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Entrevista: 
Almerico Lima

‘Quem defende a Educação Profissional emancipatória, integral e integrada, que tem relação com a formação humana e com o desenvolvimento socioeconômico ambiental do país, não pode jamais baixar a guarda’

Há algumas semanas, no final de agosto, o Brasil ganhou uma Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica. Essa é a novidade. Mas nem tanto. Instituído por decreto, o texto regulamenta um artigo de outra lei, nº 14.645, promulgada em 2023. E como não poderia deixar de ser, reflete os resultados da correlação de forças que se tinha naquele momento. Essa é a linha de argumentação que Almerico Lima, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e integrante da Rede de Ensino, Pesquisa e Extensão da Educação Profissional e Tecnológica Pública do estado (REDEEPT), desenvolve nesta entrevista. Segundo ele, nas comissões e grupos de trabalho promovidos para formular essa e outras iniciativas voltadas para esse segmento de ensino no âmbito do governo federal, tem prevalecido, inclusive numericamente, uma visão empresarial que aposta na expansão da oferta pelo setor privado, com recursos públicos. Nesse cenário, alerta o professor, perde espaço também o investimento na Educação Profissional integrada ao Ensino Médio, que foi o carro-chefe das políticas dessa área 20 anos atrás, nos primeiros governos do Partido dos Trabalhadores. Nesta conversa, que a segunda promovida pelo Portal EPSJV/Fiocruz sobre o tema, Almerico Lima analisa ainda o que deve ser prioridade no debate sobre o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Profissional e Tecnológica, instituído pelo mesmo decreto da Política, embora ainda esteja em construção.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 19/09/2025 11h32 - Atualizado em 19/09/2025 14h05

O texto da Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica (EPT) repete, em grande medida, aspectos que já estão previstos em outros marcos legais e regulatórios. No que se avança, então? Por que precisamos e o que devemos esperar de uma Política como essa?

Sempre é positivo que uma política pública seja regulamentada no sentido de garantir a sua perenidade e permitir à sociedade o monitoramento e a avaliação. Agora, essa Política, esse decreto que saiu agora recentemente, reflete, na verdade, a lei [nº 14.645] que foi aprovada em 2023. Foi um tanto conturbado o processo em que os debates aconteceram. Havia uma maioria com posição mais conservadora, mais pró-mercado dentro [do grupo] de elaboração da lei e isso se refletiu no decreto, porque ele não pode contrariar a lei. Então, eu acho que nós temos aí um problema de origem. O problema não é o decreto atual, não é a regulamentação da política nem a sua adoção: é a lei que o precedeu e que, de certa forma, faz um link com a contrarreforma do Ensino Médio. Na medida em que parte significativa da Educação Profissional no Brasil tem relação direta com o Ensino Médio, os cursos técnicos, sejam integrados ou concomitantes e mesmo integrados à EJA [Educação de Jovens e Adultos], são afetados pela contrarreforma de alguma maneira, em termos de seus conteúdos e dos seus tempos.

Agora, é óbvio que tem também o Plano Nacional de Educação [PNE] e o Sistema Nacional de Educação, duas grandes bandeiras que a gente está debatendo o tempo todo [e que trazem] a possibilidade de se trabalhar o aperfeiçoamento dessa Política no sentido de garantir algumas questões centrais. Quando você vê lá os princípios colocados, até tem uma certa confluência com o que tem se discutido nos últimos 30 anos. A grande questão é exatamente a execução disso. Nas comissões criadas [para discussão de políticas de Educação Profissional] há uma maioria do campo empresarial. E isso desbalanceia. Falam de tripartismo, mas não é o tripartismo que você vê, por exemplo, na área do trabalho, em que há um terço de governo, um terço de trabalhadores e um terço de empresários. Na verdade, você tem, nessas comissões constituídas, a participação, por exemplo, de entidades provedoras de Educação Profissional e a representação empresarial. Ora, o Sistema S é controlado pela área empresarial. Então, ele, na verdade, está duplamente representado. Isso, para mim, é um problema de equilíbrio. Nada contra que eles participem, mas todos têm que participar em condições iguais para o debate realmente acontecer. Isso se repete na comissão que está mapeando e discutindo a questão da oferta de Educação Profissional no país. É um pouco melhor na comissão do Catálogo [Nacional dos Cursos Técnicos], que tem uma participação maior das entidades provedoras e menos das empresariais, e tem as entidades reguladoras, como os conselhos de profissões regulamentadas. Mas, de qualquer maneira, sempre há um desequilíbrio em desfavor das pessoas que são os sujeitos da Educação Profissional: os estudantes e os trabalhadores.

