O pensamento de Paulo Freire muda ao longo da sua vida e trajetória. Mas existe algo que identifique e ‘resuma’ o seu pensamento?
Eu acho que é comum a toda vida de Paulo a preocupação com a dignificação das pessoas e com a democracia. Eram as estratégias a que ele sempre quis chegar: que o povo brasileiro experimentasse condições de humanidade, condições dignas de vida, num regime democrático. Agora, para isso, vêm as táticas de alfabetizar para inserir o analfabeto na cultura letrada, a cultura predominante, sem a qual ele seria tratado como um ser desprezível. É indispensável as pessoas viverem em uma cultura letrada. A palavra escrita pertence à comunidade de homens e mulheres, mas políticas vão inibindo o pertencimento de pessoas ao grupo letrado. Isso é roubar a humanidade daquele que não consegue entrar na escola, daquele que não se alfabetiza. Então, Paulo, quando teve essa certeza, disse: ‘olha, nós estamos querendo tirar o Brasil de um atraso terrível de desenvolvimento, de cultura letrada, o que nós precisamos fazer? Nós precisamos alfabetizar as pessoas, porque é através do domínio da linguagem que você pode se inserir na sociedade’. Então, antes esses sujeitos analfabetos se achavam o câncer e se consideravam qualquer nome pejorativo de que a elite os chamava. Eles não têm condições de lutar. Paulo percebeu toda essa dinâmica e a razão de ser do analfabetismo, com seu índice tão alto e tão pecaminoso. Porque, mesmo que não se diga ‘você não entra na escola’, as políticas e os mecanismos vão definir quem tem ou não condições de entrar. É por isso que, para desenvolver o país, para trazer todas essas pessoas marginalizadas como sujeitos da história brasileira, podendo ser tratadas enquanto tal, enquanto sujeitos, Paulo se dedica à alfabetização. À educação ele já estava se dedicando, mas percebe que a questão é alfabetizar e depois ir crescendo de conhecimento. Porque quanto maior o conhecimento, mais possível é as pessoas terem uma leitura crítica do mundo.
Para ele, as pessoas se conscientizarem era o seguinte: começar a saber da realidade, que ele é analfabeto não porque Deus quis
Mas como isso se relaciona com a ideia de que isso deveria se dar junto com um processo de conscientização? O que era esse processo de alfabetização? Era possível conscientizar estudantes que ainda não tinham sido alfabetizados?
Isso é possível, depende de cada aluno, de cada grupo, de como eles reagem. Quando Paulo se propõe a alfabetizar, ele diz assim: ‘eu não vou alfabetizar como muitos grupos e prefeitos desse Brasil afora que ensinam apenas a escrever o nome para poder votar. Porque a questão do poder político fica normatizando tudo. Então, ele disse a ele mesmo e a todos aqueles que pediam ajuda para sua cidade se alfabetizar: ‘não me interessa ensinar blábláblá, ensinar a escrever o nome para votar. Eu quero ensinar a escrever o nome para votar, mas consciente do ato que a pessoa está fazendo’.
Essa é que foi a grande raiva da elite e dos militares com a proposta de Paulo. Para ele, as pessoas se conscientizarem era o seguinte: começar a saber da realidade, que ele é analfabeto não porque Deus quis. Que ele está fora da sociedade, marginalizado, mas continua sendo objeto de usufruto da elite. Então, você tem que ir falando da realidade com o próprio ato de alfabetizar. Por exemplo: quais eram as palavras que se escolhia para um grupo se alfabetizar? Geralmente 17 palavras, chamadas palavras geradoras, que deviam conter todas as letras do nosso alfabeto e algumas dificuldades fonéticas. Você só podia fazer essa do jeito que Paulo pensou por que nossa língua é articulada: o mesmo ‘ca’ que serve para casamento serve para casa, o C, A é o mesmo. Então, é uma combinação das silabas que a gente manipula e forma palavras. ‘Tijolo’ ficou uma das palavras geradoras muito conhecida.
