“É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Talvez pouca gente saiba, mas a lei que traz essa determinação – que precisou ser lembrada durante a recente pandemia de Covid-19, em meio ao crescimento do negacionismo contra a imunização –, é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o principal instrumento de proteção à população com até 18 anos no Brasil, que acaba de comemorar seu 35º aniversário. Promulgada no dia 13 de julho de 1990, a lei nº 8.069 é referência certa no debate de temas como o trabalho infantil, a garantia do direito à educação e a maioridade penal, mas, embora menos visível, ao longo dessas mais de três décadas de existência, ela tem sido também um importante suporte para a elaboração de políticas e para a organização dos serviços na área da saúde. “O ECA é uma ferramenta essencial na consolidação do direito à saúde, ao estabelecer esse direito como prioritário, integral e universal. Desde 1990, o Estatuto orienta políticas públicas e decisões judiciais que asseguram o acesso a serviços de saúde, a proteção contra negligência e violência, além de garantir escuta qualificada durante os atendimentos”, diz a coordenadora de Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens do Ministério da Saúde, Denise Ocampos. De acordo com a lei 8.069/1990, que institui o ECA, são consideradas crianças as pessoas até 12 anos incompletos e adolescentes até os 18. Já a Organização Mundial de Saúde (OMS) define a adolescência como o intervalo entre os dez e os 19 anos. Esta última caracterização é mais comumente adotada pelo Ministério da Saúde e outras instâncias de gestão do SUS no Brasil.
Entre os “direitos fundamentais” previstos no texto, o primeiro, citado no capítulo 1 do Estatuto, é o “direito à vida e à saúde”. E não ficou só no papel. “O ECA é uma política que conseguiu se entremear na estrutura dos serviços de saúde, no funcionamento da burocracia cotidiana do SUS [Sistema Único de Saúde]”, analisa Bianca Leandro, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz, que integra o grupo de pesquisa responsável pelo dossiê ‘Panorama da Situação de Saúde de Jovens Brasileiros’, publicado em 2022, com atualizações que vêm sendo feitas por meio de boletins epidemiológicos. E um dos principais exemplos desse papel do ECA no funcionamento do SUS, segundo ela, pode ser percebido pela análise dos dados sobre violência e morte dessa população.
O estudo, que é parte da Agenda Fiocruz Jovem, trabalhou com dados de 2016 a 2021, extraídos de diferentes sistemas de informação em saúde referentes à faixa etária que vai até os 29 anos, subdividida em três segmentos de idade. Apenas o primeiro, de 15 a 19 anos, que segundo Bianca Leandro representa cerca de 19% do total, envolve jovens considerados adolescentes, portanto protegidos pelo ECA. E são exatamente esses, de acordo com os dados do dossiê, que apresentam as maiores taxas de violência, com 397 casos para cada 100 mil habitantes, em todas as regiões do país. Claro que essa é uma má notícia, mas uma das considerações feitas pela pesquisa é que ela pode estar sinalizando um avanço em outra ponta: a hipótese é de que a diferença na taxa de ocorrência de violência, que entre os adolescentes chega a ser o dobro na comparação com os jovens um pouco mais velhos, pode indicar, na verdade, que existe uma subnotificação nas outras subfaixas etárias. E, nesse caso, o fato de essas informações sobre a violência sofrida pelos adolescentes chegarem ao Sistema Único de Saúde é, na avaliação de Bianca Leandro, um “resultado positivo de como o Estatuto está protegendo esses jovens”. “Se chega [um caso de violência] no SUS ou em qualquer estabelecimento de saúde, não só nos estabelecimentos públicos, ele tem que ser encaminhado para o Conselho Tutelar, para a polícia, tem que ser feita uma investigação e se dar a devida guarda para essa criança ou esse adolescente que sofreu esse dano, que teve esse direito violado”, explica a pesquisadora, que completa: “E hoje você tem uma rotina em que isso, de fato, acontece”. A coordenadora de Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens do Ministério da Saúde Denise Ocampos resume: “Os profissionais e serviços de saúde integram o Sistema de Garantia de Direitos [SGD], com papel estratégico na identificação e notificação de situações de violação, acolhimento, escuta protegida, emissão de laudos e articulação com outros setores, como Conselho Tutelar, Ministério Público, Defensoria Pública e assistência social. Também atuam na promoção e prevenção em saúde, com enfoque em direitos humanos”.
