Essa é a segunda versão de uma pesquisa do IBGE sobre trabalhadores de plataformas. A primeira trouxe dados relativos a 2022. Por que esse recorte e qual a importância de se ter esses dados?
A pesquisa tem cumprido uma lacuna que existia [no Brasil] e existe em boa parte dos países para captar esse novo tipo de trabalho que foi surgindo com as empresas de plataforma digital e que significaram mudanças muito significativas. Alguns autores, como Ricardo Antunes, falam em um processo de ‘uberização’ do mercado de trabalho. Eu não afirmaria nesses termos, porque acho que ainda é uma parcela crescente, como a pesquisa mostra: é importante, mas ainda significa um ponto menos de 2% do total das ocupações. Mas, sem dúvida, ela é muito visível no aspecto público.
Essas empresas conseguem organizar um negócio que se valorizou imensamente na bolsa de valores e no mercado financeiro em geral, sem que tenham mobilizado grande capital, porque o principal capital para a operacionalização desse tipo de atividade é quem exerce a atividade
A novidade é a capacidade das plataformas de arregimentar um conjunto muito expressivo de trabalhadores sem que tenham nenhuma responsabilidade sobre eles. Inclusive, as empresas [de plataformas] que se viabilizam são bastante oligopolizadas, têm controle de mercado, são empresas supergrandes que vão ocupando uma parcela muito importante do mercado. E essas empresas conseguem organizar um negócio que se valorizou imensamente na bolsa de valores e no mercado financeiro em geral, sem que tenham mobilizado grande capital, porque o principal capital para a operacionalização desse tipo de atividade é quem exerce a atividade – o motorista de passageiros, o entregador – e o que ele precisa mobilizar – o carro, o veículo, a moto, a internet, o celular... Então, ele é quem tem que arcar com os próprios equipamentos para o seu trabalho. Ou seja, a novidade, do ponto de vista da regulação, é a possibilidade de se contratar um conjunto grande de trabalhadores sem ter nenhuma responsabilidade sobre eles. Isso chama atenção: pela novidade do ponto de vista do tipo de atividade exercida, pela ausência de proteção social total dessas pessoas e também pela forma como esse negócio se organiza com o processo de financeirização.
Então, considerando que esses são aspectos que trazem novidade ao mercado do trabalho, é fundamental você captar a dimensão dessa realidade. E aí eu acho que a pesquisa do IBGE foi bastante oportuna, porque, de fato, ela consegue caracterizar o perfil sociodemográfico desses trabalhadores – renda, sexo, escolaridade, raça, quantidade – e as suas condições de trabalho – salário, rendimento, jornada, proteção social, informalidade, contribuição previdenciária –, como também identifica que de fato esse negócio é organizado por empresas, não é um trabalho autônomo em que a pessoa tem liberdade, porque quem define o cliente, como o serviço vai ser prestado e a forma de remuneração é a empresa a que a pessoa está subordinada. Essa situação é fundamental de ser diagnosticada porque existe um debate no mundo inteiro sobre como se regulamenta esse tipo de atividade econômica. Nós temos três posições para esse tipo de debate que estão sendo disputadas. A primeira posição do debate para as políticas públicas é a de reconhecer esses trabalhadores como assalariados e que, portanto, eles estariam sujeitos aos direitos trabalhistas e ao sistema de assalariamento, como qualquer trabalhador. Teriam direito a férias remuneradas, décimo terceiro [salário], licença em caso de adoecimento, maternidade e acidente, auxílio, aposentadoria, todos os direitos colocados para os demais trabalhadores. A outra posição do debate, que é defendida pelas empresas, é a de que esse é um trabalho autônomo e elas são simplesmente intermediadoras entre o cliente e quem oferece o serviço, e, portanto, não é uma relação de emprego, elas não têm responsabilidade sobre isso, estão simplesmente facilitando trocas. O que a pesquisa exatamente mostra é que isso não é verdade. Mas essa outra posição é a que, na prática, ainda continua prevalecendo. E a terceira posição existente, que de certa forma foi [adotada pelo] próprio governo, é a do PL [Projeto de Lei] 12, que foi um projeto desastroso, de todos os pontos de vista. É uma posição que reconhece [o trabalho por aplicativos] como uma situação especial de trabalho e faz uma regulamentação diferenciada, garantindo alguma proteção previdenciária e [direito à] organização coletiva, mas sem reconhecer o vínculo de emprego. Ou seja, é uma regulamentação especial para esse tipo de atividade. Esse é o debate que está colocado, tanto no poder executivo, quanto no legislativo e no judiciário – há um caso concreto que está em análise no Supremo Tribunal Federal, com repercussão geral, sobre a natureza de vínculo entre um motorista de passageiro e a empresa Uber.
