Talvez pouca gente saiba, mas houve um tempo, lá pelos idos de 1960, em que “a Guerra Fria chegou a Natal”. Para sermos mais precisos, o correto seria dizer que ela se aproximou não apenas do Rio Grande do Norte, mas de todo o Nordeste brasileiro, onde a efervescência política acirrava a disputa sobre os rumos do país. Não, você não abriu a reportagem errada: o tema continua sendo Paulo Freire, patrono da educação brasileira reconhecido mundialmente, que em 19 de setembro de 2021 completaria 100 anos. Mas, se o educador pernambucano nos ensinou que o saber é sempre coletivo, com a sua própria trajetória não poderia ser diferente: em vez da saga de uma espécie de herói, aqui será narrada a história de um homem e seu tempo. “Você não pode imaginar o que era a mobilização daquela época nesse Brasil profundo”, resume José Willington Germano, professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
A comparação com a Guerra Fria – o conflito que, desde o final da 2ª Grande Guerra, dividia o mundo em zonas de influência de um bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, e outro socialista, comandado pela antiga União Soviética – foi feita por Moacyr de Góes, secretário de educação e cultura de Natal entre 1960 e 1964, numa entrevista concedida ao coordenador do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal, Roberto Monte. Ele se referia ao momento em que Djalma Maranhão e Aluízio Alves, dois políticos locais, começaram a romper a aliança nada programática que tinham feito nas eleições de 1960. O primeiro elegeu-se prefeito de Natal, onde montou o projeto ‘De pés no chão também se aprende a ler’, que alfabetizou adultos e crianças em salas de aula construídas com paredes de barro e telhados de palha, instalou bibliotecas, construiu praças de cultura, além de vários outros feitos. O segundo se tornou governador do Rio Grande do Norte e foi quem convidou um educador pernambucano que começava a se destacar com um novo ‘método’ de alfabetização de adultos para desenvolver um projeto de formação numa cidade do interior do estado que, naquela época, tinha cerca de 75% da população analfabeta. Nascia, ali, no pequeno município de Angicos, a experiência de alfabetização rápida de 300 adultos que tornou Paulo Freire conhecido no Brasil e no mundo.
“Acho que Paulo Freire, na verdade, acabou virando uma ‘vitrine’ de muitos movimentos”
Roberto Monte
Todos esses movimentos expressavam o que Roberto Monte gosta de caracterizar como o “espírito do tempo”. Segundo ele, naquele momento, no Brasil inteiro havia algum tipo de experiência envolvendo cultura e educação popular. Na verdade, principalmente no Nordeste, toda essa efervescência tinha começado até um pouco antes: no final dos anos 1950, segmentos da igreja católica criaram por lá as escolas radiofônicas, projeto que depois se transformou no Movimento de Educação de Base (MEB). Em Recife, Pernambuco, já no primeiro ano da década de 1960, nascia o Movimento de Cultura Popular (MCP), que investia em iniciativas diversas de alfabetização e educação de base, com foco também na construção de uma consciência social. “Acho que Paulo Freire, na verdade, acabou virando uma ‘vitrine’ de muitos movimentos”, resume Monte. Germano arremata: “Era um movimento de mão dupla. Paulo Freire é resultado dessa situação, mas também foi uma inspiração, na medida em que ele falava de uma educação que é libertadora”.
E que tempo era esse?
Uma parte dessa história quase todo mundo conhece. Desde 1961, o presidente do Brasil era João Goulart, o Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), lembrado por ter se comprometido em realizar “reformas de base” e por ter sido deposto pelo golpe empresarial-militar de 1964. No Nordeste, em 1960 Miguel Arraes foi eleito prefeito de Recife e Djalma Maranhão de Natal. “Era um momento de ‘ascenso’ das lutas políticas dentro daquele contexto progressista, com muita expectativa de transformação social”, resume Roberto Leher, professor e ex-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E tudo isso estava na mira internacional.
