A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que mapeou teletrabalho afirma que mais de 77% dos trabalhadores de aplicativos eram trabalhadores por conta própria. O que isso significa na prática?
Na verdade, eles são trabalhadores informais que se consideram autônomos em grande maioria, por mais que a gente saiba que não são autônomos, porque pouca autonomia eles têm. O preço da corrida, o valor que eles vão receber, o tanto que as empresas vão se apropriar, para quem eles vão trabalhar: há todo um sistema de avaliação unilateral das empresas, que é a gestão algorítmica desse trabalho, que poucos trabalhadores e trabalhadoras sabem como funciona. Na falta ainda de uma legislação, eles são considerados autônomos, mas entre aspas. Essa que é a grande briga, na verdade, porque tem toda uma propaganda das empresas de que eles têm liberdade de horário, liberdade de escolher a melhor hora, o melhor dia e o quanto trabalhar, mas a gente sabe que isso é extremamente controlado, principalmente através do sistema de avaliação que as empresas têm. Essa é uma das críticas até ao PLP 12/24. Eles falam que esses trabalhadores são autônomos porque têm total liberdade mas, na verdade, não existe total liberdade.
Eu fiz uma etnografia como entregador aqui em São Paulo. E quando você é um novato, como eu era, e não tinha o que eles chamam de ‘aplicativo trabalhado’ – que é quando você já tem um tempo e uma história no aplicativo –, você tem muito pouca chamada. Conforme eu ia trabalhando mais, tendo melhores avaliações e tal, meu aplicativo tenderia a tocar mais. Então, há toda uma métrica, um parâmetro, uma regra estabelecida por essas empresas, que também está sempre variando. Muitos falam que as empresas têm a caixa preta das regras dos algoritmos. Mas o melhor exemplo não é nem a caixa preta, porque a caixa preta é fixa, ela não muda. Os algoritmos não, eles estão sempre mudando as regras do jogo em benefício das empresas.
Que parte dessas regras é conhecida, transparente, e que parte varia?
Os entregadores e motoristas acabam sabendo apenas aquelas [regras] que interessa às empresas que eles saibam. Por exemplo, era muito comum no Brasil e em qualquer lugar do mundo, que, no caso das entregas, os trabalhadores ficarem colados nos restaurantes, e não ficarem naquele grupinho do estacionamento conversando, porque eles achavam que quem estivesse mais próximo do estabelecimento seria o que primeiro a receber a chamada. A todo tempo eles estão tentando descobrir como funciona. É muito comum, no caso do iFood e da Rappi, que você no começo tenha uma classificação muito ruim. Por exemplo, eu era entregador bronze, daí você melhora um pouco, vira prata, depois vira ouro. Quando você é um trabalhador bronze ou prata, não pode trabalhar quando quer ou no dia que quer e onde quer. Tem uma espécie de agenda em que você vai pré-agendar onde vai trabalhar amanhã, depois de amanhã, e você só tem acesso aos lugares que não têm muita demanda. Como eu era novato, abria horário na madrugada, em bairros pouco chamativos. Então, se eu quisesse trabalhar no Itaim Bibi sábado à tarde, não tinha essa opção. Eu até poderia ir lá como entregador mas, por não ter agendado previamente, não teria o tanto de pedido que alguém que agendou previamente teria.
É comum eles ficarem muito tempo sem serviço, sem demanda, sem corrida?
A tecnologia é tão fantástica para as empresas que a gente percebe que há uma individualização das relações de trabalho
Sim. A tecnologia é tão fantástica para as empresas que a gente percebe que há uma individualização das relações de trabalho. Isso acontece também com os consumidores. Por exemplo, se eu estiver ao seu lado e pedir uma comida no Mc Donalds, tem uma grande chance que se fizer o mesmo pedido no mesmo lugar onde eu estou, você pague um valor diferente pelo transporte em si, pela taxa de entrega. Isso acontece com eles também. Por isso que eles lutam tanto contra os sindicatos, porque realmente eles conseguem administrar melhor [a renda] com valores que variam de profissional para profissional. É a individualização das relações de trabalho. A depender da avaliação, da frequência com que trabalham com os aplicativos, eles vão ser mais ou menos privilegiados. E como eles pouco conhecem, e ficam sempre tentando entender as regras dessa caixa preta, isso gera uma competição entre eles.
