A concepção econômica que, entre outras coisas, afirma a necessidade de se subir a taxa de juros para controlar a inflação é tratada, na maior parte do debate público, como uma verdade científica, quase absoluta. Mas a gente sabe que não é. Eu queria, então, que você falasse um pouquinho sobre as diferentes correntes do pensamento científico que existem e sobre o que as diferencia essencialmente.
Dando aula de macroeconomia, meu objetivo com os estudantes é quebrar um mito, que talvez seja o mito ideologicamente mais aprofundado nas graduações em economia, de que a teoria econômica tem uma evolução ascendente cumulativa, como se ela fosse se aperfeiçoando ao longo do tempo. E, portanto, como se a teoria econômica hegemônica hoje fosse o mais perfeita possível porque se aperfeiçoou ao redor das outras. Isso é um baita mito porque, na verdade, existem distintas correntes de pensamento econômico que têm posições muito diferentes e que disputam entre si. É importante dizer que o pensamento econômico, aquilo que a gente chama de economia política, surge com o próprio capitalismo, para entender aquele sistema que estava começando a nascer. A partir do século 17, a gente tem vários autores importantes nessa área: o William Petty, o François Quesnay... Chegamos ao século 18 com Adam Smith e ao século 19 com o David Ricardo. E a maior parte deles considerava, de alguma maneira, que o valor vinha do trabalho – embora com contradições. Ao mesmo tempo, nessa época, havia outros filósofos que diziam que o valor, a riqueza, vem da utilidade das coisas, não do trabalho humano. Isso vai dar origem a toda uma corrente utilitarista na filosofia e, dentro da teoria econômica, vai dar origem à concepção de que o valor vem da utilidade, o valor-utilidade. No meio do século 19, surge a teoria marxista, que é bastante disruptiva, porque vai levar à raiz essa concepção de que o valor vem do trabalho. E, investigando isso, chega à conclusão de que os salários não correspondem, de fato, ao trabalho realizado, e que sim, todo o valor da sociedade vem do trabalho, inclusive o lucro, os juros e a renda. Só que vem de um trabalho explorado. E a forma especificamente capitalista da exploração é o que o [Karl] Marx vai denominar de mais-valia, que tem a ver com o trabalho assalariado. A partir desse momento, em que a teoria do valor-trabalho se desenvolve numa teoria da exploração e da mais-valia, a economia burguesa abandona totalmente a ideia de que o valor vem do trabalho. E aí, a partir de 1870, mais ou menos no fim do século 19, surge na teoria econômica uma concepção que vai se autodenominar como ‘neoclássica’, reivindicando aqueles autores clássicos de antes de Marx, porém com uma diferença expressiva em relação a eles, que é não considerar mais que o valor vem do trabalho humano.
Em termos da história do pensamento econômico, a gente pode localizar que o debate macroeconômico começa a partir do surgimento dessa corrente, da teoria neoclássica. Porque até então, os autores clássicos não estavam debatendo esse economês que a gente tem hoje em dia, centrado especificamente na política fiscal e na política monetária. O Marx tampouco. Quem começa a debater isso mais diretamente é a teoria neoclássica. Claro que antes estava sendo realizado isso, mas não existia esse debate minucioso na história do pensamento econômico como existe hoje em dia.
Qual a diferença entre política monetária e fiscal?
A política fiscal tem a ver com o orçamento do governo, não com a quantidade de moeda. A quantidade de gastos e despesas do governo, a determinação do orçamento do governo se chama política fiscal. Se o governo vai gastar mais ou menos, isso é política fiscal. Na teoria econômica hegemônica, tende-se a falar que a política fiscal tem um efeito direto sobre a economia real. Porque o governo está efetivamente contratando mais serviços ou não, produzindo mais serviços ou não, ou seja, está gastando diretamente ou produzindo diretamente na economia real. E que a política monetária tem um efeito sobre a quantidade de dinheiro, sobre o sistema financeiro e sobre esse aspecto monetário da economia, que pode ou não ter impacto na economia real. Distintas teorias econômicas vão analisar de maneiras diferentes essa relação entre quantidade de dinheiro e a economia real, nível de produção, nível de renda.
E quais são as principais correntes e escolas do pensamento econômico que debatem macroeconomia?