De um lado, quase todos os entrevistados desta reportagem apontam a Revolução Cubana, que tinha acontecido em 1959, e mais particularmente sua campanha de alfabetização, de 1961, como uma das inspirações das experiências educacionais e culturais que se desenrolavam no Brasil. De outro, exatamente para neutralizar essa influência, o país passou a receber recursos financeiros da chamada ‘Aliança para o Progresso’, uma iniciativa liderada pelos Estados Unidos que dizia ter como objetivo o “desenvolvimento econômico e social” da América Latina, mas era reconhecida como uma estratégia para não ‘perder’ outros países do continente para o bloco socialista. Pois foi exatamente esse dinheiro que financiou o projeto de alfabetização de adultos em Angicos, realizado em 1963, sob a liderança de Paulo Freire.
A decisão de investir recursos no Rio Grande do Norte (e não só em ações de educação) naquele momento tinha, na avaliação de Roberto Monte, um objetivo claro: equilibrar, pelas mãos de um político mais ‘à direita’ – no caso, Aluízio Alves –, os feitos que Miguel Arraes e Djalma Maranhão, considerados mais ‘à esquerda’, estavam promovendo em Recife e Natal. “Lincoln Gordon é que dava a linha e ele trabalhava o que chamava de ‘ilhas de sanidade’, que era você contrapor o pessoal mais progressista com o pessoal mais conservador”, resume Monte, referindo-se à atuação do embaixador dos Estados Unidos no Brasil à época. De fato, era a Guerra Fria se manifestando em terras nordestinas.
Mas o que Paulo Freire tem a ver com tudo isso? Nessa época ele participava ativamente dos movimentos de cultura e educação popular que aconteciam em Recife e fazia por lá as primeiras tentativas com o seu novo ‘método’ de alfabetização. Foi quando recebeu – e aceitou – o convite para massificar essa experiência em Angicos, no estado vizinho, com o tal dinheiro da Aliança para o Progresso. “O governador do Rio Grande do Norte, que era Aluízio Alves, mandou o Secretário da Educação dele ir até Recife perguntar se Paulo alfabetizaria um município deles lá, que era exatamente Angicos. Aí Paulo disse: ‘sim, para mim não tem problema’. O governador o chamou para conversar. Paulo diz: ‘Olha, agora eu vou dizer as minhas condições. Eu alfabetizo Angicos, a população que tiver lá. Se o senhor tem a intenção de que aprendam a ler e escrever para votar no senhor, eu vou lhe dizer que não vou permitir que durante o processo o senhor apareça lá fazendo proselitismo político’”, conta Nita Freire, professora, autora de vários livros sobre educação e viúva de Paulo Freire. Segundo ela, apesar da “delicadeza” que caracterizava o educador, o recado foi claro, principalmente porque ele estava, de fato, um pouco “melindrado” com a origem do recurso que financiaria o projeto.
O incômodo, no entanto, não foi suficiente para que Freire recusasse a proposta. Na entrevista que deu a Roberto Monte, Moacyr de Góes conta que, quando receberam essa notícia, ele e outros militantes foram para Recife tentar dissuadir Paulo Freire. Como argumento, ele usou a metáfora do personagem bíblico que resolveu morar dentro de uma baleia: “Você não é Jonas. Não pode dirigir a baleia de dentro”, dizia Góes, apostando que a linha do projeto acabaria sendo dada pelos EUA. Convicto e insistente, segundo o relato de Góes, Paulo Freire respondia: “Eu tomo dinheiro do gringo e trabalho contra o gringo”.