Bianca explica que os dados mais atuais que vêm sendo sistematizados pelos pesquisadores responsáveis pelo dossiê confirmam que os adolescentes continuam sendo o grupo mais violentado entre os jovens, mas ela alerta que é preciso “equilibrar” as conclusões a serem tiradas a partir daí exatamente em função da existência do ECA. “Talvez eles possam estar aparecendo porque, como estão em uma faixa etária de proteção institucional, a gente consegue identificar mais e notificar mais”, diz. A mesma ponderação aparece, inclusive, no texto do dossiê: “Importante destacar que o maior registro nesse agrupamento etário pelos serviços de saúde pode tanto estar relacionado ao maior risco de exposição à violência, como também a uma maior sensibilidade dos serviços de saúde em captar esses casos, tendo em vista que se trata de um agrupamento etário que engloba parte de jovens adolescentes, portanto protegidos pelo ECA”.
Violência contra adolescentes ainda é desafio
Apesar de ser a faixa etária que sofre mais violência entre os jovens, os adolescentes morrem menos do que aqueles que têm entre 20 e 29 anos. E aqui a pesquisa mostrou ainda uma boa notícia de verdade: a redução de quase 24% na taxa de mortalidade entre os adolescentes de 15 a 19 anos, embora esse seja um cenário oposto ao que ocorreu com as outras subfaixas, em que os jovens passaram a morrer mais. “Um dos fatores que a gente acredita que pode ter cooperado para essa redução, de passar a morrer menos jovens, são as normativas de proteção desse segmento etário, que tem como principal regulação o Estatuto da Criança e do Adolescente”, explica Bianca Leandro.
Ainda assim, permanecem desafios importantes no combate à violência e à morte dos adolescentes no Brasil. Embora não segmente por subfaixa etária, o dossiê mostra que, para os jovens até 29 anos, a taxa de mortalidade entre os homens é cerca de quatro vezes maior do que entre as mulheres. E tanto meninos quanto meninas, segundo Bianca, morrem, principalmente, por arma de fogo e arma branca, como faca. Chama atenção ainda nos dados o fato de, no caso das meninas, diferente dos meninos, a morte violenta acontecer também pelas mãos de outra pessoa. “Se for para matar, elas vão ser mortas não importa o meio. Se não tiver arma de fogo, tem a faca e, se não tiver a faca, tem as próprias mãos”, lamenta a pesquisadora.
O estudo mostra que as taxas de violência contra adolescentes são muito maiores entre meninas – mulheres entre 15 e 19 anos são 2,45 vezes mais vítimas do que homens. A maior parte refere-se à violência física, mas também estão incluídos aqui violência psicológica, sexual e situações de negligência e abandono. “A violência contra meninas adolescentes está relacionada a desigualdades de gênero, racismo, pobreza, exclusão social e normas culturais que naturalizam agressões. O SUS tem respondido com estratégias de promoção da saúde, educação em direitos, fortalecimento de vínculos, atenção psicossocial e articulação com outros setores. A formação de profissionais da atenção primária e a implementação das políticas [relacionadas a esses segmentos] são fundamentais para essa resposta”, analisa Ocampos.
Bianca Leandro, no entanto, ressalta que esse é o retrato da “violência que chega ao SUS”. Ela pondera que o fato de as meninas serem muito vítimas de violência física e sexual, que muitas vezes “demandam uma assistência médica”, talvez seja o que permita que esses dados sejam coletados pelos sistemas de informação em saúde. “Pode ser que as violências que acometem os homens jovens não cheguem ao SUS, que eles deem conta desse cuidado de outro jeito. Aí fica invisível”, diz.
A pedido da reportagem, a pesquisadora buscou no sistema de informação sobre mortalidade uma atualização das principais causas de óbito de adolescentes segmentadas por sexo. Em 2022 e 2023, as cinco maiores causas de morte (45% do total) entre homens de 15 a 19 anos, foram disparo por arma de fogo (em primeiro e terceiro lugar, variando pelo tipo de arma), suicídio (em segundo lugar no ranking), agressão por objeto cortante ou perfurante (em quarto) e intervenção legal, que envolve lesões causadas pela polícia ou outros agentes da lei e podem envolver diferentes tipos de armas. Já entre as meninas de 15 a 19 anos, no mesmo período, as causas de morte foram mais variadas, mas destacam-se o suicídio em primeiro lugar da lista e agressão por arma de fogo em segundo.