Temos os marxistas, que não têm uma perspectiva específica sobre como resolver a macroeconomia capitalista porque acham que ela não tem solução. No campo da teoria econômica burguesa, temos a teoria neoclássica, que é essa que eu estava falando, que ao longo da história vai ficando cada vez mais ‘pura’, como resposta ao que estava acontecendo ao redor do mundo. Ela surge no fim do século 19 e depois vão surgir algumas versões mais radicais dela ao longo da história. A primeira surge na década de 1950, que é formulada pelo Milton Friedman e se chama monetarismo. A segunda surge na década de 1970, é formulada pelo [Robert] Lucas, e se chama Escola das Expectativas Racionais. E depois, na década de 2000, 2010, a gente tem outras versões dos ciclos econômicos reais. Então, quando se fala de monetarismo nesse debate dos juros, está se fazendo referência a uma escola de pensamento econômico específica, que surge na década de 1950. Como era um período desenvolvimentista, do pós-guerra, essa teoria não era hegemônica ainda, mas ela passa a ser hegemônica – e continua até hoje – quando a reconfiguração do sistema leva a um novo padrão de reprodução capitalista, que é o neoliberalismo, a partir da década de 1970, 80.
E como essas diferenças definem mais diretamente a concepção sobre a política monetária e fiscal?
A escola monetarista vê a moeda como neutra. O que isso significa? Que a moeda é como um véu que encobre as relações da economia, mas não tem impacto sobre a economia real. Então, a quantidade de moeda que existe na economia não muda o nível de produção. Ela tem impacto, portanto, só monetário, o que significa que tem impacto só na inflação. Isso significa acreditar que a economia tende sempre para um nível de equilíbrio – e, portanto, tende para um nível ideal, que é o de maior emprego possível de todos os fatores de produção, o chamado pleno emprego –, que é o que eles chamam de equilíbrio geral. Vamos ilustrar essa ideia como se fosse uma economia que produz geladeiras. Vamos supor que o nível de pleno emprego, o nível do equilíbrio dessa economia, é a produção de dez geladeiras. E nessa economia que tem dez geladeiras à venda, a gente tinha um bando de pessoas que ganhava R$ 2 mil por mês e pagava R$ 500 numa geladeira. De repente, porém, o Banco Central resolve emitir mais moeda. Essa moeda se espalha pela economia e essas pessoas, em vez de terem R$ 2 mil na mão, passam a ter R$ 3 mil. Só que o número de geladeiras não aumenta. Então, a demanda por geladeiras aumenta, porque agora que você tem mais dinheiro, quer comprar coisas, mas a oferta não se amplia. O que, grosso modo, a teoria macroeconômica monetarista pensa é que se você aumenta a oferta de moeda na economia, você apenas gera inflação, porque isso não tem efeito nenhum sobre a economia real.
Dentro da própria teoria econômica burguesa, a teoria econômica contraposta a essa seria a de matriz keynesiana, que vai surgir como uma resposta não só à crise de 1929, mas também à existência do socialismo no mundo. Do ponto de vista da teoria econômica, [John Maynard] Keynes também acreditava que o valor vinha da utilidade, porém, ele não acreditava que a economia tendia para um equilíbrio geral com o pleno emprego. Existem vários pressupostos envolvidos nessas divergências, mas o essencial é entender que a teoria neoclássica, depois monetarista, acha que a economia tende para o nível de equilíbrio com o pleno emprego e a teoria keynesiana acha que a economia pode tender para vários níveis de equilíbrio, não necessariamente esse do pleno emprego. Em decorrência disso, para a teoria keynesiana, a quantidade de moeda que existe na economia não gera apenas inflação, porque se a economia não está já naquele nível máximo de produto, ela pode aumentar o nível de produto. Então, se eu coloco mais dinheiro na economia, isso pode aquecer a economia real. Retomando aquele mesmo exemplo das geladeiras: para o Keynes, essas dez geladeiras não são necessariamente o nível de pleno emprego dos fatores de produção de modo que a partir daí a produção não pode aumentar. Você tem que analisar cada caso. Se você estiver nesse ponto, aumentar a oferta de moeda na economia de fato vai aumentar a inflação. Porém, se você estiver abaixo desse ponto e as pessoas passarem a ganhar mais e quiserem comprar geladeiras, o que vai acontecer é que a fábrica que produz geladeiras vai produzir mais porque existe uma maior demanda. E ao produzir mais geladeiras, ela está contratando mais pessoas e aquecendo a economia num efeito multiplicador. Então, para o Keynes, é possível gerar investimento através do aumento da demanda. Para a teoria neoclássica, não é possível, isso só gera inflação. Para o Keynes, você pode aumentar o investimento a partir do aumento da demanda. E uma das maneiras de aumentar a demanda é injetar dinheiro na economia.