O general Castelo Branco, após ouvir as falas e entender o que tinha acontecido em Angicos, teria alertado que aquele projeto estava “criando cobras”
De fato, na formatura dos adultos alfabetizados em Angicos, uma cena se tornou exemplar: integrante da comitiva do presidente João Goulart, que participou da cerimônia, o então comandante do IV Exército, localizado em Recife, general Castelo Branco, após ouvir as falas e entender o que tinha acontecido por ali, teria alertado que aquele projeto estava “criando cobras”. “A gente não pode ficar naquela de ‘é isso ou é aquilo’, porque chegou um momento em que também os gringos viram que aquilo ali era uma roubada para eles”, resume Roberto Monte. Segundo Nita Freire, durante o almoço que se seguiu à formatura, o general ainda teria perguntado diretamente a Paulo Freire se era verdade que ele era um subversivo, como se dizia por aí. “Paulo disse: ‘Senhor general, eu sou realmente subversivo. Porque eu luto contra todas as coisas que acho injustas contra o povo do meu país. Então eu sou um subversivo, não aceito tudo’. O general engoliu a coisa a seco, ficou mais um pouco e depois saiu. Aí Paulo disse: ‘Já estão armando o golpe’”, conta.
Um ano depois, em 1º de abril de 1964, veio o golpe que instituiu 21 anos de ditadura no Brasil. Castelo Branco tornou-se o primeiro presidente militar. Paulo Freire, como vários outros educadores, estudantes, artistas, intelectuais e políticos da época, foi preso, perseguido e exilado. Em Angicos, a população foi avisada de que deveria esquecer aquela experiência e queimar os cadernos usados no processo de alfabetização. “Eu digo: não vou queimar, vou guardar por lembrança”, conta Valdice Ivonete da Costa, que aprendeu a ler e escrever aos 16 anos nos círculos de cultura montados por Paulo Freire. E ela lembra que várias pessoas da sua turma fizeram o mesmo. “Todo mundo dizia: ‘Ai, meu Deus, tão boas as aulas de Paulo Freire e inventaram essa história’”, conta, lamentando que, se não tivesse acontecido tudo aquilo, mais gente teria se alfabetizado e continuado os estudos.
"Eu queria estudar para ser professora. Queria seguir em frente, mas não deu. Ainda hoje eu tenho a lembrança de que eu perdi muita coisa, perdi demais. Se não fossem essas aulas de Paulo Freire, eu não sabia de nada"
Valdice Ivonete da Costa
Ela própria tentou estudar mais, mas a mãe, acreditando nas mentiras que o governo militar espalhou sobre Paulo Freire e com medo de que se repetisse a história “do homem que não era nada professor e vinha para matar e carregar o povo”, a obrigou a sair da escola. Só bem mais tarde, Valdice conseguiu voltar. Estudou até a 5ª série, equivalente ao atual 6º ano. “Eu queria estudar para ser professora. Minha mãe era analfabeta, não sabia nada e eu não queria ficar do jeito dela. Queria seguir em frente, mas não deu. Ainda hoje eu tenho a lembrança de que eu perdi muita coisa, perdi demais. Se não fossem essas aulas de Paulo Freire, eu não sabia de nada, porque acho que eu não tinha começado a estudar não”, lamenta, orgulhosa, no entanto, de hoje conseguir receber e escrever mensagens de whatsapp, redigir receitas culinárias e ler a bíblia. “Era mais difícil porque eu era mulher. Mulher era para ir trabalhar na cozinha, lavar louça, varrer casa... Mas mulher não é para isso não: mulher é para seguir a frente, estudar, se formar”, defende.
Claro que não foi só Angicos: quando veio o golpe, Paulo Freire estava à frente do Plano Nacional de Alfabetização do governo João Goulart, uma iniciativa que, diferente do tom de campanha que até então todos aqueles projetos tinham, se tornaria política pública a ser desenvolvida em todo o país. “Isso não se realizou por falta de condições políticas. E o que determina a derrota é um erro de estratégia política, de se ter achado que seria possível construir uma agenda em torno das frações burguesas ditas modernizantes, que estariam propensas a um projeto nacional”, analisa Leher, fazendo referência ao apoio que boa parte do grande empresariado brasileiro deu ao golpe militar. “A burguesia aqui no Brasil não estava disposta a apoiar o projeto de uma escola republicana, laica, única, enfim, que assegurasse uma formação humana, com uma concepção de cidadania”, completa.