E quais são, na sua avaliação, os problemas principais da lei 14.645, aprovada em 2023, que antecede e justifica esse decreto atual que instituiu a Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica?

[Está presente] sempre a possibilidade de usar o recurso público para entidades privadas. Essa é uma questão central: a possibilidade de você trabalhar na ampliação da oferta de Educação Profissional na área privada, financiada com recursos públicos. Isso é uma preocupação. Outra [preocupação] é aquela famosa questão do notório saber que reaparece, porque foi aprovado na contrarreforma [do Ensino Médio], e é mais forte na Educação Profissional pela ausência de docentes. Ao invés de pegar os bacharéis e dar a formação pedagógica, está-se propondo que, pelo conhecimento, pela formação, o bacharel possa, sem nenhum problema, assumir a função de docente de Educação Profissional.

Mas, como eu disse, a lei reflete a correlação de forças. E poderia ser muito pior. Houve avanços, mesmo tímidos, na discussão da contrarreforma, em relação à carga horária, etc. Mas é como se fosse uma compensação para os setores mais conservadores ter essa possibilidade de trabalhar a Educação Profissional, que é uma área que enche os olhos deles, tanto do ponto de vista do seu direcionamento e objetivos, quanto [da possibilidade] de eles proverem serviços a serem financiados com recursos públicos.

A lei 13.005/2014, do Plano Nacional de Educação que ainda está em vigor, falava em triplicar as matrículas de Educação Profissional, sendo pelo menos 50% delas no setor público. O texto do PNE que está tramitando no Congresso neste momento fala em expandir a EPT até chegar a 50% das matrículas do Ensino Médio e garantindo que pelo menos 45% dessa expansão, portanto menos do que na versão anterior, se dê no segmento público. A Política Nacional de EPT, no artigo 14, fala em “fomento à expansão da oferta de EPT por instituições públicas e privadas, consideradas as necessidades regionais”. Parece que tem uma inflexão nesse debate sobre o lugar do setor público. Qual a sua avaliação sobre isso?

Exatamente, eu concordo inteiramente. Inclusive, foi um grande debate, tanto na contrarreforma [do Ensino Médio], quanto na própria lei da Educação Profissional, essa questão do uso do recurso público e dos seus objetivos. Mas eu acho que tem uma inflexão que é mais complicada, ou tão complicada quanto, que é a questão do integrado. No PNE não há citação do nome ‘integrado’ [em referência ao Ensino Médio Integrado à Educação Profissional], fala-se de ‘articulado’. Articulado pode ser integrado ou concomitante. E, com concomitante, quem [mais] oferta é a área privada. Tem a ausência da palavra ‘integrado e da forma de articulação integrada, como prioridade.

No texto da Política também...

Na política também. Exatamente. Isso sinaliza que não será mais como foi de 2004 para cá. O programa Brasil Profissionalizado, [voltado para] os estados, tinha a meta de integrado. A oferta teria que ter a maioria de integrado. Não era proibido ter outra, mas o financiamento estava vinculado à oferta do [Ensino Médio] integrado [à Educação Profissional]. Isso desapareceu. Nesse programa ‘Juros por Educação’, também aparece a mesma situação: abriu-se espaço para que as entidades de nível superior privadas possam ofertar cursos técnicos financiados por esses recursos [públicos, que seriam da dívida dos estados com o governo federal]. E aí eu pergunto assim: não poderia ser para financiar e expandir as redes estaduais [de Educação Profissional]?

Todas essas ações se casam em uma vertente, que é a de garantir que parte da expansão da oferta de Educação Profissional seja pela área privada, não com seus investimentos e equipamentos, mas com recursos públicos

Todas essas ações se casam em uma vertente, que é a de garantir que parte da expansão [da oferta de Educação Profissional] seja pela área privada, não com seus investimentos e equipamentos, mas com recursos públicos. E, para ela ofertar [a Educação Profissional], o [Ensino Médio] integrado acaba sendo a bola da vez. Esse é um momento também de reformulação dos planos de curso dos IFs [Institutos Federais], e muita coisa está sendo discutida para que também, de certa forma, não haja essa ênfase que muitos IFs dão, corretamente, ao integrado. Então, eu sempre digo assim: o integrado está sob ameaça, está numa situação complicada, deixa de ser a melhor forma de oferta para ser mais uma oferta. Deixa de ser protagonista do processo. E está comprovado [que o integrado é a melhor forma de oferta da Educação Profissional], do ponto de vista do percurso que o estudante pode fazer, podendo incluir extensão e pesquisa, em comparação a um curso mais curto, ou um concomitante, em que você tem duas instituições ofertando, uma a parte de Educação Básica e outra a parte de Educação Profissional, com concepções, muitas vezes, totalmente diferentes. E aí não se consegue dar o resultado que um curso verdadeiramente integrado poderia fazer.