Basicamente, na teoria neoclássica, se tem crise, é porque a economia não está no pleno emprego. Se tem inflação, é porque tem dinheiro demais na economia, então a gente precisa tirar dinheiro da economia. E isso tem um efeito recessivo. Sobre isso, eu concordo mais com o Keynes do que com a teoria neoclássica: não é verdade que a emissão de moedas não tenha efeito nenhum no aquecimento ou não da economia. E é uma bizarrice achar que a economia tende ao pleno emprego. Então, de fato, aumentar ou diminuir o nível de demanda tem sim um efeito concreto, multiplicador, sobre o crescimento econômico. Logo depois que o Keynes escreveu, escreve um outro cara chamado Hicks-Hansen, que vai propor um modelo macroeconômico chamado IS-LM, que é muito usado até hoje. A maior parte das continhas que os bancos centrais fazem tem base nesse modelo, embora sejam críticos a ele. Esse modelo propõe meio que uma síntese entre a teoria neoclássica e a keynesiana. São, digamos, um bando de keynesesianos com um pezinho maior na teoria neoclássica, mas que, diferente dos neoclássicos ‘puros’, consideram que a política econômica, a política monetária especificamente, tem efeito sobre a economia real. E há ainda outros desenvolvimentistas que se baseiam em outras matrizes teóricas. Se a gente for pensar economistas que estão no cenário nacional, Paulo Guedes [ex-ministro da Fazenda], [Roberto] Campos Neto [ex-presidente do Banco Central], são todos adeptos da teoria neoclássica de raiz monetarista. [Gabriel] Galípolo [atual presidente do Banco Central] tem uma perspectiva mais desenvolvimentista que considera, então, que mudar a oferta de moeda na economia tem impacto sobre a economia real. [Luiz Carlos] Bresser Pereira é neodesenvolvimentista. E tem os neodesenvolvimentistas mais críticos, com uma perspectiva mais refinada, como, por exemplo, o Pedro Rossi, a Laura Carvalho e nas antigas, a Maria da Conceição Tavares.
Agora ajuda a gente a entender como o Banco Central controla (ou não) essa oferta de moeda.
Capitalista nenhum é idiota: se o juro que o governo está pagando for maior, ele vai tirar seu dinheiro de onde estiver e comprar títulos da dívida pública porque eles estão remunerando mais
A Selic é a taxa de juros que o governo promete pagar pelos títulos de dívida pública dele. Porém, os bancos comerciais, as instituições que trabalham com financiamento, todo mundo que trabalha com alguma coisa que renda juros compara o juro que estão cobrando na operação que estão fazendo com essa taxa que o governo está pagando, que é a Selic. Capitalista nenhum é idiota: se o juro que o governo está pagando for maior, ele vai tirar seu dinheiro de onde estiver e comprar títulos da dívida pública porque eles estão remunerando mais. Inclusive os capitalistas do setor produtivo. Quando você tem uma taxa de juros que é mais lucrativa do que produzir frango, por exemplo, esse capital vai migrando para essa operação financeira. E isso gera um impacto na economia real.
A relação da taxa de juros com a economia real, para quem acredita que essa relação existe, é a seguinte: quanto menor a taxa de juros, maior a possibilidade de as pessoas que investem em coisas que geram emprego e geram esse efeito multiplicador na economia pegarem dinheiro emprestado para fazer esse investimento. Mais chances, portanto, de elas deixarem de colocar o seu dinheiro em títulos da dívida pública e fazerem, de fato, esse investimento. Já quanto maior a taxa de juros, maior a chance de que todos os capitais existentes sejam aplicados em operações financeiras que não têm esse efeito multiplicador na economia porque não contratam pessoas e, portanto, não pagam salário.
Keynesianos, pós-keynesianos, neokeynesianos e desenvolvimentistas de outras correntes, de maneira geral, entendem a economia como dividida entre uma esfera real e uma esfera financeira e fazem uma dicotomia: a esfera real, produtiva, é boa, e a esfera financeira é malvada. A perspectiva marxista, que é a minha, acha que isso é uma falsa dicotomia, totalmente idealizada e maniqueísta, que cria uma noção de que existe um capitalismo malvado e um capitalismo bonzinho. Como se, dentro do desenvolvimento capitalista contemporâneo, do grau de desenvolvimento capitalista que a gente tem e da escala de capitais iniciais que é necessária para investir em cada ciclo de capital, fosse possível um capitalista produtivo existir sem o sistema financeiro. Eu não considero que seja possível.
Não existe essa dicotomia de um capitalismo bonzinho, produtivo, e um capitalismo malvado, financeiro
Eu considero que o sistema financeiro é o que financia o capital produtivo. O capital financeiro não é só capital do sistema financeiro, mas sim essa integração, esse entrelaçamento entre capital do sistema financeiro e capital produtivo. Então, na minha concepção, é possível ter política econômica melhor do que a gente está tendo e melhorar um pouco a vida da classe trabalhadora. Mas é impossível, através da política econômica capitalista, resolver a vida da classe trabalhadora, justamente porque não existe essa dicotomia de um capitalismo bonzinho, produtivo, e um capitalismo malvado, financeiro. O capitalismo depende da existência do sistema financeiro, e é uma idealização, do meu ponto de vista, considerar que a gente pode superar completamente essa contradição. O capitalismo está baseado na exploração e vai seguir assim, mesmo que a gente consiga conquistar condições melhores de exploração.