Num grupo de adultos querendo se alfabetizar, ele mostrava os objetos em si ou através de desenhos, de projeções de slides. Então, se colocava o tijolo e a palavra escrita. Só o tijolo primeiro. Aí se perguntava: ‘o que é isso?’. Todo mundo no Brasil, por mais humilde que seja, sabe o que é um tijolo. Aí depois se bota uma placa escrita e pergunta: ‘o que é isso aqui?’. Aí eles não sabem e Paulo colocava juntos, a palavra escrita e a imagem do tijolo: ‘isso aqui que está escrito é tijolo’. Depois se perguntava em quantos pedaços você divide essa palavra tijolo. Em três pedaços: ti, jo, lo. ‘Olha, mas eu posso fazer famílias com cada pedaço desses. Então, do ti, eu posso fazer ta, te, ti, to, tu, do jo, ja, je, ji, jo, ju, e do lo, la, le, li, lo, lu. Agora eu vou articulando, combinando um pedaço daqui e outro de lá e formando palavras novas. Para eles, isso era um jogo. No primeiro dia tinha muita gente que já conseguia formar palavras. Eles davam risadas quando conseguiam compor uma palavra. Um dia, em Brasília, [um educando] escreveu uma palavra e dava gargalhada muito alta. Aí Paulo perguntou: ‘por que você fica gritando?’. ‘Esse é o nome da minha mulher, eu aprendi a escrever o nome dela’. É lindo, Paulo se emocionava muitíssimo a cada passo que as pessoas iam. Isso é humanizar- se. Como é que pode se viver se você não sabe ler nada? Para um contrato, você tem que pedir a uma pessoa para te ajudar a ler e muitas vezes a pessoa não é honesta, não faz uma coisa certa. Você pergunta informação sobre o nome desse ônibus e ele vai para outro lugar... As pessoas iam ficando perdidas e com raiva, naturalmente. Perdidas moralmente, perdidas nos seus valores e perdidas de fato, porque iam parar em um bairro que nada tinha a ver com aquele que elas procuravam. Então, é assim que começa a alfabetização.
O governador do Rio Grande do Norte, que era Aloísio Alves, mandou o Secretário da Educação dele ir até o Recife perguntar se Paulo alfabetizaria um município deles lá, que era exatamente Angicos. Aí Paulo disse: ‘sim, para mim não tem problema’. O governador o chamou para ir conversar lá. E quando chega o governador, Paulo diz: ‘olha, as minhas condições são as seguintes: eu alfabetizo Angicos, a população que tiver de lá. Se o senhor tem a intenção que aprendam a ler e escrever para votar no senhor, eu não vou permitir que durante o processo o senhor apareça lá fazendo proselitismo político’. Paulo dizia as coisas com uma delicadeza que ninguém se sentia ofendido. Ele disse: ‘o senhor não pode ir lá, eu não aceito as suas professoras, eu tenho uma equipe do serviço de assistência cultural da universidade e é esse grupo que vem comigo e forma os estudantes secundaristas para serem monitores’. Também porque ele estava melindrado porque o dinheiro que ele tinha era da Aliança do Progresso.
A sra. pode falar um pouco sobre isso? Como foi tocar um projeto com dinheiro da Aliança para o Progreso?