Você mencionou o Programa Brasil Profissionalizado, que incentivava a Educação Profissional nas redes estaduais e foi um marco dos primeiros governos Lula, assim como a criação da Rede EPCT e a expansão do número de Institutos Federais. É possível comparar a concepção e a estratégia de valorização da EPT naqueles governos e hoje? Há continuidade, coerência ou só mudança?

A rede pública tem uma diversidade de oferta muito maior do que a rede privada

Tanto a contrarreforma [do Ensino Médio] como a Lei de 2023 [nº 14.645] têm esse caráter conservador em relação ao que foi a lei que, em 2008, criou os IFs. Lá tinha todo um fundamento do significado dos IFs para a Educação Profissional e para o desenvolvimento do país. E tem também [na política daquele momento] a ênfase que foi dada nas redes públicas estaduais. Esse foi um grande avanço conceitual, porque você diz que vai expandir na área pública e com o objetivo de desenvolvimento científico-tecnológico do país. Ou seja, não está atrelado ao mercado estrito senso, embora o mercado faça parte desse processo. Interiorizamos essa rede, mais jovens de vários cantos do país tiveram acesso à educação de qualidade, e também diversificamos a oferta de cursos, porque a rede pública tem uma diversidade de oferta muito maior do que a rede privada. Por exemplo, você não tem oferta na área de artes na rede privada. É muito raro, muito difícil. Há determinadas áreas em que a oferta pública é praticamente única.

Havia essa visão estratégica de ter duas redes públicas complementares e, claro, dialogando com a rede privada para que não houvesse superposição. Ou seja, cobrir o território nacional com uma matriz de formação geral era a grande estratégia, na minha opinião, das políticas dos primeiros governos [do Partido dos Trabalhadores]. Quando vem o Pronatec [Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego], ele faz uma inflexão. A primeira versão do Pronatec tinha uma vinculação com o Ensino Médio, com a elevação da escolaridade. Mas a segunda versão já aponta para um número muito grande de cursos subsequentes e também para cursos de qualificação. Os cursos de qualificação passam a ser muito mais incentivados do que foram durante o período do Brasil Profissionalizado. Lembrando que o Brasil Profissionalizado foi incorporado ao Proantec e a expansão [da Rede Federal] também. O Pronatec não é só a bolsa-formação, bolsa-estudante, é um conjunto de ações que foi colocando tudo na mesma cesta, mas o protagonismo ficou com as bolsas-formação, com a oferta de qualificação e de concomitância.

Então, fazendo a comparação e vendo os números do Brasil Profissionalizado, o fomento para as redes estaduais, eu fico muito decepcionado porque, agora que as redes cresceram, eu esperava que elas tivessem um fomento muito maior. Mas isso não é só responsabilidade do MEC [Ministério da Educação], é também do Consed [Conselho Nacional dos Secretários de Educação]. O Consed não tem tido esse olhar que as outras gestões do Conselho tiveram de protagonizar a rede pública estadual de Educação Profissional. Pelo contrário, o que acontece é muito essa ideia de que vamos ter recursos para contratar entidades privadas para fazer a Educação Profissional. E aí junta isso com a Educação em Tempo Integral, que é outra discussão: é positiva, é importante, mas tem que ter conteúdo e metodologia para tratar isso. A Educação Profissional tem sido parte da Educação em Tempo Integral, mas sem a discussão filosófica e sociológica do que significa o integral.

A visão que se teve da criação dos IFs até a adoção da segunda versão do Pronatec era muito ousada

Eu acho que a visão que se teve da criação dos IFs até a adoção da segunda versão do Pronatec era muito ousada. Foi tão ousada que hoje você tem duas grandes redes nacionais, as estaduais e a federal, que, [em relação à] oferta de matrículas, não só são numericamente maiores, como são mais diversas e mais capilares. Se tirar a rede pública, você só tem oferta privada nas grandes cidades e em algumas pequenas. Já as redes públicas estão em mais de 3 mil municípios do país. E, como eu disse, vários cursos não são ofertados [pela rede privada] porque não têm, segundo eles, ligação com o mercado. Mas a gente tem que imaginar que a oferta pública tem que analisar também as demandas das públicas sociais. Então, se eu amplio saúde, cultura, saneamento, a questão ambiental, tenho que ter cursos nessas áreas. Porque estou pensando no desenvolvimento do país, e não somente naquela demanda imediata do mercado de uma empresa, de uma indústria de construção, de um porto. Eu estou pensando em uma coisa muito mais a longo prazo.

A Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica que acaba de ser lançada vem no contexto de outras iniciativas voltadas para a Educação Profissional, inclusive algumas que você já citou, como o Programa Juro por Educação, que é parte do Programa de Pleno Pagamento da Dívida dos Estados (Propag), além da Escola em Tempo Integral e da própria Reforma do Ensino Médio, que tem um itinerário só para a formação profissional. Além do ‘Pé de Meia’, que não é apenas para EPT, mas também inclui os estudantes desse segmento. Como você avalia a integração e a coerência interna dessas iniciativas? Como a Política dialoga com eles?

O Pé de Meia eu considero que é uma iniciativa extremamente válida. Nós precisamos que nossos estudantes permaneçam na escola. Acessem primeiro, depois permaneçam e concluam os seus cursos. E o Pé de Meia é uma ação de acesso estudantil. Dentro dos IFs, esse debate é bem aprofundado. Vários IFs têm bolsa para quilombola, para indígena, têm vários movimentos. Nas redes estaduais, não tem. Se tem, é muito pouco. Então, precisaria ter a profundidade de discutir esse mecanismo. O Pé de Meia, como cobre o Ensino Médio, abrange também o integrado [à Educação Profissional]. Então, esse jovem também está sendo beneficiado. Como eu disse, ele é positivo, mas é insuficiente. Precisa-se discutir uma política nacional de assistência aos estudantes que envolva outras coisas: saúde mental, acesso ao transporte...

Eu continuo defendendo a ideia de que a Educação Profissional tem que ser integral e integrada. Continuo defendendo que seja executada principalmente pela rede pública, com recursos públicos. E que possa atingir o maior número de estudantes possíveis no Brasil como um todo

[Sobre as outras iniciativas], não vou dizer que é algo de caso pensado, mas como cada uma dessas ações tem uma pressão social e um equilíbrio de forças que tem que ser considerado, por mais bem intencionadas que sejam, elas acabam, de alguma maneira, caminhando para esse rio. É um riacho que vai para o rio. E qual é o rio? O de carregar recursos públicos para que a área privada oferte Educação Profissional. Então, para mim, [isso vale para todos], exceto o Pé de Meia. Aliás, eu vi uma representante da rede privada reivindicando que o Pé de Meia vá também para os estudantes da área privada. Para você ver até que ponto se chegou... Mesmo o Pé de Meia sendo positivo, querem puxar para o lado também da área privada. O grande debate é esse: para que Educação Profissional? E quem financia essa Educação Profissional? Eu continuo defendendo a ideia de que a Educação Profissional tem que ser integral e integrada. Integral no sentido não do tempo [que o estudante passa na escola], mas no sentido da consistência da formação, que tem que ser omnilateral. Continuo defendendo que seja executada principalmente pela [rede] pública, com recursos públicos. E que possa atingir o maior número de estudantes possíveis no Brasil como um todo. Não só nos grandes centros, nas áreas que sejam eleitas pelo empresariado como as principais, relegando os demais jovens e adolescentes à ocupação de baixa qualificação, com cursos de curta duração. Não dá para aceitar isso.

Segundo o último relatório da OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, lançado semana passada, as matrículas em Educação Profissional e Tecnológica no Brasil correspondem a 14% do total do Ensino Médio, enquanto a média nos países da OCDE é de 44%. A comparação do Brasil com os países da OCDE em relação à EPT é antiga e frequente. A expansão da EPT é mesmo uma necessidade para o país?

Eu acho que é preciso expandir sim, mas o problema todo é: em direção a quê? Que Educação Profissional vai ser ofertada, do ponto de vista da relação com o desenvolvimento socioeconômico e ambiental do país? Ou seja, não é só o econômico, mas o socioeconômico e ambiental. Você tem que ter esse objetivo em mente. E atendendo as mais diversas necessidades, principalmente das políticas sociais.