A taxa Selic, definida pelo Banco Central, impacta a taxa de juros geral da economia? Tem efeito sobre os juros que as pessoas comuns pagam?
Impacta, em primeiro lugar, porque os bancos concorrem entre si. Eles precisam ter clientes, precisam atrair os capitais para si. Como o juro alto dá lucro para o sistema financeiro, se o Banco Central aumenta a taxa de juros básica, todos os outros bancos vão segui-la. Eles têm a possibilidade de cobrar, inclusive, acima dessa taxa de juros básica – essa diferença se chama spread bancário. Então, se aumentou a taxa de juros básica da economia, a taxa de juros de mercado vai aumentar também. Porém, o Banco Central diminuir a taxa de juros não significa necessariamente que os bancos comerciais vão seguir. E fazem aí uma dinâmica de cartel, de oligopólio mesmo, de conseguir juntos não baixar a taxa de juros. Mas aqui no Brasil a gente tem um instrumento para ajudar a baixar a taxa de juros, que é a existência de dois bancos públicos. Acho que é importante, porque em geral não aparece nas análises, destacar a importância do Banco do Brasil e da Caixa Econômica para garantir que uma diminuição da Selic seja repassada para a taxa de juros de mercado.
O Banco Central brasileiro, que acaba de completar 60 anos no final de 2024, foi criado na ditadura empresarial-militar. Isso se reflete, de alguma forma, nas suas prioridades e no seu funcionamento?
Reflete, sim. Porque qual era o bloco no poder naquele momento? Muito resumidamente, a gente teve uma disputa no Brasil ao longo do século 20 entre distintas frações da classe burguesa e a própria classe trabalhadora. Aqui no Brasil, na década de 1930, começa a se configurar uma espécie de pacto entre um setor da burguesia industrial nacional e um setor da burguesia latifundiária nacional – a historiografia oficial coloca como se esses dois setores fossem totalmente contrapostos, como se a burguesia industrial moderna fosse acabar com o latifúndio arcaico, mas não é verdade, porque o dinheiro para a industrialização dessa pretensa burguesia nacional moderna veio da exportação de commodities, veio do latifúndio. Mas são duas frações que estão participando desse pacto social lá na década de 1930. E no governo [Getúlio] Vargas, para garantir a estabilidade, esse pacto social é estendido em alguma medida para a classe trabalhadora. Isso em função do contexto, que incluía a existência da União Soviética, a crise de 1929, a hegemonia de políticas desenvolvimentistas... Era dar os anéis para não perder os dedos. Isso inicialmente tem uma perspectiva de fato mais nacionalista, só que a partir da década de 1940, 50, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a passagem da hegemonia da Inglaterra para os Estados Unidos e vários outros fatores, vai haver um aumento da entrada de capital estrangeiro não só via empréstimo, como era antes, ou já com as mercadorias prontas, mas num esquema de matriz e filial, um novo tipo de internacionalização do capital a partir dos países centrais. Então, esse tripé, de burguesia industrial nacional, burguesia latifundiária e algumas concessões para a classe trabalhadora, fica meio abalado, porque essa burguesia nacional precisa começar a competir, numa relação de amor e ódio, com esse capital transnacional. Sabemos que ela não consegue, que ela é derrotada. E aqui há um debate sobre se existe uma burguesia nacionalista hoje ou não. Para mim, esse é um debate menor, mas ele é muito caro ao desenvolvimentismo, que acredita que a gente teria a possibilidade de um desenvolvimento capitalista nacional autônomo no Brasil. Baseada na Teoria Marxista da Dependência e nas análises do Rui Mauro Marini, eu considero que não temos essa possibilidade porque, dentro do capitalismo, essa burguesia nacional autônoma, mesmo que exista, não tem condição de competir com a transnacionalização do capital, a conformação das cadeias globais de valor. O Marini vai apontar que na década de 1950 esse pacto começa a ficar mais instável, e essa instabilidade aparece de várias maneiras, inclusive como um espaço que a classe trabalhadora conquista para defender as reformas de base na década de 1960. Mas isso acaba levando ao golpe de 1964 e a uma reconfiguração do bloco no poder. E nessa reconfiguração, a internacionalização de capital está consolidada e a fração de classe ligada ao sistema financeiro entra no bloco no poder de maneira estável, como antes não estava. Então, há essa consolidação, por parte da ditadura militar, do sistema financeiro brasileiro dentro dessa dinâmica de blocos no poder.