Essas empresas contratam mais trabalhadores do que deveriam porque sabem que só vão pagar quando eles estiverem em atividade. É o trabalho intermitente remunerado por peça, o sonho de qualquer capitalista. Você imagina num shopping center todas aquelas trabalhadoras e trabalhadores de lojas só recebendo quando, de fato, atenderem o cliente. Segunda-feira de manhã, por exemplo, quando pouca gente está entrando nas lojas do shopping, seria uma maravilha não pagar essa turma. Isso gera uma competição entre eles e faz com que trabalhem mais, porque percebem que quanto mais dedicado você é ao aplicativo, mais pedidos você recebe.
O que significa ser mais dedicado? Que tipo de esforço individual que eles podem fazer nessa competição?
Estar disponível para o aplicativo mais tempo, realizar mais entregas por dia, ter boa avaliação dos clientes. Tudo isso, é claro, eles entendem que faz parte da classificação, da pontuação deles, da avaliação. O sistema não deixa claro isso, mas você percebe. Realmente, eu conseguiria trabalhar no Itaim Bibi meio-dia aos sábados se fosse entregador ouro. Então, eles vão percebendo que quanto mais dedicados são aos aplicativos, mais vão ser chamados. Para você ter uma ideia, a gente conheceu um entregador na época da pandemia que falou que continuou trabalhando doente, não parou de trabalhar. A gente perguntou: “mas, por quê? O iFood até estava pagando um mês” – a pessoa avisava que tinha Covid, o iFood fazia uma média dos últimos três meses trabalhados e dava um mês para ela pago, para poder descansar e se recuperar da Covid. Esse trabalhador falou: “Olha, eu não acreditei nisso, porque depois de um mês eu ia ter que ficar um mês sem acessar o aplicativo. Depois de um mês meu aplicativo ia estar péssimo, eu ia ficar com um tempo disponível sem pedido muito grande. Então, preferi arriscar minha vida trabalhando com Covid”. Eles não têm certeza disso, mas, na dúvida, preferem garantir o aplicativo que eles costumam chamar de ‘mais trabalhado’. E para isso as empresas, tanto as de motorista como de entregas, tanto as de transporte de pessoas como as de refeições, fazem muitas promoções. Por exemplo, o aplicativo percebe que você vai embora todo dia umas seis horas da tarde, nessa hora ele lança um desafio de dez pedidos para você entregar nas próximas dez horas que, se você conseguir, ganha o dobro do valor. Eles estão sempre tentando prolongar e intensificar a jornada desses trabalhadores.
Então, é um monitoramento individualizado e automatizado de cada trabalhador que esses algoritmos podem fazer. E é muito difícil explicar isso para os trabalhadores e trabalhadoras porque, de fato, eles estão ganhando mais do que se fossem um trabalhador CLT. Mas estão trabalhando muito mais. E eles preferem isso. Numa vida cheia de limites, dada a condição socioeconômica dessas pessoas, você poder tirar R$ 500 a mais, mesmo que trabalhe das 10h da manhã às 11h da noite. E eles entendem que isso é melhor. Acontece muito também no CLT, no trabalho registrado, de os trabalhadores quererem fazer mais hora extra, só que tem um limite. E nesse caso deles não tem limite, porque são trabalhadores informais.
Por todas essas razões que você explicou, várias pesquisas apontam que esses trabalhadores, em sua maioria ou de modo geral, não querem ter vínculo empregatício, ter sindicato, ser CLT. Essa é a sua percepção também a partir das suas pesquisas?