Era o dinheiro da Aliança para o Progresso, um dinheiro que o governo Kennedy mandava para o Brasil para fazer a cabeça dos brasileiros a favor dos Estados Unidos. Os trabalhos todos eram em função de colocar na cabeça das pessoas que ser explorado pelos Estados Unidos estava muito bom. Aí Paulo disse: ‘Ele manda o dinheiro para ajudar o Brasil, então eu vou ajudar. E como eu sei que ajudar é diferente do que ele está pensando, mas ele não está perguntando o que eu estou pensando, então vou fazer diferente’. Em seguida Paulo foi e o programa alfabetizou muito rapidamente. Tinha até o slogan, o programa ficou conhecido como ‘Angicos 40 graus’, no lugar de 40 horas. Paulo disse que nunca foram 40 horas, foi mais do que isso. Agora, não tem quem tire da cabeça das pessoas que foram 40 horas. E isso ficou como uma marca. Foi um jornalista do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, que colocou esse título. Então, a coisa vingou. Quem eram essas pessoas? Eram costureiras, donas de casa, prostitutas, pedreiros, carpinteiros, enfim, o pessoal todo que tinha o serviço manual e que no Brasil era e ainda é um totalmente separado dos outros. São os que fazem e tem os que pensam. E o que Paulo queria era fazê-los pensar nas condições de opressão e de exploração em que eles viviam no seu dia a dia fazendo, produzindo para o país, levando o país adiante, mas sem nenhum direito. É uma injustiça: um corpo de pedreiros constrói um prédio e um apartamento de luxo, de trezentos, quinhentos metros quadrados de área construída e jamais pode entrar nesse prédio depois. Ele não pode entrar e mora na periferia, em casas de barro, de tábuas ou de sovaqueiro. Era esse o trabalho de conscientização. Quando se falava a palavra ‘tijolo’, perguntava-se para que serve o tijolo. ‘O tijolo serve para se construir a casa’. ‘E você tem casa de tijolo?’. ‘Não, eu tenho casa de massapê’. ‘Mas por quê?’. A proposta de Paulo era uma coisa fantástica: é perguntar por que a resposta está na pergunta. Quer dizer: eu estou fazendo o trabalho para quem? Eu estou a favor de quê? Das camadas oprimidas que, secularmente, vivem no Brasil em condições muitas vezes piores do que os próprios animais. Então, a gente tem sempre um porquê e para quem, contra quem etc.
Com essas perguntas você pode conscientizar os outros. Eles começam a entender que não é Deus que determina o analfabetismo e as suas condições de miséria. É fantástico. Eles ficam eternamente subjugados em um trabalho servil sem terem possibilidade de serem homens e mulheres com seus direitos e deveres. Então, quando a pessoa faz o exame e começa a refletir sobre a resposta a essas perguntas, vai começando a ser o sujeito da história, uma história que ele pode escrever. Escrever a história não é sentar e escrever no papel, é participar da construção da sociedade em todos os níveis. Ele pode ir para a faculdade, pode ir para uma discussão de eleição e ter a sua crença formada e explicitar o que pensa. Ele é o sujeito da história porque já tem o sentido crítico para fazer esse ato.
Angicos foi a primeira experiência desse modo de alfabetizar de Paulo Freire? Ele já tinha testado antes?
Ele disse que começou a testar com a empregada doméstica da casa dele. E ela dizia: ‘ai, essa história de ler e escrever disseram que é fácil, mas dá muita dor de cabeça’. Aí Paulo dizia: ‘Maria, se você sente dor de cabeça e não aguenta, está me dizendo que está cansada, que quer descansar, se eu for fazer o seu serviço Maria, fico mais cansado ainda. Não vou aguentar lavar roupa, nem cozinhar, porque eu não pratiquei isso. Quando a gente começa a praticar alguma coisa é sempre difícil’. Quer dizer, ele colocava objetivamente que não é a pessoa que era mais burra e tinha dor de cabeça, é porque é difícil mesmo começar a se alfabetizar adulto. Depois, já pertencendo ao Movimento de Cultura Popular, Paulo criou uma turma no Centro Dona Olegarinha. Lá tinha sido casa de grandes homens que negavam o escravismo. Dona Olegarinha era mulher de um deles que ajudava os negros a fugirem de barcos pelo rio que passa atrás da casa.
Então, era um lugar muito significativo. Paulo conseguiu a casa com a paroquia, um padre permitiu, ficou super contente e começou o grupo de sete ou oito pessoas. Nem todos terminaram. Os mais destemidos e teimosos, os mais afeitos ao desafio continuaram e se alfabetizaram. Aí depois, com o tempo, o governo da Paraíba chamou Paulo para ir lá fazer um trabalho de ajuda na alfabetização. Tinha dado os monitores, Paulo trabalhava ensinando algumas coisas e eles deslanchavam. Depois vão se criando outros centros em Recife. Então, no tempo em que vai fazer essa experiência em Angicos, ele já tinha alfabetizado algumas pessoas. Paulo dizia que não tinha sido em quarenta horas. Se fosse cinquenta ou setenta, isso não importa: foi em período muito pequeno. E por quê? Porque toda vez que uma sociedade está em ebulição, que a sociedade está almejando alcançar os sonhos mais altos, ela tem uma facilidade de mobilização, de entusiasmos, uma vontade que supera as dificuldades.