O Banco Central brasileiro, desde o início, foi baseado no endividamento como maneira de garantir a operacionalização da economia monetária. E esse endividamento é feito através da emissão de títulos. Então, a política desenvolvimentista da ditadura militar esteve baseada em grande medida no endividamento que vai estourar depois na década de 1970. E esse tipo de operacionalização do Banco Central reflete a dinâmica que existia no bloco no poder. Os desenvolvimentistas também vão fazer a análise dicotômica do capitalismo financeiro malvado e do capitalismo produtivo bonzinho aqui. Vão entender o capitalismo financeiro transnacional como um imperialismo imposto de fora para dentro e o capitalismo bonzinho como o produtivo, nacional e autônomo. Eu, pessoalmente, considero isso, de novo, uma idealização, uma falsidade. Me parece que, mesmo que existisse uma fração da nossa burguesia nacional e autônoma – por exemplo, a Luísa Trajano, do Magalu – com disposição e vontade de construir esse projeto desenvolvimentista, bonzinho, nacional e autônomo, essa fração não tem nenhuma condição de competir com a configuração do capital em escala mundial. O capitalismo é um sistema mundial. Nós somos um país dependente dentro dele. E isso implica limitações, inclusive, para a acumulação de capital aqui dentro, de modo que não existe isso do capitalismo malvado e do capitalismo bonzinho. De novo: esse capital nacional só pode sobreviver numa relação de contradição e assimilação, que é dialética. E ele acaba se acomodando à existência da internacionalização de capital como parte do bloco no poder dentro do próprio Brasil. Não é algo imposto de fora para dentro, é algo que faz parte da nossa formação social enquanto país dependente.
O Plano Real é comumente apontado como um marco para a mudança de papel do Banco Central no Brasil. Há outros marcos que mereçam ser destacados?
A Constituição Federal de 1988 é bem importante. Ela acaba garantindo essa questão do endividamento como maneira principal de operação da política monetária pelo Banco Central. As conquistas da classe trabalhadora na Constituição de 1988 são muito expressivas e é isso que o neofascismo e o neoconservadorismo estão tentando destruir agora. Mas, apesar disso, essa Constituição reflete bem qual era o bloco no poder.
Depois tem o Plano Real, de 1995, e uma viragem importante em 1999, quando se estabelecem as metas de inflação. E depois tem, em 2021, a lei da autonomia do Banco Central. A independência do Banco Central é defendida na perspectiva monetarista desde a década de 1950. Há textos anteriores a isso, defendendo essa autonomia, uma maior dependência por parte do Banco Central aos interesses ligados à remuneração via juros no sistema financeiro. Então, a lei da autonomia do Banco Central no Brasil reflete uma conquista desses setores dentro do bloco no poder, que conseguiram plasmar em lei alguns dos seus interesses.
Não é porque é público que é do povo, né? Vivemos numa sociedade capitalista
Eu acho que para analisar essa história, o importante é pensar que apesar de o Banco Central ser público, ele já é estabelecido [para atender a outros interesses]. Não é porque é público que é do povo, né? Vivemos numa sociedade capitalista. E esse nosso Banco Central público, justamente por ser público dentro de um Estado capitalista, sempre serviu a interesses privados. Existe um espacinho de disputa, claro, porque o Estado capitalista permite que a classe trabalhadora dispute algumas conquistas, mas, majoritariamente, os interesses que se sobrepõem são os da classe dominante. E, no caso da configuração do bloco no poder da nossa classe dominante, são interesses de frações ligadas especificamente ao sistema financeiro. Essa ofensiva da classe dominante vai progredindo ao longo de todas essas mudanças na legislação que eu comentei. Com algumas legislações, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, essa ofensiva de setores da classe dominante conseguiu, inclusive, conquistar a criminalização de outras opções de política econômica. Isso é bem interessante: a política neoclássica monetarista se tornou tão hegemônica que ela consegue não só se sobrepor à realidade mas, formalmente, também a outras opções de política econômica.
Faz parte dessa concepção hegemônica a defesa do chamado ‘tripé macroeconômico’. Explica para a gente o que é isso e qual a sua relação com o sistema de metas de inflação, que tem justificado o aumento sucessivo da taxa de juros.
Esse tripé macroeconômico e, especificamente, o programa de metas estabelecido com o Plano Real, está baseado em algo que foi feito em vários países do mundo. Porque às vezes a gente pensa no Plano Real como uma criação fantástica do [ex-presidente] Fernando Henrique, mas não, é algo que foi feito em vários países do mundo e que tem a ver com a própria dinâmica do capitalismo mundial. A gente teve um aumento da nossa dívida externa, que levou a um aumento da inflação na década de 1980 em todos os países da América Latina, em função do aumento da taxa de juros em 1979 pelos Estados Unidos, para resolver a sua própria crise interna. Eles socializaram a crise deles com a gente. E aí depois os programas de estabilização monetária que foram mais bem sucedidos foram os que ancoraram as suas próprias moedas no dólar. O do Brasil foi bem mais inteligente do que o da Argentina, mas basicamente o que a gente fez foi ancorar a nossa moeda no dólar inicialmente. Depois disso a gente estabeleceu um tripé que está baseado no câmbio flutuante, em metas de inflação e na impossibilidade de que o governo tenha déficit primário. Câmbio flutuante é política cambial, meta de inflação é política monetária. E superávit primário é política fiscal. Então, é um tripé. Essas políticas estão interrelacionadas.