Cobras criadas
A ‘subversão’ de Paulo Freire em Angicos foi ensinar 300 adultos a ler e escrever a partir da sua própria realidade, o que pressupunha discutir as condições em que eles viviam. E tudo isso em tempo recorde – embora o projeto tenha entrado para a história como as ‘40 horas de Angicos’, Nita Freire garante que durou mais que isso, o que não elimina o mérito de ter sido mais rápido do que tudo que já se tinha visto até então. “Paulo dizia que não ia alfabetizar como muitos grupos e prefeitos desse Brasil afora, que ensinavam apenas a escrever o nome para poder votar. Ele dizia: ‘Não me interessa ensinar blá, blá, blá. Eu quero ensinar a escrever o nome para votar, mas consciente do ato que a pessoa está fazendo”, explica Nita Freire, que completa: “Essa foi a grande raiva da elite e dos militares. Para Paulo, as pessoas se conscientizarem era começarem a saber da realidade, saber que eram analfabetas não porque Deus quis, mas porque estavam marginalizadas”.
A disputa por mais eleitores era, de fato, um elemento presente nos processos de alfabetização daqueles tempos já que a legislação proibia os analfabetos de votar. “O povo dizia que o governador, que era Aluízio Alves, trouxe esse Paulo Freire para dar essas aulas para fazer mais eleitores. E eu acreditei que foi, porque muitos não sabiam. Por mim, eu não sabia de nada e aprendi, graças a Deus, foi com ele”, diz Valdice. Hoje, aos 72 anos, ela já não se recorda dos assuntos que eram discutidos na parte das aulas que se relacionavam mais diretamente à “conscientização”. Mas lembra bem do orgulho que sentiu quando, aos 18, emitiu o seu título de eleitora. “Fui tirar o título, aí eu assinei os documentos, tudo assinado. Primeiro o povo botava o dedo, porque não sabia ler. Mas eu já sabia ler. Agradeço a Paulo Freire, foi quem trouxe isso. E aí eu escrevia. Ainda tem gente hoje que bota o dedo. Eu digo: ‘Olha aí, se tivesse Paulo Freire, não tinha acontecido isso’”, diverte-se.
"Com seis anos eu já sabia falar de reforma agrária, de lei, da Constituição e tudo eu aprendi nessa aula. Meus pais foram se alfabetizando e também aumentando o seu conhecimento do mundo”
Maria Eneide Araújo
Além de ter aprendido a ler numa aula que nem era sua, outra testemunha viva da experiência de Angicos, Maria Eneide Araújo, também se orgulha de que, ainda muito pequena, sabia falar sobre “reforma agrária e lei da constituinte”. Ela não era matriculada no projeto de alfabetização, mas acompanhava os pais nas aulas e aprendeu de tudo um pouco. “Também existia uma aula muito boa, que se chamava aula de politização. Com seis anos eu já sabia falar de reforma agrária, de lei, da Constituição e tudo eu aprendi nessa aula. Meus pais foram se alfabetizando e também aumentando o seu conhecimento do mundo”, conta, lembrando a história de um policial que estava se alfabetizando e descobriu, ali nos círculos de cultura, que tinha direito a férias. “As palavras geradoras estavam principalmente em torno da agenda das reformas trabalhistas e dos direitos dos trabalhadores do campo”, resume Leher.