Sim, é essa. A gente percebeu isso entrevistando lideranças desde 2020. Há um salto de qualidade, digamos assim, das lideranças, que também tinham esse discurso de que não queriam o direito, que não queriam carteira assinada e assim por diante. Dentre os organizados, pelo menos uma parcela menor das lideranças dos dois setores hoje acendeu para a importância de terem alguns direitos, de realmente serem reconhecidos como trabalhadores, terem os seus direitos previstos pela CLT. Você teve o grupo da ANEA, que é a Aliança Nacional dos Entregadores, que se formou como uma aliança das associações, que no ano passado, antes de o governo Lula assumir, levantou a bandeira da CLT+, que era você ter a CLT mais a transparência algorítmica. A luta deles normalmente começa pela legitimidade do trabalho, os Uber contra os taxistas, por exemplo. Na Europa, os entregadores, por serem imigrantes em sua grande maioria, [lutam] contra os abusos de muitos consumidores. Mas logo depois eles começaram a lutar por uma melhor condição de trabalho. Não é tão etapista assim, é um processo de idas e vindas. E eles começaram a entender a questão do vínculo.
Olha, isso também acontece na Europa. Quando a Espanha determinou a Lei Rider, que incluía esses trabalhadores como assalariados, teve protestos [contrários], muitos patrocinados pelas empresas, mas as ruas ficaram cheias de motorista dizendo “não, eu sou autônomo”. É claro que nos países, como o Brasil, onde a conquista dos direitos trabalhistas foi mais frágil, esse apelo à CLT, à legislação, é menor. Mas cria essa contradição na base, como também criou em outros países onde essas empresas chegaram. A propaganda delas é muito forte, de você ter uma liberdade...
Muitos falaram assim para mim: “eu não quero um salário mínimo, trabalhar todo dia no horário de trabalho normal com o patrão ou um chefe bufando aqui nas minhas costas”
Hoje eu percebo que há uma certa consciência [desses trabalhadores] ao recusarem o patrão. Porque quando você fala CLT, eles lembram do patrão, e por mais que tenha avançado, a nossa CLT tem muitos problemas. Então, muitos falaram assim para mim: “eu não quero um salário mínimo, trabalhar todo dia no horário de trabalho normal com o patrão ou um chefe bufando aqui nas minhas costas”. E, para eles, CLT representa isso. “Eu quero ter a chance de, pelo menos um dia, se precisar, trabalhar mais e fazer um troco melhor para pagar alguma necessidade minha”. É claro que é muito mais rígido o controle dos algoritmos, mas isso eles vão percebendo ao longo da experiência. O que eu percebo é que tem aí o que a gente poderia até chamar de um certo ódio de classe: a CLT para eles muitas vezes representa o patrão, o trabalho típico capitalista. Só que as empresas [de plataformas] falam: “então venha comigo que esse trabalho não é assim, aqui você tem liberdade etc., você vai tirar um pouco a mais quando você precisar”. E esse discurso das empresas, de uma certa maneira anticapitalista, entre aspas, atrai muito esses trabalhadores.
Muitos pesquisadores falam: “eles não entendem nada, eles não têm noção”. Não é bem isso não: é a experiência de vida deles que está mostrando que talvez nesse tipo de trabalho pelo menos eles resolvem o imediato, o boleto que venceu ontem, o filho doente.
É uma enrascada porque, de fato, como a Pnad mostra, eles estão trabalhando mais e ganhando menos, mas provavelmente estão ganhando mais do que se estivessem num emprego tradicional. Muitos pesquisadores falam: “eles não entendem nada, eles não têm noção”. Não é bem isso não: é a experiência de vida deles que está mostrando que talvez nesse tipo de trabalho pelo menos eles resolvem o imediato, o boleto que venceu ontem, o filho doente. É uma situação muito complexa. Eu também fico muito preocupado com aqueles que querem impor a qualquer custo a CLT dizendo: “vocês, trabalhadores, não sabem o que estão dizendo”. Não é por aí.
Queria que você falasse um pouco das diferenças entre esses trabalhadores, já que esse espectro vai desde aqueles um pouco mais privilegiados, que trabalham com um carro em aplicativos por passageiros, até os mais explorados, como os entregadores que trabalham de bicicleta...