A classe dominante brasileira impede um imposto de renda progressivo, impede tributação de altas fortunas. Não conseguimos aumentar a tributação em função da luta de classes no Brasil
Sobre o superávit primário, a gente tem dois tipos de saldo das contas de governo. Na verdade, tem três, mas o que vai nos importar aqui são esses dois: o primário e o nominal. O primário, que pode ter superávit ou déficit, se calcula pegando todas as receitas do governo, que vêm de impostos, e tirando todos os gastos do governo, menos aqueles com o sistema financeiro, que é o pagamento de juros. Aí você tem o saldo primário. E o que está definido em lei no Brasil, e que faz parte desse programa de metas e do tripé macroeconômico, é que o governo não pode ter déficit primário. Ele tem que ter superávit primário. E isso é bem importante em termos dessa disputa de grupos no poder, porque o que o superávit primário garante é que o governo vai ter um resto de dinheiro para remunerar esse setor do sistema financeiro que está cobrando juros. Garante que o governo vai ter dinheiro para pagar juros, tanto internamente quanto externamente, tanto dívida interna quanto dívida externa. Claro que esse superávit nunca é suficiente para pagar todos os juros, então a gente fica rolando a dívida. A gente muitas vezes tem déficit nominal, apesar de ter superávit primário. Mas o superávit primário é garantido por lei. Ele é super da teoria neoclássica monetarista. Por quê? Por um lado, ele diretamente garante dinheiro para remunerar o sistema financeiro. Por outro, se você tem que ter um superávit primário, os seus gastos têm que ser menores do que as suas receitas. A gente poderia aumentar as receitas para garantir isso, só que isso significa aumentar a tributação e a classe dominante brasileira impede um imposto de renda progressivo, impede tributação de altas fortunas. Não conseguimos aumentar a tributação em função da luta de classes no Brasil.
Diminuir os gastos do governo significa diminuir os gastos com saúde, com educação, com todos os serviços públicos
O que é feito como ofensiva da classe dominante sempre reflete a luta de classes: é diminuir os gastos. E diminuir os gastos do governo significa diminuir os gastos com saúde, com educação, com todos os serviços públicos. Então, a presença na lei da necessidade de garantia do superávit primário tem impacto sobre a não disponibilização de serviços à população pelo governo. A inclusão da necessidade de garantir o superávit primário inviabiliza o acesso aos direitos universais que a Constituição garante.
Essa diminuição de gastos do governo cumpre uma tripla função. Por um lado, ela oprime a classe trabalhadora porque retira direitos e piora as suas condições de reprodução da vida. Isso é uma vantagem para a classe dominante. Em segundo lugar, ela garante que o Estado tenha dinheiro depois do superávit primário para pagar juros. E, em terceiro lugar, cumpre uma função dentro da teoria econômica, dentro da concepção macroeconômica monetarista, de diminuir a quantidade de dinheiro circulando na economia. Porque se o governo não está gastando, a gente tem uma diminuição da oferta monetária e isso, na concepção deles, diminuiria a inflação.
Esse tripé diz respeito à política fiscal e se associa à política monetária, que é a política de juros, para garantir a meta de inflação. A meta de inflação é estabelecida e depois tem que ser garantida. O Banco Central teria a atribuição de garantir que a inflação fique dentro da meta, e a principal ferramenta para isso é a manipulação dos juros. Não é só um anúncio: ‘o juro é esse ou aquele’. Manipulação de juros é a emissão de título da dívida pública. Quando o governo diz que a Selic é X, isso significa que o governo está garantindo que qualquer pessoa que queira comprar um título da dívida pública nesse preço vai conseguir. Então, na verdade, a política monetária relativa à determinação da taxa básica de juros é também a política monetária relativa à emissão de títulos da dívida pública. Hoje, no Banco Central brasileiro, a gente tem a hegemonia de uma fração da classe dominante, que está ali representada através de economistas com uma visão neoclássica monetarista, que consideram que é necessário um ajuste recessivo na economia – diminuir os gastos e aumentar os juros – para diminuir a oferta de moeda e controlar a inflação. E isso, na teorização deles, levaria a um crescimento econômico depois, porque ajuda a economia a atingir o equilíbrio geral do pleno emprego.
Ajuda a gente a entender o que é a inflação...