No Vietnã também foi assim. Quando veio a Guerra do Vietnã, as pessoas que precisavam aprender a ler aprenderam assim no ‘vapt-vupt’ também. Eu penso que Paulo tinha essa certeza.
Aqui no Brasil, foi isso que incomodou os militares em relação ao trabalho de Paulo Freire?
No discurso que fez na formatura do projeto de Angicos, um adulto alfabetizado disse: ‘O governador Getúlio Vargas veio aqui uns anos passados e tirou a fome da barriga. A gente vivia numa fome danada e ele tirou a fome da barriga, incentivou plantação. E agora veio o Doutor Jango e está falando que a gente não vai ter mais fome de saber. Eu quero saber, eu quero saber mais. Aprendi a ler e escrever e, com isso, eu posso escrever uma nova Constituição. A gente pode’. Aí os militares ficaram com aquela cara, meio apavorados. Na hora do almoço - uma coisa simples, humilde, não tinha luz, não tinha carne de R$ 1,5 mil o quilo, nada disso -, um oficial disse a Paulo que o general Castelo Branco estava chamando para ele sentar ao lado dele. Aí o general disse: ‘professor, andaram me dizendo que o senhor é subversivo’. Todo mundo nega quando recebe uma acusação, não é? Mas Paulo disse: ‘Senhor general, eu sou realmente subversivo. Porque eu luto contra todas as coisas que eu acho injustas contra o povo do meu país. Então eu sou um subversivo. Eu não aceito tudo’. O general engoliu a coisa a seco, ficou mais um pouco e depois saiu. Aí Paulo disse: ‘já estão armando o golpe’. E realmente um ano depois aconteceu o golpe, em 1º de abril.
Freire fez algum balanço da experiência de alfabetização de Angicos? Ele continuou defendendo essa experiência ao longo da vida?
Eu acho que houve modificações. Por exemplo, quando ele está na Secretaria de Educação de São Paulo, quando volta do exílio, ele cria o MOVA, que é um movimento de alfabetização de jovens e adultos. E já tem uma compreensão diferente daquela que tinha naquele tempo. Mas Paulo dizia que a gente faz o que é possível em determinado tempo e em determinado contexto.
Me dá exemplos do que Freire fez de diferente no Movimento de Alfabetização de Adultos da Secretaria de São Paulo em comparação com Angicos?
Quando vai para Angicos e em outras experiências ali naquele momento, antes do golpe, ele levava uma proposta pronta, que era fazer um círculo de cultura e dali tirar as palavras [geradoras]. Agora, ele não determinava as palavras, quem determinava as palavras era o grupo que ia se alfabetizar. Porque Paulo dizia: ‘a gente conhece mais aquilo que a gente já conhece, então nós vamos partir do que o povo conhece’. O povo conhece o que é tijolo? Conhece. Sabe o que é salário? Sabe. Sabe o que é caminhão? Sabe. Então ele ia descobrindo as palavras do povo, as palavras que esse povo mais falava. Quanto mais sabido na palavra, na sua linguagem oral, mais fácil era transformar isso na linguagem escrita.
Ele passa por esse processo todo de exílio e, em São Paulo, cria o MOVA. São outras condições históricas. Aqui na zona leste de São Paulo tinha grupos já organizados, associações comunitárias que procuravam se organizar para ter a rua asfaltada, para ter água no bairro, para botar um posto de saúde... Então, esses líderes desses locais convidavam quem quisesse se alfabetizar. Eram esses líderes que iam para a Secretaria de Educação aprender como alfabetizar, sem ser a partir de cartilha. Então, se a gente pensar com rigor, em Angicos era um projeto para [os analfabetos]. Depois, no MOVA, são eles que, juntos, organizam os grupos e administram as aulas com a supervisão dos técnicos da Secretaria de Educação. Não era para chegarem lá, inventar e fazer qualquer bobagem, tinha o controle para fazer a coisa certa. Então, veja: ele vai fazer com os analfabetos e não mais para os analfabetos. Essa é a grande diferença.