Vou dar um exemplo. Havia muita discussão sobre o apagão de mão de obra. Sim, porque, no mercado aquecido, o trabalhador passa a não pegar determinados serviços com salários baixos. Se você aumenta o salário, não vai ter esse apagão. Outra coisa: a escola tem um tempo diferente do tempo da empresa.
Então, no caso da Educação Profissional de nível médio, a formação tem que ser a mais generalizada possível. A gente não está formando para uma empresa, mas para um nicho de ocupação. É como me disse uma grande empresa do setor eólico: ‘Eu não quero que você forme ninguém em energia eólica. Eu quero que você forme mecânicos de boa qualidade. Quem vai formar em energia e na área eólica somos nós. Porque o nosso segredo é o nosso negócio. É o nosso segredo empresarial’. E isso está correto. Mas muitos empresários pensam diferente. Pensam que você tem que formar para a empresa e, com isso, minimizam toda a formação integral do sujeito. Esse é o debate que precisa acontecer.

Certas pessoas pensam que estamos jogando dinheiro fora porque investimos no técnico e ele não está prestes a exercer uma função de técnico. Eu acho que não. Acho que estamos melhorando a qualidade do Ensino Superior e isso é positivo no país

Eu acho também que a gente tem que analisar muito bem [os dados da] OCDE. Vários países da OCDE não têm esse percentual [de estudantes na Educação Profissional]. Essa é uma média. Então, tem que analisar país por país. A outra coisa é a própria estrutura jurídica de cada país, que tem uma grande diferença. E o tamanho deles. Por vezes, a gente faz essas comparações, mas o país tem uma dimensão continental. Eu defendo o crescimento, o percentual maior [de oferta de Educação Profissional] mas acho que a gente tem que analisar como esse processo se dá no Brasil. Porque não tem que ter somente o parâmetro da OCDE. E, claro, melhores salários, melhores condições de trabalho, vão ajudar que mais jovens se interessem por fazer o curso técnico. Porque também tem uma dimensão subjetiva, que é a supervalorização do Ensino Superior. Isso também é um elemento que, às vezes, faz com que o jovem não queira fazer o curso técnico, mas queira fazer o curso superior, porque o Ensino Médio lhe garante isso. Nós temos discutido muito já essas trajetórias educacionais, que a gente chama de trajetórias integradas – a gente chama até de verticalização, mas é um termo que teve tanta crítica que eu achei melhor mudar para trajetórias –, que é o que acontece quando você faz um curso de técnico de enfermagem, gosta e resolve fazer o curso superior em enfermagem. E esse processo espontâneo, de fazer essa transição do [Ensino] Médio ao Superior, é algo positivo, não é negativo. Certas pessoas pensam que estamos jogando dinheiro fora porque investimos no técnico e ele não está prestes a exercer uma função de técnico. Eu acho que não. Acho que estamos melhorando a qualidade do Ensino Superior e isso é positivo no país. Essa é outra análise que não é feita: quantos estudantes do curso técnico foram fazer curso superior na mesma área e com isso criam uma trajetória educacional virtuosa e positiva. Com isso você garante, inclusive, a conclusão no Ensino Superior, que hoje é um problema.

Na Educação Profissional, agora mesmo foi apresentado no Congresso, [a proposta de um programa] de livro didático da Educação Profissional, que eu acho que é outra coisa extremamente positiva. Do mesmo jeito que tem no Ensino Médio [o PNLD, Programa Nacional do Livro Didático], você teria o da Educação Profissional, que geralmente são livros caros, a que as pessoas não têm acesso. E eu tive essa experiência. Quando era [Superintendente de Educação Profissional na Secretaria de Educação] da Bahia, nós compramos livros e demos para os estudantes durante dois anos. Fizemos uma comissão, a gente recebia as obras, três pessoas tinham que ler e, se tivesse dois votos [favoráveis], você adotava, se tivesse um voto, era eliminado. E depois fazia o processo licitatório para a aquisição do material. E isso foi ótimo, os resultados foram fantásticos, os olhos brilhavam, principalmente porque a gente pegou obras mais genéricas nos primeiros anos. Então, o pessoal que estava começando tinha um livro de iniciação: [por exemplo], a iniciação à informática dava a ele todo um horizonte para continuar depois. E era o livro dele, não era da escola, da biblioteca, era como um livro didático que a gente usa no Ensino Médio. Eu acho [a proposta de um programa de livro didático de Educação Profissional] interessante mas, mais uma vez, tem que estar casada com a concepção, não pode ser apenas para vender livro, tem que ser para que o livro seja utilizado da forma adequada e melhore tanto a conclusão como a permanência na escola.

Mas nesse esforço de expansão da Educação Profissional, para se ter capilaridade, a prioridade devem ser as redes estaduais? E qual é o papel da Rede Federal nesse processo?