Palavras e realidade do povo
Alfabetizar a partir das “palavras geradoras” – e não de uma cartilha com expressões previamente definidas – foi uma das inovações muito características do ‘método’ de Paulo Freire. “Primeiro foi colhido o nosso universo vocabular e eu acho que foi colhido todas as vezes que os monitores entravam nas nossas casas para conversar ou coisa assim”, conta Maria Eneide, remetendo-se à experiência de Angicos. A professora e coordenadora do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire da Universidade Estadual do Pará (Uepa), Ivanilde Apoluceno, explica a diferença: “No método tradicional, alfabetizar é juntar letras, né? É B com A, Ba, B com E, Be... E havia as cartilhas onde você tinha a palavra e memorizava as letras e as famílias fonêmicas. O Paulo Freire não trabalha nessa perspectiva, ele trabalha justamente com temas geradores dos quais vamos tirar palavras geradoras que são contextualizadas no universo dos sujeitos”.
Isso Valdice lembra bem. “A gente soletrava t, i, ti, j,o, jo, l, o, lo, tijolo. Tinha vários que, quando saíram, já sabiam mais ainda do que eu. Teve uns senhores mais velhos que parece que se interessavam mais do que a gente, porque a gente era jovem. Tinha um velho lá que dizia: ‘Pronto, tijolo, eu faço tijolo’. Ele vivia fazendo tijolo para fazer casa”, conta, explicando a escolha da palavra geradora da sua turma e que se repetiu em várias outras. Nita Freire resume: “Paulo ia descobrindo as palavras do povo”.
Essa era uma parte do processo. Antes desse exercício com as sílabas, diz a educadora, projetava-se a imagem de um objeto e, depois, o nome dele escrito. “Mostrava só o tijolo primeiro e perguntava: ‘O que é isso?’. Todo mundo no Brasil conhece tijolo, por mais humilde que seja. Aí depois se botava uma placa escrita e perguntava: ‘O que é isso aqui?’. Eles não sabiam e se colocavam juntas, a palavra escrita e a imagem, explicando que aquilo que estava escrito era tijolo. Então, depois se perguntava em quantos pedaços se divide essa palavra. E se mostrava que era possível fazer famílias com cada pedaço desses: do ti, eu posso fazer ta, te, ti, to, tu; do jo, ja, je, ji, jo, ju; e do lo, la, le, li, lo, lu. E mostrava como, combinando um pedaço daqui e outro de lá, eu vou formando palavras novas”, detalha. E completa: “Eles davam risadas quando conseguiam compor uma palavra”.
Uma consciência para chamar de ‘nossa’
Mas não era só. Ao se falar sobre tijolo durante a alfabetização, não passava despercebido o fato de que aquelas pessoas, em sua maioria, moravam na periferia, “em casas de barro ou de tábua”, como conta Nita Freire. “Perguntava-se: ‘Para que serve o tijolo?’. O tijolo serve para se construir a casa. ‘E você tem casa de tijolo?’. ‘Não, eu tenho casa de massapê’. ‘Mas, por quê?’”, ilustra a educadora, imaginando um diálogo possível de acontecer durante as aulas com o ‘método’ freireano. “A proposta de Paulo era uma coisa fantástica: é perguntar, porque a resposta está na pergunta”, diz. E conclui: “Era esse o trabalho de conscientização”.
Um trabalho que, como destaca a professora da Uepa, nada tinha a ver com a tal “doutrinação” da qual Paulo Freire hoje é acusado por grupos ligados à extrema-direita. “Ele nega a doutrinação, nega a manipulação política, nega a manipulação do outro. O que ele trabalha é com a criticidade”, explica Apoluceno. E completa: “Ele se tornou alvo porque discute a educação como uma ação política”. O professor Walter Kohan, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), considera, inclusive, que mesmo a palavra ‘conscientização’ pode ser “contraditória com as ideias de Paulo Freire” já que, dependendo do sentido que a ela se atribui, pode significar o não reconhecimento dos saberes do povo – algo que o educador pernambucano valorizava muito. “A palavra conscientização é muito importante para Paulo Freire, sobretudo no início, mas depois ele deixou de usá-la pela interpretação equivocada que se fazia do termo”, diz.