Ele avaliava como exitosa a experiência como secretário de educação de São Paulo?
Sim, deu muito certo. Tanto que até hoje tem os MOVAS. Os MOVAS apareceram no Brasil inteiro. Foi muito exitosa a gestão de Paulo. Tem muita gente por aí que diz que Paulo brigou com [Luíza] Erundina e por isso saiu. Não teve nada disso. É porque Paulo tinha uma carga de trabalho muito grande, atraía gente de todo lugar. Quando Paulo entra [na secretaria de educação], ele diz que quer que a formação dos professores seja a joia, a cereja do bolo. Disse que não adiantava fazer essa história de vir alguém fazer uma conferência, dar aquele diplominha... Ele queria formar grupos que queiram discutir a prática dos professores. Então, professores da PUC de São Paulo e da PUC de Campinas, da Unicamp e da USP formaram um grupo de assessoria. E era assim: se discutia e se via qual o caminho melhor para fazer uma educação progressista e eficiente. Eu acho que foi mais que exitosa essa gestão de Paulo, agora tem gente que não gosta. Veja: depois de um ano lá, a reprovação no primeiro ano primário era muito grande, porque o pessoal que não se alfabetizava ficava reprovado. Aí Paulo pensou: o que acontece com esses meninos? Alguns voltam para a escola, outros não porque os pais acham que eles são muito burros, que não aprendem. Aí a criança fica em casa tomando conta dos seus irmãos, no final esse menino fica na rua ao Deus dará. Aí Paulo disse: ‘nós vamos fazer promoção automática do primeiro para o segundo ano, a partir do segundo ano aí sim, você pode reprovar’. Isso foi um combate horrível. Depois saiu no jornal que o secretário não queria que se corrigisse o que estava errado. Era uma manchete, uma página inteira da Folha ou de outro jornal. Paulo dizia: ‘Meu Deus do céu! Em que momento eu disse ou pratiquei isso? Eu só disse que os professores evitassem de marcar com o lápis vermelho muito forte [as provas e tarefas das crianças] porque a gente quando pega aquilo já toma um susto com aquele traço assim. Pedi para fazer o sinal, pode usar até a caneta vermelha, mas faz uma coisa menos acintosa’.
Outra coisa: quando o menino diz ‘nós vai’, chega e bota errado, faz o sinal, mas chama o menino e explica: ‘olha, existe a linguagem que a gente fala, a linguagem vulgar, que é a linguagem falada, você aprendeu assim, seu pai fala assim, sua tia, sua mãe, todo mundo fala assim. Mas existe uma linguagem erudita que eu não sei se é mais bonita’ - porque Paulo dizia que não sabia se a linguagem erudita era mais bonita do que a vulgar – ‘que você precisa saber para citar na sociedade, quando for ler um contrato de seu emprego. Então, você precisa dominar essa outra linguagem’. Quer dizer, são essas coisas que Paulo fazia e o pessoal não entendia. E queriam mesmo desmoralizar o PT. Então, metiam o pau.
Paulo era aberto e defendia que os sujeitos tivessem autonomia e consciência para fazer o certo e o melhor, nunca para ser doutrinado e repetir o que os outros dizem.
Uma crítica comum é de que faltava conteúdo, faltava ênfase no conhecimento científico na abordagem educacional de Paulo Freire. Isso é verdade?
