A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) tem um Grupo de Trabalho sobre Saúde na Era Digital desde 2016. Por que ele foi criado?
Já em 2008, nós lançamos um primeiro livro chamado ‘Geração Digital’, que é sobre adolescentes que, na época, estavam, entre outras coisas, baixando músicas na internet. E a partir daí nós fomos agregando outros profissionais que tinham não só as mesmas preocupações, mas estavam vendo já no consultório esse fenômeno e os problemas [que ele trazia]. Em 2012, 2013, fizemos mais um livro. E aí, como sou pediatra, conversei na época com o presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria [SBP] e resolvemos formar o que nós chamamos de Grupo de Trabalho. Fomos trocando ideias e começamos a escrever os primeiros documentos. Em 2016, saiu o ‘Menos Tela, Mais Saúde’, que teve uma enorme repercussão – esse documento foi atualizado em 2024. E a Sociedade Brasileira de Pediatria foi percebendo a importância [do tema]. No último Congresso Brasileiro de Pediatria, nós fomos convidados para um colóquio e eu fiquei assustada, porque a sala encheu. Tiveram que fechar a sala, botar telas lá fora... Então, isso foi mostrando cada vez mais que a demanda existia, que os problemas [relacionados ao uso de telas, internet e redes sociais] estavam aumentando. A Sociedade Brasileira de Pediatria, inclusive, se posicionou com uma carta à Câmara e ao Senado sobre os problemas de saúde que estavam acontecendo com crianças e adolescentes.
O uso de tela excessivo é apontado há muito tempo por pediatras e outros profissionais ligados à infância e adolescência como um problema para essa faixa etária, mas, nas últimas décadas, nós mudamos a concentração da tela da TV para a tela do celular e, ainda mais recentemente, para uma navegação que se dá prioritariamente nas redes sociais. Qual o impacto dessas mudanças sobre as condições de saúde física, mental e psicossocial dos adolescentes?
De repente, uma tela que era ali na televisão foi parar na mão do adolescente
Tudo isso extrapolou, acelerou, superficializou. De repente, uma tela que era ali na televisão foi parar na mão do adolescente. Os smartphones estão aí. A [pesquisa] TIC Kids Online Brasil, que é feita pelo Comitê Gestor de Internet, cinco anos atrás, mostrava preocupação com os adolescentes. E, numa reunião, em que eu estava porque sou uma das especialistas do Comitê, eu falei: ‘Olha, vai chegar nas crianças’. A última pesquisa [TIC Kids On line], do ano passado, demonstrou que nós estamos com 93% da população entre nove e 17 anos já conectada à internet, o que dá quase 25 milhões de pessoas. [A pesquisa também mostrou que] 23% dessa população já começou a acessar a internet antes dos seis anos. Isso é um caso de Saúde Pública.
No documento ‘Menos Tela, Mais Saúde’, eu coloco que existem quatro grandes tipos de comportamento [que podem resultar do uso excessivo ou indevido de jogos, internet e redes sociais]. Há os problemas físicos: problemas posturais, de visão, audição e sedentarismo, que têm uma repercussão a longo prazo. Mas estamos falando também de problemas de comportamento. Ansiedade, depressão, alteração de humor, bullying, ideação suicida: tudo isso vem aumentando. Tem um terceiro componente enorme, que é a sexualização: nudes, abuso sexual, a sexualização da criança e do adolescente através das mídias e a rapidez com que isso se espalha. E tem a parte toda da violência: bullying, cyberbullying. Todas essas questões extrapolaram.
Existem, do outro lado da tela, predadores, pessoas que sempre foram violentas e estão se utilizando dessa mesma tecnologia. E existem as big techs, que estão monetizando e lucrando com isso
O que está do outro lado das telas? Por que isso está acontecendo? Não é só a tecnologia, a velocidade da conexão da internet. Existem, do outro lado, predadores, pessoas que sempre foram violentas e estão se utilizando dessa mesma tecnologia. E existem as big techs, que estão monetizando e lucrando com isso. Porque é isso que essas empresas fazem. Elas querem atrair o público e o adolescente é um público atraente porque é curioso, é impulsivo... É vulnerável, mas acha que nada vai acontecer com ele, tem a pseudoilusão do anonimato, que também não é verdadeira... Tudo isso contribuiu para a explosão que nós estamos tendo agora. E que até ontem [20/08/2025] não tinha regulação. Então, estamos nessa batalha.