A inflação é um descompasso entre a quantidade de dinheiro e a quantidade de produção real. Só que esse descompasso é entendido de maneiras muito diferentes, a depender de cada corrente, cada teoria da inflação. Mas o que o Lula, por exemplo, está defendendo é que é necessário reduzir os juros para que haja investimento com um efeito multiplicador de crescimento da economia. E se a economia cresce, o fato de ter mais dinheiro na economia não gera inflação porque a economia real também cresceu.
Há fatores não monetários que influenciam a inflação?
Sim, porque esse descompasso entre a quantidade de moeda e a quantidade de produção depende também da quantidade de produção. Então, o nível do produto influencia a inflação. Para a teoria neoclássica monetarista, esse nível do produto não pode ser alterado através da política monetária. Numa perspectiva desenvolvimentista, pode. Na minha perspectiva, que não é desenvolvimentista, também pode. Só considero que isso não é sustentável a longo prazo: a gente consegue garantir momentos dessa hegemonia desenvolvimentista por alguns períodos, que são momentos que permitem um melhor nível de reprodução da vida da classe trabalhadora, embora politicamente, muitas vezes, isso até contribua para a gente se desmobilizar. Porém independentemente disso, a crise capitalista vem porque o desenvolvimento econômico também desenvolve as contradições do capitalismo. E aí vem uma crise de superacumulação. E, dependendo da luta de classes, a classe dominante pode vir com tudo na sequência. Então, eu, pessoalmente, também considero que existe sim essa influência da taxa de juros sobre a inflação, que é melhor para a gente ter uma taxa de juros mais baixa.
O Brasil, hoje em dia, tem a segunda maior taxa de juros real do mundo. E isso significa que tem uma entrada de capitais estrangeiros muito grande para fazer aplicações a essa taxa de juros. É uma taxa realmente muito, muito alta. É bizarro dizer que isso é só para controlar a inflação: de fato, existem interesses muito profundos sendo remunerados por essa taxa de juros alta. E é interessante pensar isso em termos de política cambial, porque no início isso garantiu a manutenção do Plano Real. Porque se você tem a taxa de juros muito alta, entra muito dólar, e você consegue manter aquela taxa de câmbio do dólar baixa, que foi necessária para ancorar o Real. A inflexão que aconteceu a partir do Plano Real em relação à taxa de juros tem a ver com isso, porque você precisa atrair dólares para o país para conseguir manter essa âncora cambial da inflação. Inicialmente, a gente manteve com taxa de câmbio fixa: o governo pegava esses dólares e garantia que a taxa de câmbio era essa para obrigar os preços a baixarem, e eles baixavam porque grande parte da nossa economia tinha a ver com importações, que estavam liberadas. Os produtos nacionais tinham que concorrer com os produtos importados, cujo preço estava em dólares, portanto, se o dólar caía, o preço caía. Isso puxa a inflação para baixo. No Plano Real, houve duas fontes principais de entrada de dólares no Brasil para garantir essa estabilização. Uma foi a altíssima taxa de juros, que os críticos desenvolvimentistas dizem que quebrou a economia nacional, mas, de fato, garantiu a estabilização. E a outra foi a privatização. A gente vendeu um monte de coisa e entrou muito dólar. Então, isso garantiu a estabilização até a crise de 1998, quando não foi mais possível garantir dessa maneira e foi necessário estabelecer o tripé macroeconômico em 1999, no segundo mandato do Fernando Henrique, justamente para deixar essa taxa de câmbio flutuar, porém dentro de uma meta de inflação.
É importante pensar como essas distintas políticas econômicas não são totalmente autônomas, não são uma criação brasileira, tipo a jabuticaba. Elas têm a ver com a configuração e reconfiguração do capitalismo em escala mundial. Então, atualmente, mesmo com o juro alto, a gente não consegue manter um câmbio baixo. Isso tem a ver, em parte, com elementos de decisão, de política econômica. Porém, o dólar alto se deve principalmente à crise nos Estados Unidos, que tem a ver com o aprofundamento da crise de 2008, o desdobramento dessa crise ao redor do mundo, o momento que a gente vive.
Vivemos, no momento atual, a mais profunda crise da história do capitalismo, uma crise multidimensional: é econômica, em todos os aspectos da economia, mas é também política, uma crise geopolítica, dos próprios valores da modernidade capitalista, e uma crise ambiental, que pode levar à extinção da nossa espécie e das demais espécies do mundo
Como você caracterizaria essa crise atual?