"Paulo Freire identifica de uma maneira muito brilhante, a meu ver, que era necessário interagir com esse pensamento intransitivo e fatalista. Ele chama isso de uma ‘transitividade crítica’"
Roberto Leher
Independentemente da expressão que se use, Roberto Leher considera que “a formulação de Freire nesse campo foi muito sagaz”. “É muito interessante sob o ponto de vista do trabalho de base. Porque reconhece que a população, os trabalhadores do campo, sobretudo no Nordeste, estavam imersos no que ele chama de uma ‘consciência intransitiva’ ou em uma ‘interação com uma transitividade ingênua’, que é o pensamento do senso comum”, explica. E exemplifica: “Nós temos que lembrar o peso que o determinismo e a fatalidade, muito difundidos por setores mais arcaicos da igreja, tinham naquele contexto. Coisas como: ‘É pobre porque Deus quis’. Havia uma subordinação da vida dos camponeses aos ciclos da natureza sem que eles tivessem meios tecnológicos para interagir com ela e transformá-la na perspectiva de melhorar suas condições de vida. Paulo Freire identifica de uma maneira muito brilhante, a meu ver, que era necessário interagir com esse pensamento intransitivo e fatalista. Ele chama isso de uma ‘transitividade crítica’, que significa compreender que todos os seres humanos são pessoas, que todas as pessoas têm direito à educação, à água potável, a um voto livre e não coercitivo, que não seja um voto de cabresto, entre vários outros”.
Mas o professor da UFRJ também identifica limites. Sua crítica é que, ao se demarcar o debate no campo das leis e direitos trabalhistas, por exemplo, tendo como horizonte político o programa das reformas de base, esse processo não caminhava no sentido de uma “consciência de classe” que pudesse ir além. “Não era uma consciência que permitisse um salto de compreensão sobre o capitalismo”, opina, explicando que, embora se expressasse na pedagogia freireana, esses limites eram da própria estratégia política da época. Nos estudos que fez especificamente sobre a campanha ‘De pés no chão também se aprende a ler’, Willington Germano também fez críticas sobre a falta de consistência teórica de algumas das ações desenvolvidas na época. “Eu falei que existia muito nacionalismo e não existia claro um projeto de sociedade. E eu acho que essas críticas ainda se mantêm”, reconhece, mas pondera: “Eu quero salientar mais os pontos fortes desses movimentos, aos quais recorremos ainda hoje. Se eles fossem tão frágeis assim, por que não se apagaram?”.
Outros tempos
O fato é que a ditadura chegou e, com ela, o “espírito do tempo” mudou. As experiências de cultura e educação popular que explodiam no Brasil foram desmontadas. O projeto de Angicos já tinha finalizado, mas, segundo Willington Germano, em Natal, as “escolas de pés no chão” que sobreviveram foram fechadas, as bibliotecas desmontadas, livros foram apreendidos, acampamentos foram incendiados. “Educação e cultura são alvos prioritários dos regimes autoritários” resume, completando: “Os sujeitos pagaram com cadeia, exílio e morte”.
No campo estrito da educação, o analfabetismo continuava um problema. E a principal estratégia para atacá-lo durante os governos militares foi o Mobral, o Movimento Brasileiro de Alfabetização, criado em 1967 e ativado a partir de 1970, com a meta de eliminar o alfabetismo no país até 1975. De acordo com o verbete da Fundação Getúlio Vargas sobre o programa, sua “ineficiência” foi demonstrada pelo censo produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1980: na última década havia aumentado em 550 mil o número de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais no país. “Apenas 15% dos alunos do Mobral chegavam ao fim do curso de alfabetização, e o percentual que regredia ao estágio anterior era sempre alto, qualquer que fosse o método de estimativa”, informa o texto. Walter Kohan compara: “Era como uma antítese de
Paulo Freire, um procedimento técnico e instrumental”.
