos suficientes e que a redução de jornada contribuirá para o aumento dos postos de trabalho no país. “É crucial garantir trabalho a todas as pessoas, que estes trabalhos sejam reconhecidos como relevantes socialmente para toda comunidade e não fiquem restritos ao circuito de acumulação capitalista, distribuindo empregos para todas as pessoas, ampliando o tempo livre para que a classe trabalhadora possa ter uma vida digna a com qualidade”, diz a nota.
Ricardo Antunes lembra que a luta pela redução da carga horária semanal é antiga, mas agora, a ela se soma a busca por menos dias trabalhados para se ter tempo suficiente para atividades de lazer, educação e trabalhos domésticos. E o professor faz ainda uma outra distinção, que deve funcionar como um alerta. “Há um movimento feito pelo próprio capital, setores da produção, de [instituir] o home office, por exemplo, sem reduzir a jornada, mas transferindo o trabalho por dois ou três dias da semana para a casa dos trabalhadores e das trabalhadoras. Aí eles fazem uma jornada que só eles sabem como é. Às vezes é ultracontrolada e às vezes não é. Mas é preciso ter produção”, descreve. Do outro lado, completa ele, está “a luta da classe trabalhadora” que, na direção contrária, deve “evitar a questão crucial do tempo ilimitado de trabalho”.
Impacto para trabalhadores informais e plataformizados
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em março de 2025, no país os trabalhadores informais somam 38% da força de trabalho, o que significa 39 milhões de brasileiros. Em 2022 o Instituto mensurou, pela primeira vez, o número de trabalhadores de plataformas e identificou 2,2 mil pessoas. Deste total, os serviços de transporte, armazenagem e correio reuniram o maior contingente (67,3%), seguido do setor de alojamento e alimentação (16,7%).
A explicação para a disseminação do trabalho em plataforma, avalia o professor da Unicamp Ricardo Antunes, está em um cenário em que a tecnologia tornou desnecessária uma grande quantidade de trabalhadores nas fábricas e outras tantas profissões deixaram de existir. Diante do aumento do desemprego, o trabalho em plataformas se prolifera não apenas no Brasil, mas também em países de primeiro mundo. Nesses países, o fenômeno ficou conhecido como ‘gig economy’ ou economia de bicos. “Isso ocorre porque nunca o capitalismo foi tão destrutivo”, diz Antunes. Ele explica que desde a década de 1970, o grande desenvolvimento tecnológico levou a um desemprego intenso nas atividades industriais, o que favorece a economia de bicos. “Essa precarização do trabalho é mundial”, enfatiza, mas pondera que a situação é muito diferente para os trabalhadores do sul global, onde a informalidade e o desemprego alcançam índices muito maiores e muitas vezes são a constante na vida dos trabalhadores e não a exceção.
Para o professor, essas condições, combinadas à alta tecnologia e ao índice de desemprego elevado, são as características que possibilitam o trabalho plataformizado, em que grandes empresas de tecnologia se colocam como prestadoras de serviços para empreendedores autônomos e conseguem ficar à margem da legislação. O resultado disso, explica Antunes, com base em suas pesquisas, são jornadas extenuantes, em que não sobra tempo sequer para ir ao banheiro, e com a necessidade de cumprir as inúmeras regras definidas pela plataforma. “Se o trabalhador não atende os pedidos da empresa, ele não é mais chamado ou recebe corridas piores. Isso cria jornadas ilimitadas”, diz (Leia mais sobre os trabalhadores plataformizados na edição 95 da Poli).
Um estudo publicado por pesquisadores da Universidade Federal da Bahia (UFBA) na edição de março de 2025 do periódico Cadernos de Saúde Pública detalhou essas jornadas exaustivas. O trabalho reuniu entrevistas com 563 entregadores e identificou que 70% trabalham seis ou sete dias por semana. A jornada diária é de dez horas ou mais para metade desses trabalhadores e, entre esses, 37% trabalham mais de 12 horas por dia.
Embora destaque a situação dos trabalhadores de plataforma, Antunes afirma que as características de longas jornadas e regimes de trabalho à margem da legislação podem ser extrapolados para outros trabalhadores em situação de informalidade. “Podemos levar para o setor de serviços, como de hotelaria, shoppings e restaurantes. No setor de serviços a presença sindical, muito frequentemente, é uma presença de um sindicato patronal e aí essa jornada é excedida”, diz.
Diante desse cenário, a expectativa dos entrevistados desta reportagem é de que a aprovação da redução da jornada, tanto em relação à carga horária quanto aos dias trabalhados, tenha um efeito cascata que beneficie também os trabalhadores informais e os plataformizados. No primeiro caso, a comparação é feita com o salário-mínimo, que costuma servir de guia para a remuneração mesmo para os trabalhadores informais. É baseado nessa experiência que eles esperam que a redução da carga horária influencie também as relações de trabalho sem regulação da legislação. “A discussão do salário-mínimo tem um impacto direto sobre todos os trabalhadores, esse efeito que a gente chama de farol. O mesmo se aplica em relação à jornada de trabalho”, diz a professora da Unicamp Marilane Teixeira. Outra projeção é a de que com maior tempo livre e mais gente empregada, haja uma maior movimentação de comércio e serviços, o que abriria as portas para novas vagas serem criadas no mercado formal.