Vivemos, no momento atual, a mais profunda crise da história do capitalismo, uma crise multidimensional: é econômica, em todos os aspectos da economia, mas é também política, uma crise geopolítica, dos próprios valores da modernidade capitalista, e uma crise ambiental, que pode levar à extinção da nossa espécie e das demais espécies do mundo. É nesse contexto que surge o neoconservadorismo. A classe dominante, durante o momento em que existia um campo socialista, em que a classe trabalhadora teve mais conquistas, estava meio na defensiva. Esse foi o momento em que as políticas desenvolvimentistas puderam ser hegemônicas. Agora ela está na ofensiva. Eu diria que ela está na ofensiva desde a década de 1980 e que essa ofensiva se aprofunda após a crise de 2008, que é uma crise que está se desdobrando até agora.
Durante os primeiros governos do Partido dos Trabalhadores (PT) até a crise do governo Dilma Rousseff, o Brasil viveu um ciclo de redução das taxas médias de juros. A que isso se deveu?
O que a gente tem a partir de 2013, na minha opinião, é uma crise política em grande medida motivada pelo desdobramento da crise econômica, da crise capitalista estrutural, que não depende só do Brasil.
O momento da queda da taxa de juros no Brasil, que foi na metade do governo Lula 1 e governo Lula 2 e um pedacinho do governo da Dilma teve a ver não só com decisões de política econômica do governo, mas também com o ciclo das commodities, que trouxe a possibilidade de uma entrada altíssima de dólares no Brasil por outras vias que não o aumento da taxa de juros. E quando isso muda, porque a crise mundial afeta a economia dos Estados Unidos, que está num período de estagnação econômica e inflação, as possibilidades para o governo internamente no Brasil também mudam. Acho que também é importante identificar que não foi uma crise política no Brasil que gerou a crise econômica, é o contrário. O desdobramento dessa crise econômica mundial leva a que não exista mais um excedente possível para fazer uma política de pacto social. Então, o governo vai tirando direitos da classe trabalhadora, embora tente reduzir a velocidade da retirada desses direitos e segurar a barra, enquanto a classe dominante está em uma ofensiva total. O que a gente tem a partir de 2013, na minha opinião, é uma crise política em grande medida motivada pelo desdobramento da crise econômica, da crise capitalista estrutural, que não depende só do Brasil. E a partir de 2013 foi bem difícil ter entrada de dólares que não fosse via taxa de juros. Essa taxa de juros vai aumentando, inclusive, porque as frações burguesas que pressionam para aumentá-la ganharam espaço dentro do governo Dilma. Depois do golpe [de 2016], a gente teve um momento breve de queda da taxa de juros, mas no governo do Bolsonaro ela voltou a crescer bastante. É muito importante defender uma baixa da taxa de juros, é um absurdo o nível de taxa de juros que a gente tem no Brasil. Mas o ponto central aqui é que a alta da taxa de juros não depende só das decisões internas no Brasil, depende também da crise mundial, especificamente da crise nos Estados Unidos. Porém, sim, o Brasil tem uma margem de mudança de política econômica para diminuir um tanto essa taxa de juros real e deveria fazer isso.
A busca por um pretenso capitalismo bonzinho, que remunere em menor medida esses setores do sistema financeiro, não é capaz de resolver a crise capitalista
A crítica de que os governos nacionais têm perdido algumas das ferramentas essenciais para governar, num processo em que se estabelece um ‘consenso técnico’ de que determinadas decisões precisam estar fora das mãos dos políticos, tem sido muito comentada neste momento pelas análises que tentam entender o quanto isso influencia fenômenos como o crescimento da extrema-direita em todo o mundo. A independência do Banco Central, provavelmente, pode ser entendida como uma das medidas nesse sentido. É possível estabelecer uma relação entre esse debate sobre o papel e a independência dos BCs e o enfraquecimento ou a crise das democracias?
Eu acho que a relação entre a independência dos bancos centrais e o enfraquecimento ou crise das democracias é total, porque a conquista de legislações de cunho neoclássico, monetarista, ao redor do mundo se dá nesse período de ofensiva da classe dominante, a partir da reconfiguração neoliberal do capitalismo. Acho que é importante frisar que as legislações de autonomia do Banco Central, assim como as legislações de responsabilidade fiscal e de superávit fiscal estão sim relacionadas ao neoconservadorismo e a uma ofensiva aberta da classe dominante sobre a classe trabalhadora dentro dessa dialética da acumulação e da crise do capitalismo. E isso vai se aprofundar a partir de 2007, 2008, no bojo dessa crise capitalista e da necessidade da classe dominante de avançar. A classe dominante está em ofensiva aberta. Mas o que pessoalmente eu considero importante é frisar que a busca por um pretenso capitalismo bonzinho, que remunere em menor medida esses setores do sistema financeiro, não é capaz de resolver a crise capitalista. Ela reflete conquistas possíveis da classe trabalhadora e até de algumas frações da classe dominante na luta de classes, mas não é sustentável a largo prazo. A única coisa que pode garantir, de fato, a sustentabilidade de uma melhor condição de reprodução da vida para a classe trabalhadora é a superação do capitalismo.