Não, não é verdade. Para Paulo, parte-se do senso comum que às vezes é místico, que explica através de Deus, Santa Barbara ou São Jorge, e se discute com o aluno para ele entender a concepção científica. Nunca ficou na concepção de senso comum. Paulo tinha, vamos dizer, flexibilidade de entender o aluno. Uma vez umas professoras chegaram para discutir com Paulo. Estavam muito aperreadas porque tinham reprovado um menino, no bairro de Vila Maria - que é um bairro que ficou famoso com Jânio Quadros e a vassoura -, que já tinha sido reprovado no ano anterior porque não conseguiu se alfabetizar. Então, ele repetiu o ano. Agora, tinha passado em português e matemática, mas pelo segundo ano seguido que estava reprovado em música. E, pelo regulamento, reprovar a segunda vez não pode, ele vai ficar retido nesse segundo ano porque não passou em música. Já pensou? Paulo perguntou: ‘mas vocês já verificaram como é a vida desse menino? Como é o contexto dele? Como é que ele vive?’. Elas contaram que sabiam que ele era quem ensaiava a escola de samba do bairro. Já pensou um menino de dez, onze anos que sai na frente e toca o ritmo, com uma escala em uma orquestra sinfônica, que toca o som que os outros vão seguir? Ele fazia isso com uma caixa de fósforo: batia a caixa de fósforo e todo mundo seguia aquele ritmo que ele tocava. E saía pelas ruas fazendo o ensaio do carnaval. Aí Paulo disse: ‘como é que se reprova um garoto que faz isso? Quantas pessoas no mundo sabem fazer isso?’. Isso é uma coisa fantástica. Mas ele não toca lá na flauta doce a música que ele é obrigado a tocar. Paulo decidiu que ele, como secretário de educação, ia aprovar aquele menino. Então, nessas coisas, a imprensa metia o pau. Não compreendem, eles querem a regra rígida, a regra que afasta da escola as pessoas com alguma dificuldade. São essas regras que interditam a escola aos mais pobres, aos mais desfavorecidos.
E como foi a experiência de alfabetização com Paulo Freire na África?
Olha, a coisa na África foi muito difícil. Paulo foi convidado para ajudar os países recém-libertados, que pertenciam até então a Portugal. Existia o seguinte: 97% da população era analfabeta na língua portuguesa. Porque era a língua do colonizador, daquele que batia, que dava chibatada e maltratava. Eles não queriam aprender nessa língua. Alguns diziam que a língua portuguesa já estava solidificada, tinha livros impressos, literatura, gramática, tinha tudo, era uma língua completa, em comparação com essas línguas que se chamavam de dialeto. Foram mais de 500 anos de colonização na África pelos portugueses, então, não tinha alternativa. Como é que você foge de uma questão dessa? Paulo advertiu que ele não seria capaz de organizar e de fazer esse trabalho e todos os livros que vão precisar, advertiu que esse era trabalho para uma equipe muito grande e com gente que já estivesse muito por dentro dessas culturas africanas para ir organizando um sistema orgânico para alfabetizar em português. Ele disse que não iria dar certo. Muitas vezes dizem que isso foi um fracasso de Paulo, mas não foi, eram as circunstâncias concretas que ele apresentou para as autoridades.
Por que Paulo Freire virou alvo dessa extrema-direita no Brasil?
Primeiro o [Jair] Bolsonaro não é capaz de ler um livro de Paulo. Ele ouviu muito o que o Olavo de Carvalho, que é um cara absolutamente louco e paranoico, dizia. Uma coisa que muito se fala é que Paulo era comunista. Paulo nunca foi comunista, até porque não concordava que seria através da ditadura do proletariado que você chegaria a uma sociedade socialista. Paulo pensava diferente da concepção russa de comunismo. Ele dizia que queria uma sociedade socialista. Muita gente perguntava como era essa sociedade. E ele respondia: ‘Eu não posso dizer por que não sei. Porque uma sociedade é aquilo que os seus membros querem, eu não posso definir, ela será o que nós construímos pensando no hoje, nos radicalizando o mais profundamente, criando as nossas raízes. Nós vamos traçando aquilo que tivermos condições, com alguma democracia verdadeira e uma sociedade justa, igualitária, uma sociedade da dignificação das pessoas, do respeito e da tolerância. Agora, como é que e faz isso, é cada sociedade que vai saber’.
Quem não entende Paulo diz que ele é doutrinador, que mandava e todo mundo obedecia. Eu conheci Paulo a minha vida inteira eu fui casada com ele durante dez anos e digo que ele nunca impôs nada, nunca foi autoritário. Paulo era aberto e defendia que os sujeitos tivessem autonomia e consciência para fazer o certo e o melhor, nunca para ser doutrinado e repetir o que os outros dizem.