Saúde mental dos adolescentes
Como não existe um sistema de informação específico sobre saúde mental, os dados recolhidos pelo dossiê sobre esse aspecto da vida dos adolescentes e jovens baseou-se, em grande medida, em oficinas realizadas como parte da pesquisa. A má notícia é que os relatos apontam um aumento acentuado da demanda por atendimentos de saúde mental entre jovens depois da pandemia de Covid-19. Já o que talvez seja uma novidade positiva é que boa parte dessa demanda, cerca de 50%, é espontânea, ou seja, o próprio jovem ou adolescente procura uma unidade de atenção básica em busca de assistência para sua saúde mental.
Por outro lado, os sistemas de informação existentes permitem extrair dados sobre saúde mental no que diz respeito à internação. E, segundo Bianca Leandro, neste momento, já depois da publicação do dossiê, os pesquisadores envolvidos nessa empreitada têm conseguido “qualificar um pouquinho mais” essas informações, identificando, por exemplo, os tipos de transtornos que acometem meninos e meninas dessa faixa etária a ponto de eles precisarem ser hospitalizados. Entre as mulheres jovens, diz, as maiores causas de internação relativas à saúde mental são transtornos de humor, em especial, depressão e bipolaridade – e o percentual é ainda maior entre as adolescentes, de15 a 19 anos. “Como a gente está falando de internação, a gente está falando daquilo que é crise. Porque se alguém é internado é porque está em situação de crise. E não existe dado para monitorar o que não é crise [em saúde mental] no SUS. Então, a gente pode pensar que, se a crise é desse jeito, imagina o que não é...”, alerta. Já entre os meninos, a principal causa de internação relativa à saúde mental é o uso de substâncias psicoativas e, para o grupo adolescente, que tem entre 15 e 19 anos, o principal é o álcool. A proibição de venda de bebidas alcóolicas a crianças e adolescentes e de quaisquer tipos de propaganda ou outras formas de naturalização desse tipo de droga em publicações infanto-juvenis estão previstas no ECA.
Políticas para chamar de sua
O artigo 11 do ECA assegura “acesso integral às linhas de cuidado voltadas à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, observado o princípio da equidade no acesso a ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde”. Pensando em nível nacional hoje, a coordenadora de Atenção à Saúde de Adolescentes e Jovens do Ministério da Saúde, Denise Ocampos, destaca uma série de políticas e iniciativas que dialogam com o ECA. De forma mais direta, existem a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC), as Diretrizes Nacionais de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes em Conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória (PNAISARI) e o Programa Saúde na Escola. Mas ela cita também a Política Nacional de Atenção Básica (Pnab), a Linha de Cuidado para situações de violência, as redes de atenção à violência (RAPSV), de saúde sexual e reprodutiva, Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência (RPCD) e o Programa Nacional de Imunização (PNI). “Cuidado integral significa garantir acesso a ações de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação, respeitando o desenvolvimento físico, emocional, psicológico e social. As políticas nacionais para crianças e adolescentes visam promover equidade, prevenir violências e ampliar o acesso a serviços qualificados. O ECA dialoga diretamente com essa abordagem ao reconhecer esses segmentos como sujeitos de direitos com necessidades específicas”, diz Ocampos. “Quando você pensa no mecanismo da política, concretamente, no SUS, para o segmento de crianças e adolescentes conseguiu se constituir uma frente de cuidado importante”, completa a pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, ressaltando que os outros segmentos da juventude, dos 20 aos 29 anos, não conquistaram ainda políticas similares. E ela atribui essa diferença à existência do ECA. “Como se trata de um segmento populacional que precisa de proteção – e isso não está só nos princípios do SUS mas também num regulamento maior –, é como se houvesse uma pressão também para que dentro do sistema de saúde se criassem mecanismos para garantir essa proteção”, diz.
Os desafios, no entanto, vão se renovando. Ocampos reforça a importância de se “combater desigualdades regionais e sociais, garantir atenção integral e resolutiva na atenção primária, qualificar a escuta e o cuidado”, ressalta a necessidade de se “superar preconceitos e discriminações”, de se evitar a gravidez não intencional e combater a insegurança alimentar. Mas ela destaca também o desafio de se enfrentarem as “novas vulnerabilidades” que ameaçam crianças e adolescentes, a exemplo das “violências digitais” e dos “impactos das redes sociais na saúde mental”. “O ECA continua sendo uma ferramenta fundamental para orientar políticas públicas e proteger esses segmentos”, conclui.