Quando eu fiz as entregas, fiz de bicicleta, que é uma subcategoria dentro dessa categoria. Porque o colega de bicicleta vem da periferia, ele aluga normalmente uma bicicleta, e só vai voltar para casa quando tiver um troco. E só à noite que isso vai acontecer. Há uma sazonalidade muito grande, principalmente no setor de entregas. Você tem pedidos que entram no café da manhã, um pouquinho, depois tem um buraco ali no almoço, tem mais um boom, e depois tem mais um vácuo até um pouquinho o lanche da tarde, em que é pouco o serviço, e daí você tem uma melhora à noite. Esses trabalhadores acabam prolongando as suas jornadas de trabalho, principalmente no caso desse subgrupo dos ciclistas, porque estão esperando esses horários de pico, e para eles não compensa voltar para casa, tomar um banho, ver os filhos. Não tem como. Eles preferem ficar, porque às vezes cai até um pedido ou outro entre esses horários de pico. Então, eles ficam o dia inteiro esperando esses melhores horários. Essa turma é uma subcategoria, grande parte deles está descalço ou de chinelo, pedalando as bikes do Itaú, sem capacete, sem nenhuma proteção. E realmente os entregadores de bicicleta recebem menos, porque o aplicativo entende que eles não vão ter o custo da moto. Agora, o aplicativo limita a distância: eu, com uma bicicleta, nunca tive que fazer dez, 15 quilômetros, ele vai te jogando para um raio que você atenda numa certa agilidade de três a cinco quilômetros por pedido. O que acontece é que eles intensificam o ritmo de trabalho nesses horários de pico. Quando chega o almoço, você nem entregou um pedido, já está tocando outro, você nem entregou o outro, já entrou um pedido duplo. Daí, de repente, duas horas acaba tudo. Eles intensificam as jornadas nos horários de pico e para esses entregadores de bicicleta, a jornada é muito mais prolongada. O de moto, não, ele consegue às vezes voltar para casa, às vezes consegue fazer um outro trabalho até, um bico, entre um horário e outro, faz algumas entregas autônomas entre os horários de pico, se vira melhor pela própria autonomia que a moto dá. No caso dos ciclistas, não.
E sobre o nível de organização, consciência e reivindicação? Há graus diferentes entre o segmento mais explorado desses trabalhadores, que são os ciclistas, os entregadores de moto e os motoristas de carro, que atuam em aplicativos de passageiros? Essa percepção sobre o elogio à flexibilidade, o horror à imagem da CLT associada ao patrão, entre outros aspectos, tem variações?
Tem, porque ter o carro é um status, ter a moto é um status na periferia. Por exemplo, algumas vezes, [nas entrevistas da pesquisa] os caras [reclamavam] do [Paulo] Galo [que foi liderança dos entregadores]. A gente perguntava por quê. “Porque esse cara está falando que a gente passa fome. Espera aí, também não é assim, a gente quer uma condição melhor, mas espera aí, a gente não passa fome não, eu ajudo lá na minha quebrada, sou eu que faço o movimento social lá, eu que levo o brinquedo pras crianças na páscoa, no Natal, não é assim não, a gente também não é miserável não”. E esse discurso colava mais porque realmente os entregadores, os de bicicleta, estavam numa situação muito mais precária. Por exemplo, no Rio Grande do Sul, se não me engano, o Ministério Público do Trabalho fez alguns outdoors e pegaram essa ideia: “Faço a minha entrega com a barriga vazia”, “entrego a comida pra você de barriga vazia”, um negócio assim, que também não pega bem para muitos entregadores, principalmente no caso de moto.
Eles não gostam de serem vistos como alguém de uma condição social tão baixa, é isso?
As empresas individualizam as relações de trabalho
Principalmente os homens, que são a grande maioria, jovens adultos, que têm família e trazem com eles algum status por terem já uma moto. Onde eles vivem, as pessoas muitas vezes têm uma condição muito pior. Tem essas subcategorias e as empresas ainda fomentam isso, porque individualizam as relações de trabalho. Então, esse jovem, normalmente adulto, homem, que gosta de falar que é vida louca, acha que se dá melhor ali, que se vira porque entende melhor o setor, porque na hora que não tem pedido, ele vai fazer um autônomo... Esse cara acha que está tudo bem, que não precisa da CLT mesmo, ele está se virando ali do jeito dele, sem patrão. E uma mulher, quando está grávida? Também esse é um problema na questão dos direitos. E boa parte da categoria se entende como meritocrática, no sentido do que conseguiu e conquistou até agora. As empresas sabem disso e remuneram diferente, exatamente valorizando esses grupos.