A Sociedade Brasileira de Pediatria foi convidada e nós passamos dois anos produzindo um guia sobre as redes digitais e mídias para crianças e adolescentes. Esse guia de orientação foi lançado este ano, em fevereiro. Tem sido muito importante o trabalho intersetorial. Nós, como médicos pediatras e da Saúde Pública, temos que trabalhar com outras áreas de conhecimento. Então, por exemplo, trabalhamos com advogados de direito digital, com o grupo da Safernet, que é um site de denúncia, com defensor público, com uma juíza da infância... Porque todos começaram a ter uma demanda incalculável [sobre esse tema] no trabalho.
Você fez referência a quatro grandes grupos de problemas relacionados ao uso de telas, internet e redes sociais. Os problemas físicos são, na maioria, de efeito mais de longo prazo. Mas, em relação aos outros, eu queria saber se o Brasil tem dados que permitam traçar um retrato aproximado desse cenário.
Temos alguns dados. A gente está vendo, por exemplo, [aumento de casos de] transtornos alimentares ou mesmo transtornos de sono. [Subiu] o número de receitas ou compras em farmácias, por exemplo, de melatonina. A luz da tela tem o que a gente chama de onda azul, que bloqueia a melatonina e, com isso, causa insônia, dificuldade de dormir. Aí, de repente, melatonina começou a ser vendida para adultos. Agora já está sendo vendida para criança e adolescente.
Então, a gente tem alguns dados que eu chamo de indiretos. A gente ainda não tem canal de denúncia sobre todos os crimes virtuais. Mas, por exemplo, ontem mesmo, em plena audiência pública, estava uma delegada da Polícia Federal, que falou que eles recebem, em média, 2.700 denúncias por dia! A gente precisa realmente coletar esses dados com seriedade e não só através do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde.
Adultização não existe. O que existe é violência, o desrespeito àquela criança que está em fase de crescimento
Esse influenciador [Felca] botou a boca no trombone sobre uma realidade que a gente já estava vendo. Ele, inclusive, usou uma palavra que todo mundo fica repetindo, que é adultização. Mas adultização não existe. Nem adultização, nem infantilização. O que existe é violência, o desrespeito àquela criança que está em fase de crescimento. Porque uma criança é um sujeito de direito, não é um objeto sexual.
O que estamos tentando, com os documentos da Sociedade [Brasileira de Pediatria] é que se tenha uma fonte confiável da informação. Nós falamos com pediatras do mundo todo, profissionais que trabalham de uma maneira séria sobre o tema, que estão vendo a situação e tentando convencer políticos e legisladores da importância do problema. E aí entra o poderio das big techs.
Do ponto de vista do desenvolvimento cerebral, mental e psíquico, adolescentes e crianças são mais vulneráveis aos perigos das redes sociais? Por quê?
O cérebro da criança não é o mesmo do adolescente, que não é o mesmo do adulto
Primeiro, o cérebro da criança não é o mesmo do adolescente, que não é o mesmo do adulto. Nós temos fases do desenvolvimento cerebral. Principalmente nos dois primeiros anos de vida, temos a sinaptogênese, que é a formação das conexões [entre os neurônios do sistema nervoso], mas também o que a gente chama de poda sináptica: aqueles neurônios que não são estimulados não são mais usados, para dizer de uma maneira simples. Isso tudo acontece também na adolescência. Nos seis primeiros anos de vida, a criança está crescendo muito, mas está desacelerando na sua velocidade de crescimento. Isso também acontece no nível cerebral, mental. Porém, nesses anos ela está adquirindo o aprendizado da fala, o psicomotor... Mas olha como as redes [sociais] não são bobas: [o que se está desenvolvendo nessa fase], principalmente, é a conexão com o mundo externo, que são as redes de relacionamento. A criança está aprendendo quem é o pai, quem é a mãe, quem é o irmãozinho, quem é o gatinho: isso é a rede de relacionamento. Afeto é o que alinhava tudo isso.
De seis a dez, 11 anos, começa a puberdade. Na puberdade, de novo, há uma aceleração do crescimento, mas aí tem o que gente chama de hormônios sexuais – estrogênio, testosterona – que compõem o sistema límbico. É o que faz a curiosidade, a impulsividade do adolescente. Tem o córtex pré-frontal, que é a parte cognitiva, mas a parte límbica vem com tudo, com outro impulso. E existe um tempo separado de maturação desses dois componentes cerebrais. Então, muitos dos comportamentos da primeira infância são revivenciados na adolescência, com algumas diferenças. Esse adolescente está crescendo, ele é o maior, ele vai confrontar papai e mamãe, vai procurar outras opiniões – daí também a importância da opinião dos amigos, dos pares, e por isso também a questão do bullying. Então, a adolescência tem toda essa parte do desenvolvimento da sexualidade e da impulsividade. E cadê essa família? Se nós estamos falando de pais que estão ali, atentos, observando, conversando, supervisionando, aconchegando esse adolescente, trocando esse afeto com esse adolescente, tudo bem. Ele vai passar essa fase e vai sair lá na ponta, vai para a universidade ou vai ter seu primeiro emprego, sua primeira paixão... Porém, nós temos famílias desfuncionais, outros tipos de famílias.