Enquanto tudo isso se desenrolava por aqui, Paulo Freire, como tantos outros exilados, rodava o mundo: passou pela Bolívia, Chile, Estados Unidos e Suíça. Só voltaria ao Brasil em 1980, após a anistia. No exterior, escreveu muitos livros, que ampliaram a sua influência na educação para além da prática da alfabetização de adultos. Sua mais famosa obra, ‘A pedagogia do oprimido’, traduzida para mais de 30 idiomas, foi escrita em terras chilenas, em 1968.
No final da década de 1970, o educador foi chamado para reproduzir na África a façanha da alfabetização de adultos que tinha promovido em Angicos. Mas o resultado foi bem diferente. “Foi muito difícil”, conta Nita Freire, que explica: “Quando o Paulo é convidado para ir ajudar os países recém-libertados, que pertenciam até então a Portugal, 97% da população era analfabeta na língua portuguesa. Porque era a língua do colonizador, era a língua daquele que batia, dava chibatada e maltratava. Eles não queriam aprender aquela língua”.
No Brasil, a oportunidade que tinha sido abortada com o golpe, de atuar por dentro do Estado, desenvolvendo políticas públicas mais institucionalizadas, aconteceu finalmente em 1989, quando, já de volta ao país, Freire se tornou secretário de educação de São Paulo. Eram outros tempos: com a redemocratização, não apenas voltava a haver eleições como também o Partido dos Trabalhadores (PT), uma força política nascida da oposição à ditadura, ganhava a prefeitura de uma capital, a maior cidade do país. E como se não bastasse, a prefeita eleita era uma mulher nordestina: Luiza Erundina.
Com a democracia, viviam-se, novamente, tempos de esperança. Mas nem por isso as coisas eram propriamente fáceis. “Todos os dias a gente levantava para ler os jornais e saber o que eles estavam falando mal da gente”, brinca Lisete Arelaro, professora da Universidade de São Paulo (USP), que integrou a equipe de Freire na secretaria de educação do município. Nita Freire lembra alguns casos curiosos. Segundo ela, houve reação negativa, por exemplo, quando se instituiu em São Paulo a aprovação automática no primeiro ano do ensino fundamental. “A reprovação no primeiro ano primário era muito grande, porque se o pessoal não se alfabetizava ficava reprovado”, conta, explicando que a preocupação de Freire era evitar que os pais desistissem de manter as crianças na escola e elas acabassem “na rua, ao deus dará”. A orientação dada aos professores de que evitassem marcar os erros das crianças com lápis ou caneta vermelha muito forte, para não assustar, mereceu, segundo Nita Freire, uma chamada num grande jornal impresso, que acusava o então secretário de não querer mais que os docentes corrigissem os erros dos alunos.
Associado a isso, Arelaro reconhece uma inexperiência em aspectos relacionados à gestão pública, própria de um partido que, até ali, praticamente só tinha funcionado como oposição. No balanço do que foi essa experiência, ela destaca como um aspecto positivo a maior democratização da gestão das escolas, envolvendo direções, professores, estudantes e responsáveis. “Eu digo com prazer que os professores e as professoras iam um pouco mais alegres para a escola, não era um ambiente tão opressor”, diz, ponderando: “Não que houvesse adesão total, não existe unanimidade e Paulo Freire não estava preocupado com isso”. Arelaro ressalta ainda a modificação do currículo para funcionamento em ciclos – e não mais em séries –, que seria uma experiência pioneira no Brasil. Ela avalia que o processo de construção foi interessante e criativo, mas a implementação propriamente só poderia ter acontecido numa segunda gestão, que não aconteceu, já que o partido perdeu a eleição seguinte. “Como nós estávamos saindo do governo militar, claro que a expectativa era que a gente fizesse em quatro anos tudo que não tinha acontecido nos últimos 50. Então, nem sempre você agradava todo mundo, nem tudo conseguiu ser feito”, avalia.