O módulo de teletrabalho da Pnad Contínua estimou um rendimento médio mensal de R$ 2454 para motoristas de passageiros plataformizados (maior do que entre os não plataformizados) e R$ 1784 para os entregadores plataformizados – nesse caso, menor do que entre os não plataformizados, que era de R$ 2.210. Em ambos os casos, a jornada de trabalho é maior: 47,9 horas semanais para os motoristas de passageiros e 47,6 horas para os entregadores. Eu queria que você me ajudasse a situar esses números. Existem, de fato, diferenças importantes entre essas duas categorias? Como esses dados de rendimento precisam ser lidos quando se considera que eles não têm nenhum outro direito trabalhista?
Nós trabalhamos com esses dados também. Não são fáceis, esses cálculos são muito complicados. Quando fazia as pesquisas, a gente percebeu o quão complicado eles eram, porque é muito difícil você calcular a depreciação do carro, da moto, outros alugam o carro, é um tanto complexo. Por exemplo, não sei se você tem a mesma experiência aí no Rio [de Janeiro], mas aqui em São Paulo os carros [de aplicativo de passageiros] estão quase se desfazendo na rua: não têm amortecedor, não têm manutenção etc., porque eles tentam raspar o tacho mesmo para ter uma graninha melhor.
Eu indico a pesquisa do professor Ricardo Festi, da Universidade de Brasília, UnB. O grupo de pesquisa dele juntou tipo 20, 30 entregadores e foi perguntando para eles individualmente como era a questão salarial. E daí tem absurdos de trabalhador que teve o mês negativo, por exemplo, porque a empresa cobrou uma entrega que o cliente não aceitou; teve um outro que a moto estourou a roda, custa tantos mil reais, teve que trocar e também ficou negativo nesse mês, e outros que tiveram uma condição melhor. Ele faz uma pesquisa quali tentando entender como é de fato essa remuneração deles, o que de fato sobra. Porque é muito complicado quando você tem parte das ferramentas que que tem que levar para o trabalho, como a moto, a internet etc. Isso varia muito de lugar para lugar. [O cálculo da] média não traz muito essa realidade dentro de um universo de muita individualização das relações de trabalho. Até um tempo atrás, os motoristas diziam assim: “a gente fatura R$ 10 mil, R$2.500 vai para a Uber, R$ 2.500 é gasolina e R$ 2.500 é o resto aí de depreciação, manutenção do carro etc., então sobra para a gente aí R$ 2 mil, R$2.500. Mais ou menos, era essa conta que eles faziam. E que sem querer bate com [os dados da] Pnad. E os entregadores, a gente sempre considerou que era mais ou menos R$ 1.500 pelo que eles falam no dia a dia ali para a gente. Mas é sempre muito difícil, porque há uma complexidade de itens que entram nessa conta.
Por que só se elaborou um projeto de regulamentação da atividade dos motoristas de transporte e ainda não se tem uma proposta para os entregadores?
O que a gente percebe também com as nossas pesquisas é que as lideranças, mas também parte importante da base dos entregadores, acenderam mais cedo para a importância dos direitos
Eu acompanhei algumas mesas de negociação que aconteceram aqui em São Paulo e o que a gente percebe também com as nossas pesquisas é que as lideranças, mas também parte importante da base dos entregadores, acenderam mais cedo para a importância dos direitos. O que a gente percebe é que eles já estão há um tempo caminhando [de forma] um pouco mais coesa para essa ideia do direito, do vínculo, ou pelo menos de parte dos direitos. Eles têm já a ideia de que são assalariados, que pouco têm de autonomia. Então, isso também apareceu nos debates nas mesas de negociação. Eles não aceitaram os termos propostos pelas empresas e sempre foram mais críticos às propostas apresentadas, tanto os sindicatos como a turma das associações representadas lá pela Anea [Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos]. A gente já estava meio prevendo que eles não teriam acordo, e foi isso que aconteceu. Foi por isso que atrasou. O governo ia apresentar o projeto na viagem do Lula aos Estados Unidos, junto com o [Joe] Biden e atrasou tudo devido aos entregadores. Eles não concordaram com a proposta de valor por hora a que chegaram [na negociação]. No caso dos motoristas [de aplicativos de passageiros], a CUT [Central Única dos Trabalhadores] jogou pesado por trás para que as lideranças cedessem para se ter um acordo com o governo na proposta que saísse da mesa tripartite.