Olha, se você pegar a série histórica de crescimento desde 2007, que é quando a gente começa a ter os dados mais precisos do censo do Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira], vai verificar o crescimento bastante significativo das redes estaduais, [tanto que] hoje, somando as duas redes [públicas], você tem uma maioria em relação à privada. Mas as redes estaduais são mais do que o dobro da federal. E elas são mais capilares. Uma não é melhor que a outra, elas são diferentes. Eu advogo que são complementares, não devem competir. Então, se posso ofertar um curso aqui, não tem sentido que a rede estadual oferte o mesmo curso. A ideia é complementar [de modo] que o IF, que tem uma estrutura melhor, fique com os cursos mais tecnológicos, vamos dizer assim, e as redes estaduais fiquem com os cursos nas áreas de gestão de negócios e saúde, por exemplo. Eu acho que as redes estaduais têm que ser fomentadas como foram no [programa] Brasil Profissionalizado. O Pronatec deu uma refreada, porque se passou muito mais a administrar os negócios do Pronatec do que a organizar uma rede de fato funcionando. Tem redes [estaduais] que existem até hoje, mas, por exemplo, não existe mais um fórum de gestores estaduais de Educação Profissional. O Consed não considera isso importante, não considera que ter um espaço para debater a especificidade estadual seja algo positivo. Com essas incursões da área privada na oferta de [Educação Profissional] e, ainda mais, com o recurso dos juros [da dívida dos estados com o governo federal, pelo programa Juro por Educação], eu acho que a tendência é que você enfraqueça as redes estaduais. As redes estaduais se fortalecem se você estabelecer ofertas não temporárias, mas permanentes de Educação Profissional baseadas nas demandas que aquele estado tem. Todo estado tem necessidade, por exemplo, na área de agropecuária, de agroecologia, na área ambiental, cultural, na área de saúde. Por exemplo, Bahia, Ceará, Pernambuco e Piauí deram saldos incríveis na Educação Profissional do Brasil, passaram na frente de vários estados do Sul no sentido da sua oferta. Por conta de quê? Do Brasil Profissionalizado, mas também da decisão política de cada estado, porque o Brasil Profissionalizado dava apenas a construção [das escolas] e alguns insumos, mas o custeio da estrutura, pessoal, a água, a luz, etc., o Estado tinha que fazer. Então, se o estado não tiver uma vontade política e achar que é mais interessante não se preocupar com isso e deixar que o setor privado ofereça o curso, você não vai ter a rede estadual fortalecida. Ao contrário, você desarticula a rede estadual.

A medida mais concreta desse decreto que instituiu a Política parece ser a criação do SINAEPT, o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Profissional e Tecnológica. Queria sua avaliação sobre isso. É necessário um sistema próprio de avaliação da EPT? Como se deu essa demanda e a discussão desse desenho? O que se deve esperar dele?

Tudo depende das correlações de forças. Em 2014, 2015, mais ou menos, antes do golpe, nós estávamos debatendo o Sistema Nacional de Avaliação [da Educação Profissional]. Estavam lá as redes estaduais, o Sistema S e a Rede Federal discutindo o sistema de avaliação, que tem nuances específicas. Mas não era um sistema de avaliação semelhante ao que se faz com o Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica]. Esse era o grande debate. O Sistema S apresentava um sistema de avaliação próprio e, de certa forma, queria que ele também funcionasse para os demais. Do mesmo modo, ele não aceitava a proposta que estava sendo construída pelas [redes] públicas. Tinha essa tensão.

Um estudo de egressos não pode apenas ser avaliar se o estudante está empregado na área ou não

Com o golpe, tudo se desarticulou. E [agora] veio a discussão de novo da questão da qualidade, que é muito importante, e está na nova proposta do PNE. Aí tem que ver, mais uma vez, a correlação de forças. Qual é o critério para avaliar a qualidade? O critério é quem [entre os estudantes formados] se empregou? Tem uma série de elementos para se discutir, que vai depender muito de que sistema vai se fazer: se é um sistema de avaliação excludente, baseado em uma visão só mercadológica, ou se é um sistema que vai trabalhar com as diversas variáveis. Porque muitas vezes, [o estudante] pode até não atuar na área [em que se formou], mas [aquele curso de Educação Profissional] mudou a vida dele. Ele resolveu fazer um curso superior, montar um negócio ou até mudar de área, mas aqueles conhecimentos que ele teve, com uma visão integrada e integral da formação do ser humano, lhe deu uma orientação para a vida inteira. Então, um estudo de egressos não pode apenas ser [avaliar se o estudante] está empregado na área ou não. Tem que ser uma análise muito mais profunda. [O curso] mexeu na economia e na estrutura da cidade? Eu fui banca de algumas teses e dissertações aqui na Bahia em que o pessoal mostrou como o território foi afetado pela existência de técnicos de nível médio, que antes eram importados. Você tinha prefeituras que não tinham sequer um técnico de nível médio e passaram a ter quase a totalidade de trabalhadores técnicos. Isso é uma evolução, do ponto de vista da gestão, muito grande. E esse é um impacto importante que tem que ser pensado. Então, eu defendo o sistema de avaliação, mas ele tem que ser muito debatido em relação aos seus critérios e tem também que ter um olhar regional e territorial. Eu não posso ter a mesma avaliação massiva e idêntica de um curso que é dado no semiárido do Nordeste com o curso que é dado no meio da Amazônia. Tem que ter alguns parâmetros que balizem também a territorialidade.