Isso tudo sempre existiu, não é nenhuma novidade. Só que, de repente, as redes digitais, as conexões, as fontes de informação, tudo isso se multiplicou e acelerou numa velocidade tal que as pessoas perderam o rumo. Você não sabe para onde está indo, qual o sentido. E no Brasil faltam campanhas de saúde pública, educação e saúde. Isso, para mim, tinha que estar em outdoor no meio da rua, mas no Brasil estão fazendo outdoor de quê? De bets, bebidas alcoólicas...
Desconectar é um exercício familiar
Esse guia que lançamos este ano [contou com] grupos [organizados] com os próprios adolescentes. E a primeira recomendação das crianças e adolescentes para os adultos é ensinar pelo exemplo, ter coerência nas cobranças. Desconectar é um exercício familiar.
Bioquimicamente, a gente está falando de um neurotransmissor chamado dopamina. É o efeito dopaminérgico, a geração dopamina. É um mecanismo de recompensa. Você quer comer um chocolate? Tudo bem, vai te dar um enorme sabor na boca, é doce. E vai uma dopamina lá. Mas você não vai passar o dia inteiro, a semana inteira, comendo chocolate. É isso que a gente tem falado com os adolescentes: tem que desconectar. Tem que sair, caminhar, ir à praia. Tem que ter um equilíbrio nas suas atividades durante o dia, justamente para essa dopamina também diminuir. Porque se não a gente fica numa intoxicação dopaminérgica. E por isso aquelas alterações comportamentais que eu te falei: ansiedade, depressão... Só que as big techs estão aproveitando isso.
A Classificação Internacional de Doenças (CID) 11, atualizada em 2019, lista transtornos relacionados, por exemplo, a jogos perigosos, os famosos desafios que circulam por vídeos nas redes sociais. Que transtornos são esses?
Aí tem toda uma outra briga. Nós estamos falando da CID-11. Preste atenção que ela não tem [a doença] internet disorders. Tem gaming disorders. E tem o que nós chamamos de desafios perigosos. Isso já está bem classificado. Porém, a dependência [digital] em si ainda não foi classificada. O DSM [Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais, na sigla em inglês], que é o diagnóstico de saúde mental, quando entra na parte de transtornos, depressão, ansiedade, já menciona [a dependência digital], mas ainda não classificou [como doença]. Isso também é uma enorme discussão internacional.
As diversas redes sociais, mas especialmente o tiktok, youtube e instagram, que são as mais usadas por jovens, têm design e estratégias variadas para atrair e prender a atenção dos adolescentes, como indicação de outros conteúdos, ferramentas de gratificação como likes e comentários, além de mecanismos de recompensa mais diretos. Sem contar o estímulo da publicidade. Que tipo de sensações essas ferramentas despertam e que tipo de resposta emocional negativa elas podem gerar nos adolescentes?
Uma coisa é o algoritmo. Você vai digitar a palavra, sei lá, morango, e vai aparecer [um monte de conteúdo e anúncio relacionado]. O adolescente tem curiosidade e incertezas em relação às transformações corporais. Aí, se ele digitar ‘mama’ ou ‘pênis’, vai ser uma enxurrada [de conteúdos]. Se você digitar, por exemplo, Ana e Mia, [aparecem conteúdos de] anorexia e bulimia para as garotas que querem fazer dieta. Existem algumas palavras-chave que os adolescentes usam mais e que essas redes digitais poderiam tranquilamente bloquear. Elas têm mecanismos para bloquear ou denunciar, mas não usam. Fazem o contrário: os algoritmos multiplicam [esses conteúdos]. Eu não gosto dessa palavra, mas [isso gera] engajamento.
Isolamento é um dos transtornos mentais
O adolescente se sente acolhido. O garoto chega cansado, chateado com a prova de matemática e vai para a internet se distrair. Ele tem a curiosidade, é atraído e “se distrai”. E aí entra a dopamina, ele perde a noção do tempo, entra nos mecanismos de recompensa. Ele não sabe o que é ansiedade ou depressão. Eu atendi um adolescente de 17 anos que passou janeiro e fevereiro, com esse sol ardente do Rio de Janeiro, trancado no quarto, jogando. Isolamento é um dos transtornos mentais. O adolescente é atraído, se sente pertencendo àquela galera, que é aquele grupo de adolescentes “desconhecidos” com quem ele vai jogar online. E muitos dos desconhecidos são predadores e percebem que esse adolescente está vulnerável. E aí entra também a grana da publicidade, das grandes marcas e por aí vai.