Agora, eu queria que você fizesse uma avaliação geral do PLP 12/24, que foi o resultado desse esforço de negociação para regulamentar a atividade dos motoristas de aplicativos de passageiros.
Quem aplaudiu a legislação até agora foram a Uber e o iFood
Eu e outros pesquisadores do grupo ‘Mundo do Trabalho e suas metamorfoses’ temos acompanhado isso de perto desde o começo do GT. E nós estávamos muito preocupados porque os boatos diziam que o que iria sair é o que exatamente acabou saindo. Diziam que o lobby [das plataformas] era muito pesado. Que as empresas aceitariam contribuir com o INSS [dos trabalhadores] e, em troca, elas gostariam de [criar] uma terceira figura jurídica, que acabou sendo proposta pelo governo, que é esse trabalhador autônomo por plataforma. Isso foram boatos que a gente ouviu em 2022, e foi exatamente assim que veio a proposta do governo. O que eles acabaram negociando no GT foram os custos e as horas dos trabalhadores. Por exemplo, no caso dos motoristas, ficou aí R$ 8,03 líquido, mas se você fizer as contas pelos dados do IBGE, eles já recebem na média um pouco mais do que isso. Ou seja, essa questão do valor mínimo não vai ter impacto. Então, a nossa preocupação é: enquanto o mundo todo tem caminhado para o reconhecimento desses trabalhadores como assalariados, como subordinados às empresas, que portanto deveriam ter seus direitos respeitados, como saiu agora na diretiva da União Europeia, no Brasil você tem um governo de origem trabalhista e sindical colocando a última pá no túmulo da CLT. Porque qualquer empresa pode ter um aplicativo, falar que tem os seus trabalhadores por plataforma e lutar pelo reconhecimento [disso] por essa legislação [que seria instituída com a aprovação do PLP 12/24]. Abre-se um precedente com essa terceira figura jurídica. Se você pegar o projeto, é um absurdo porque, no artigo 3º, ele exige que esse trabalhador seja totalmente livre e, no 5º artigo, permite que as empresas façam qualquer tipo de controle através dos algoritmos, inclusive bloqueando esses trabalhadores, como elas fazem – uma das reclamações desses trabalhadores é que eles são bloqueados sem saber por que e sem aviso prévio. É muito contraditório porque é um PL que cria uma figura que não existe, o autônomo livre, mas na sequência [diz que] ele não tem liberdade nenhuma. E abre precedente para outras categorias. Já foram criados os regimes de trabalho intermitente, o regime de trabalho temporário, a remuneração por hora apenas, então essas empresas já estariam contempladas com a CLT reformada. Mas nem isso elas querem. Nos Estados Unidos, na Califórnia, você teve a [Suprema] Corte decidindo a favor dos trabalhadores, os trabalhadores foram reconhecidos como assalariados, e essas empresas gastaram mais de US$ 200 milhões para legitimar o trabalhador uberizado. O mais triste é que aqui é o próprio governo Lula que está usando propaganda para defender essa PLP. Tanto que você vê que quem aplaudiu a legislação até agora foram a Uber e o iFood, a legislação de um governo trabalhista. Infelizmente, é algo que já estava previamente acordado e tentaram legitimar com a base ao longo de um ano de uma suposta negociação. E aí tiveram um problema muito grande. Não criaram uma proposta que demonstrasse ganhos reais para esses trabalhadores, que conseguisse convencer uma boa parte deles de que regulamentar é bom, porque eles melhorariam realmente de vida, e ao mesmo tempo também desagradaram a base à direita quando colocaram, por exemplo, que eles poderiam se organizar em sindicatos e quando estabeleceram o [pagamento] de 7,5% de INSS – eles falam que preferem pagar como MEI [Microempreendedor Individual], que são 5% sobre o salário mínimo. Eles conseguiram descontentar as duas pontas da categoria. E agora vamos ter manifestações da direita da categoria contra a regulamentação.