Você está dizendo como deveria ser o SINAEPT. Mas você lembrou também de um processo de discussão que começou no governo Dilma Rousseff e foi interrompido pelo impeachment. E agora? Você tem notícia de como está acontecendo esse processo de discussão e construção do Sistema de Avaliação da Educação Profissional neste momento? Você está participando?

Não, não tenho [informações sobre o processo]. E não estou participando. Mas suspeito que, seguindo a mesma linha, você tenha um protagonismo dessa visão mais mercadológica.

Por fim, eu queria perguntar sobre o Sistema Nacional de Educação (SNE), ao qual você já fez referência, que acaba de ser aprovado na Câmara e está agora em discussão no Senado. Queria saber a sua avaliação sobre o texto aprovado e se faz diferença para a Educação Profissional e Tecnológica a existência de um Sistema Nacional de Educação.

Faz, faz sim. Não é que seja uma solução mágica nem nada, mas desde a aprovação da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] está previsto que o país terá um Sistema Nacional de Educação. Porque hoje você tem três grandes sistemas, o federal, os estaduais e os municipais, que são autônomos entre si. Tem o regime de colaboração, que muita gente fala, mas muita gente não faz. O sistema, na visão positiva, daria essa possibilidade de articular os entes federados em uma ação conjunta. Mas para isso acontecer, você teria que incluir também a área privada, para não distorcer todo o processo e ter competições. Na verdade, teria que ter quem articulasse o próprio PNE. O PNE é uma lista de metas, mas você teria que ter um sistema que fizesse esse acompanhamento, inclusive, das avaliações. A CNTE [Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação] tem análise sobre isso, outros setores fizeram análises também, apontando quais são os problemas que o [texto aprovado na Câmara sobre o] Sistema [Nacional de Educação] tem. É um avanço, mas ainda é insuficiente. E dependendo de como for implementado, pode causar alguns prejuízos.

Tem algum aspecto desse tema relativo à Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica que eu não tenha perguntado mas que você queira comentar?

Eu só posso dizer o seguinte: que quem defende a Educação Profissional emancipatória, integral e integrada, que tem uma relação com a formação humana e com o desenvolvimento socioeconômico ambiental do país, não pode jamais baixar a guarda nem desistir diante de tantas coisas que estão acontecendo. Ao contrário, tem que estar sempre apontando, debatendo, discutindo e incomodando. Não pode ficar calado nesse processo.