O PL 2.628 foi aprovado ontem (20/08/2025) na Câmara, depois de uma grande mobilização social, e deverá voltar ao Senado. Ele tem sido comemorado como uma vitória na proteção das crianças e adolescentes e um avanço no sentido da regulação das plataformas digitais. Qual a sua avaliação sobre o texto do PL?
Como eu falei, faço parte desse grupão todo [de trabalho] e o texto está sendo agora analisado por pessoas que sabem muito melhor do que eu sobre isso. [Em nota publicada um dia após a aprovação do PL 2.628 pela Câmara, a SBP publicou uma nota pública em que afirma: "Entre os principais pontos do projeto aprovado – e que agora depende da validação no Senado Federal e de regulamentação posterior –, destacam-se a obrigação de que empresas de tecnologia adotem mecanismos para desestimular o uso compulsivo por crianças e adolescentes, a proibição do acesso a produtos e serviços que não foram desenvolvidos para esse público, a disponibilização de ferramentas de supervisão parental para restringir conteúdos e a limitação da comunicação direta entre adultos e menores de 18 anos. Medidas que representam um passo significativo para a proteção infantojuvenil no universo digital"].Eu acho que os pontos mais polêmicos são a história da idade limite [para uso de redes sociais], porque na Austrália, por exemplo, é 16 anos e aqui seria 12 anos, que é pelo Estatuto da Criança e Adolescente [ECA]. Outra coisa é que, a gente nem falou sobre isso, mas tem uns influenciadores malucos, com um milhão, um milhão e meio de seguidores, que falam coisas [absurdas] e ficam [acessíveis nas redes]. A gente quer que a rede tenha um prazo, por exemplo, de 48 horas, para bloquear [o influenciador] e deletar [o conteúdo].
Nós estamos também trabalhando toda a parte da classificação indicativa, que envolve a indicação livre, L, [de conteúdos] para crianças com menos de dez anos e outros para [menores de] 12, 14, 16 ou 18 anos. E agora vão classificar os vídeos também. E eu acho que [essa discussão] vai vir nesse projeto, que estão chamando de ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] digital.
Tem algum aspecto importante desse debate que eu não tenha perguntado e você queira comentar?
Voltando à questão da educação e saúde, [é importante mencionar] quais são os sinais importantes para se perceber no adolescente. Isolamento, transtornos de sono, queda do rendimento escolar, choros inexplicáveis – porque pode ser um caso de cyberbullying, por exemplo –, transtornos de alimentação. Isso tem que ser um alerta para os pais e, [identificando esses sinais], eles têm que procurar um profissional de saúde para fazer uma intervenção precoce. A gente está querendo falar de mais prevenção dos riscos e promoção da saúde. Desconecta, presta atenção no que seu filho está acessando, em com quem que ele está falando online, que desconhecido é esse. Saia para caminhar com seu filho. Essas são mensagens de saúde.
Essas são mensagens para as famílias. Mas e em relação às políticas públicas? Além da regulação das redes sociais e plataformas digitais, o que deve ser prioridade neste momento?
Precisamos também de dados epidemiológicos. A gente tem que ter estudo epidemiológico de tudo isso que está acontecendo, temos que ter indicadores, até para trabalhar essas políticas públicas
De política pública, eu quero campanha pública, outdoor público. Precisamos também de dados epidemiológicos. A gente tem que ter estudo epidemiológico de tudo isso que está acontecendo, temos que ter indicadores, até para trabalhar essas políticas públicas. A gente tem que ter um canal de denúncia nacional. E, principalmente, precisamos de trabalho intersetorial – isso eu acho que já conseguimos nesse governo, por exemplo, [na construção] do guia [sobre uso de dispositivos digitais para crianças e adolescentes]. Porque não adianta [enfrentar esse problema] no [Ministério dos] Direitos Humanos, se o pessoal da educação não trabalha o que está na escola, se o pessoal da saúde ainda está acordando... A gente tem que trabalhar na mesma velocidade. E com recursos, porque essa é [uma luta de] Davi contra Golias. Tem muito recurso nas big techs. Não é à toa que hoje em dia elas estão sendo usadas para promover de tudo: narrativas e redes de ódio, desinformação...