Mesmo com toda essa insatisfação, o PLP foi resultado de um acordo do Grupo de Trabalho, tanto que não há proposta para os entregadores porque eles não aceitaram os termos da negociação. A que se deve esse resultado?
Foram poucas lideranças que participaram [do Grupo de Trabalho]. O governo não deu tempo para isso, não chamou audiência pública. Agora é isso que eles falam: “a gente não foi ouvido, eu não fui ouvido”, e assim por diante. Eles têm reclamado com razão também que o negócio foi feito meio às pressas, não ouviu todo mundo, como eles gostariam de ter sido ouvidos.
Juristas e pesquisadores têm alertado também que o trecho do projeto que estabelece a remuneração mínima desses trabalhadores, na prática, autoriza um ganho inferior ao salário mínimo. Porque embora determine esse valor como piso, o texto considera para esse cálculo apenas a hora efetivamente trabalhada e não o tempo em que os trabalhadores estão à disposição das plataformas. Na sua avaliação, isso também abre um precedente para outras categorias?
Sem dúvida. As empresas são tão cara de pau que diziam que as propostas que elas enviaram na mesa de negociação eram de uma hora [equivalente] a 180% do salário mínimo. Só que elas esqueceram de falar que para conseguir ganhar [essa remuneração] você vai ter que fazer 70 horas por semana ao invés das 44. Porque em boa parte do dia você vai estar disponível, mas sem receber. E é um pepino porque as empresas agora vão querer pagar o INSS sobre o mínimo, que é o R$ 8,03 [a hora] e, como eles estão ganhando um pouco a mais, elas vão fazer o possível para reduzir o valor pra R$ 8,03 e pagar os 20% sobre esse valor.
Você está dizendo que há o risco, inclusive, de que o algoritmo das plataformas aja para reduzir o ganho desses trabalhadores?
Exatamente. É claro que tem o limite do descontentamento da categoria. Eles vão ter que operar nisso aí. Mas é exatamente isso que você falou. A comparação com o salário mínimo é um absurdo, porque para eles cumprirem um salário mínimo, vão ter que trabalhar muito mais.
A contribuição previdenciária das empresas pode ser considerada um avanço do PLP 12/24? Porque a Pnad mostra que poucos trabalhadores pagam previdência e os que pagam fazem como autônomos ou MEI, mas agora eles têm a contrapartida da empresa...
A luta continua, não vai ser essa lei que vai parar, pelo contrário
Eu acho que para o INSS é bom porque as empresas vão pagar. No caso do microempreendedor [MEI], ele estava pagando só 5% do salário mínimo e com uma inadimplência muito alta. Acho que em torno de 20% da categoria estava contribuindo, mas a inadimplência desses 20% é muito grande. Então, tem um certo avanço ao garantir na fonte que esses trabalhadores vão contribuir. Tem um certo avanço porque essas empresas vão ter que passar essas informações para o INSS, coisa que elas não gostariam de fazer, porque a gente vai ter que saber o quanto elas estão pagando por cada trabalhador. Talvez fique clara essa individualização das relações de trabalho. Para além da questão do INSS, você tem o saldo organizativo porque, de uma maneira ou de outra, nesse processo esses trabalhadores têm se conscientizado. Por exemplo, nos Estados Unidos, agora, três anos depois da lei que legitimou a uberização, teve uma onda de protestos no dia dos namorados de lá, articulada com Inglaterra, Escócia e Irlanda, que foram dos maiores protestos já realizados pela categoria. E inclui a Inglaterra, em que esses trabalhadores foram reconhecidos como workers, mas as empresas não estão respeitando o que foi decidido pela [Suprema] Corte. Na Espanha, a mesma coisa: você tem a decisão da Corte que regulamenta que esses trabalhadores são assalariados, tem a Lei Rider mas apenas um terço dos trabalhadores estão, digamos, legalizados, respeitando a legislação. Então, essas empresas realmente não aceitam, não cumprem nem decisão de supremas cortes. Mesmo depois de decisões na Europa e nos Estados Unidos, eles continuaram lutando, porque vivem no limite da exaustão e da subsistência. Então, a luta continua, não vai ser essa lei que vai parar, pelo contrário.