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O número de estudantes do Ensino Médio que cursam também Educação Profissional no Brasil quase dobrou entre 2013 e 2023 mas, ainda assim, é muito inferior à média dos países da OCDE, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico: 14% contra 44%. Os números, que se referem a 2024, são do mais recente relatório ‘Education at a Glance’, produzido anualmente pela OCDE, que teve sua mais nova versão divulgada nesta terça-feira (9/09). Os dados são atualizados, mas a comparação é antiga, quase um “senso comum” do debate sobre esse segmento educacional, como caracteriza Luzia Mota, reitora do Instituto Federal da Bahia (IFBA) e coordenadora da Câmara de Ensino do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif). A questão, diz ela, é que a demanda por expansão da Educação Profissional no país não pode perder de vista o debate sobre a qualidade dessa oferta, o que requer investimento e um modelo de formação integral que, por exemplo, vá além do foco no mercado de trabalho. Esse foi o olhar que, segundo Mota, o conselho que reúne reitores da mais reconhecida rede de Educação Profissional no país tentou pautar também na Política Nacional de Educação Profissional e Tecnológica (EPT), instituída por decreto presidencial (nº 12.603) no último dia 28 de agosto. Construído com a contribuição de um Grupo de Trabalho (GT) do qual ela participou, o texto, de fato, inclui, entre os seus objetivos, o fomento à “expansão e à ampliação das instituições e da oferta da educação profissional e tecnológica”, ao mesmo tempo em que afirma que a Política “tem como finalidade a formação integral e cidadã da população”. Embora apresente também contradições – como o fato de praticamente indiferenciar as redes públicas e privadas como estratégia de expansão da EPT –, a Política tem, na avaliação de Mota, a importância de “institucionalizar” diretrizes para esse segmento nas diferentes instituições e redes de ensino. Nesta entrevista, ela explica ainda sobre a atuação dos Institutos Federais para o fortalecimento da Educação Profissional nas redes estaduais, critica a falta de investimento federal na última década e fala sobre a grande novidade trazida pela Política recém-lançada: a criação do Sistema Nacional de Avaliação da EPT, que será elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep.
Na última semana de novembro o programa federal Pé de Meia, que distribui incentivos financeiros a estudantes de baixa renda do ensino médio na rede pública, completou um ano. Apresentado inicialmente por uma Medida Provisória de 27 de novembro de 2023, o Pé de Meia virou lei (nº 14.818/24) em janeiro deste ano, tendo como objetivo reduzir as taxas de evasão escolar nessa etapa de ensino. Nessa entrevista, Antônio Almerico Lima, professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e ex-Superintendente de Educação Profissional da Secretaria de Educação do Estado da Bahia, analisa os possíveis impactos do programa sobre os índices de evasão na educação profissional pública e discute os avanços e limites das políticas voltadas à assistência estudantil nesse segmento.
Especialistas projetam os possíveis impactos do programa que completa um ano em novembro, e discutem os avanços e limites das principais políticas voltadas à assistência estudantil na Educação Profissional no país
‘Revoga a Reforma ou paramos o Brasil’. O grito ecoava por quase todo o auditório em que acontecia a edição extraordinária da Conferência Nacional de Educação, em janeiro deste ano, mas era fácil perceber que o foco da empolgação – e da indignação – eram grupos de jovens que se manifestavam em defesa da escola pública, vestindo camisas e hasteando bandeiras da Ubes, a União Brasileira de Estudantes Secundaristas. A briga, naquele momento, era contra o Novo Ensino Médio (NEM), que mostrava resultados preocupantes, denunciados até nas páginas dos jornais. Essa continua sendo a prioridade da Ubes, como afirma nesta entrevista Hugo Silva, estudante do Instituto Federal de São Paulo, que acaba de tomar posse como novo presidente da entidade. Mas o cenário mudou: agora a representação nacional dos estudantes entende que, com a nova versão do NEM, que acaba de ser sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, chegou-se o mais perto possível da revogação da Reforma que começou em 2016, apesar de ainda serem necessárias mudanças. Mas, tanto para garantir a melhoria do Ensino Médio quanto para incrementar a Educação Profissional e facilitar o acesso dos jovens da classe trabalhadora ao ensino superior, ele lembra que a pauta da Ubes se completa com a luta pela ampliação do orçamento educacional e pela valorização da escola pública.
Acaba de ser divulgada na Comissão de Educação do Senado a proposta de substitutivo do PL 5.230, que altera o Novo Ensino Médio. Entenda, nesta matéria, os impactos que o projeto original tem sobre a formação técnica
Conae teve pouco debate e propostas sobre esse segmento. Na EJA, articulação com cursos técnicos e de qualificação está na mira das entidades empresariais
Foi como parte do debate sobre a Reforma do Ensino Médio – a grande ‘vilã’ do encontro que reuniu mais de 2 mil pessoas em Brasília – que a Educação Profissional provavelmente mais apareceu nos debates da Conferência Nacional da Educação (Conae) 2024. Se, por um lado, isso reforça a concepção de quem há muito tempo defende que esse segmento precisa ser entendido e desenvolvido como parte da Educação Básica, por outro é inegável que o documento final do evento, de fato, tem pouco conteúdo específico sobre a formação técnica de jovens, adultos e trabalhadores. Foi para tentar entender esse cenário que a Poli conversou com a professora Carmen Moraes, da Universidade de São Paulo (USP), durante a Conae, realizada entre 28 e 30 de janeiro. Nesta rápida entrevista, ela relembra um pouco da história de separação entre a Educação Profissional e o que se considerava Educação ‘de verdade’ e analisa os efeitos do Novo Ensino Médio sobre essa formação.
Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica completa 15 anos em 2023 e mantêm o desafio de consolidar sua expansão
Pesquisadores discutem estratégias de financiamento público de vagas em instituições privadas, como já acontece no ensino superior.