Apesar disso, Nita Freire considera “muito exitosa” a atuação do educador pernambucano à frente da gestão municipal em São Paulo, da qual ele saiu dois anos depois de assumir. Não deve ser por acaso que, entre os maiores feitos daquela época, costuma-se citar a criação do Mova, Movimento de Alfabetização de Jovens a Adultos. “Paulo Freire tinha clareza de que não adiantava você pôr simplesmente um cartaz na padaria da esquina dizendo: ‘Se você conhece um analfabeto, encaminha pra escola x’. Porque isso já não tinha dado certo”, diz Lisete Arelaro. De fato, tal como acontecera em Angicos, em São Paulo, a escola para os adultos tinha que ir até o aluno, o que significava estar dentro das favelas e conjuntos habitacionais, numa época em que nem sempre havia escolas construídas. “Tivemos salas até em cemitérios”, conta Arelaro, explicando que foi uma reivindicação dos coveiros, que alegavam não terem tempo de chegar em casa para estudar.
“A história não volta, ela se renova, se modifica, e portanto, para mim, a surpresa foi conhecer um Paulo Freire cuja primeira frase sempre foi: ‘Se você concorda com as minhas ideias, por favor, não as repita, as ressignifique’”
Lisete Arelaro
Por tudo isso, esse ‘retorno ao passado’ com a educação de adultos carrega também um acerto de rota: “Quando volta do exílio e cria o Mova, Paulo Freire já tem uma compreensão diferente da que tinha antes”, analisa Nita. A principal mudança, diz, é que tanto em Angicos quanto em outras experiências que desenvolveu no Brasil na década de 1960, antes do golpe, ele levara uma “proposta pronta”. É verdade que os temas e palavras geradoras eram definidos a partir da observação da realidade do grupo que seria alfabetizado, mas o ‘modelo’ dos círculos de leitura já estava previamente dado. Mais de 25 anos depois, em São Paulo, “as condições históricas eram outras”. “Aqui na zona leste [de SP], tinha grupos e associações comunitárias que procuravam se organizar para ter a rua asfaltada, para ter água no bairro, para botar um posto de saúde... Então, esses líderes locais convidavam quem quisesse se alfabetizar. Eles iam para a Secretaria de Educação aprender como alfabetizar, sem ser a partir de cartilha”, descreve Nita. E resume: “Angicos era um projeto para o povo. Depois, no Mova, eles organizam os grupos e administram as aulas juntos, embora com a supervisão dos técnicos da Secretaria de Educação. Então, ele vai fazer com os analfabetos e não mais para os analfabetos”. Arelaro conclui: “A história não volta, ela se renova, se modifica, e portanto, para mim, a surpresa foi conhecer um Paulo Freire cuja primeira frase sempre foi: ‘Se você concorda com as minhas ideias, por favor, não as repita, as ressignifique’”.
“É comum a toda a vida de Paulo a preocupação com a dignificação das pessoas e com a democracia. Ele sempre quis que o povo brasileiro experimentasse condições dignas de humanidade, num regime democrático”
Nita Freire
Mas Nita ressalta igualmente aquilo que nunca mudou, nos muitos anos de trabalho de Freire com educação: “É comum a toda a vida de Paulo a preocupação com a dignificação das pessoas e com a democracia. Ele sempre quis que o povo brasileiro experimentasse condições dignas de humanidade, num regime democrático”, conclui. Foram opções que cobraram seu preço: no passado, o exílio; no presente, a perseguição de grupos de extrema direita que expuseram negativamente sua imagem em manifestações e até tentaram aprovar no Congresso Nacional um Projeto de Lei (nº 1.930/2019) que lhe retirasse o título de patrono da educação brasileira. “Todos aqueles que não se sentem de forma alguma incomodados com o sistema em que vivemos, que acham que está tudo bem, que as coisas são como são porque alguns têm mais méritos, mais sorte ou porque se esforçam mais do que outros, só podem ver em Paulo Freire um inimigo”, resume Walter Kohan.