Então, a pesquisa [do IBGE] é fundamental, primeiro, para a sociedade conhecer a situação desse tipo de trabalho; segundo, para orientar o debate sobre a forma de regulamentação desse tipo de atividade; e, em terceiro lugar, é fundamental para o estabelecimento de políticas públicas que sejam capazes de lidar com os problemas oriundos desse tipo de atividade que ganhou expressão e visibilidade nos grandes centros urbanos. Fomos nós, a Unicamp e o Ministério Público [do Trabalho], que propusemos ao IBGE e ajudamos a viabilizar essa pesquisa. O IBGE, já em 2021, acolheu essa proposta e agora essa pesquisa, [como parte] da Pnad Contínua, vai ser aplicada todo terceiro trimestre de cada ano. Já foram coletados os dados de 2025, que vão ser apresentados no ano que vem. E ano que vem já tem novidades do ponto de vista do questionário: a principal [mudança] é que vai ser incluído o trabalho [por aplicativos como] secundário, não só como trabalho principal. Vamos ter uma continuidade para acompanhar isso. E a repercussão muito intensa que a pesquisa teve, com todos os grandes meios de comunicação e redes sociais comentando os resultados, mostra o acerto do IBGE de realizar um questionário específico dessa situação, que é uma novidade recente no mundo do trabalho.
O estudo atual do IBGE, referente a 2024, mostra um crescimento do número de trabalhadores plataformizados em relação a 2022, mas, ainda assim, como você mesmo comentou, eles representam apenas 1,9% do total no mercado de trabalho brasileiro – eram 1,5% em 2022. Parece pouco, mas imagino que devam ser considerados, nesse caso, elementos como o intervalo de tempo em que temos trabalho plataformizado no Brasil e a taxa de crescimento. É pouco, é muito, é o esperado? O que esses números nos dizem?
É verdade que é pouco expressivo, mas o que a pesquisa mostra é que esse tipo de trabalho vai se espalhando para outros setores econômicos. Tanto que o que mais cresceu entre 2022 e 2024 foi [o trabalho plataformizado] na prestação de serviços ou profissionais, e há um leque muito amplo de situações que essa variável capta, desde a área de saúde até educação e [trabalho] doméstico. Tem [plataforma para contratar] pessoas que ficam na beira da estrada para descarregar caminhões. Tem empresa que organizou um sistema de aulas via plataformas que estão avançando no sistema de educação... Ou seja, a tendência é que esse tipo de atividade continue se espalhando para outros setores econômicos. E sobre isso, obviamente, a gente vai ter que ficar atento. O teletrabalho não foi pesquisado em 2024, só em 2022, mas, de certa forma, ele é também possibilitado por esse tipo de plataformas criadas pelas redes sociais. E agora tem ainda a inteligência artificial, com mecanismos de controlar o trabalho das pessoas à distância, que também traz outros problemas. O que estou dizendo é que a perspectiva é que esse tipo de trabalho vá continuar crescendo e abarcando outros setores, porque a tecnologia que começou a ser desenvolvida, por exemplo, para o motorista de passageiros, é facilmente adaptada para uma série de outros setores de prestação de serviço. E há também uma cultura de as relações serem cada vez menos pessoalizadas e mais impessoalizadas, e por isso as pessoas buscarem nessas plataformas os serviços de que precisam: manicure, pedicure, pedreiro, eletricista, operador... E tem plataformas que oferecem esse tipo de serviço.
A segunda observação é que nem tudo é passível de ser intermediado por esse tipo de trabalho. Para uma grande empresa, por exemplo, não é funcional fazer a mobilização e arregimentação da sua força de trabalho por esse mecanismo. Para uma empresa metalúrgica, uma empresa de alimentação, eu acho que não é possível organizar assim porque o processo de trabalho é outro. Então, vão permanecer as relações assalariadas em geral também. Portanto, [a plataformização] tende a crescer, mas não vai ser absolutizada no mercado do trabalho, nem tudo agora vai ser via plataforma, porque, do ponto de vista econômico, por enquanto isso não é funcional. Muitas dessas atividades podem ser afetadas pela inteligência artificial, isso ainda é uma coisa desconhecida da gente, que exige estudos e formas de capturar melhor isso. Mas o uso da inteligência artificial é distinto do trabalho meramente plataformizado, é uma coisa um pouco mais ampla, que afeta, inclusive, setores muito qualificados [cujo trabalho] pode também ser feito via plataforma. Por exemplo, um advogado no escritório pode, via plataforma, contratar alguém para representá-lo numa vara específica em determinado lugar do país, mas a inteligência artificial também vai alterar profundamente a própria natureza do trabalho do advogado, na montagem das peças do processo, na pesquisa... É uma coisa um pouco mais ampla mas nós aqui no Cesit somos cautelosos e dizemos que os nossos estudos ainda são insuficientes para observarmos claramente as tendências que vão ser estabelecidas com a inteligência artificial. A gente faz uma crítica de todas as previsões, tanto as otimistas como as catastróficas, realizadas mais ou menos uns dez anos atrás, que não se concretizaram. E algumas coisas nos surpreendem. Por exemplo, por mais que tenha essa coisa toda, o índice de assalariamento é alto nos últimos 50 anos, inclusive nesses últimos dez anos de plataforma – porque esse trabalho de plataforma começou a entrar no Brasil a partir de 2014, e avançou fortemente na pandemia, então é muito recente. Com todos os outros problemas existentes, a dinâmica do mercado de trabalho não se explica por isso, tem inclusive muitos traços de permanência e continuidade. Por exemplo, o índice de assalariamento nesse momento é alto, [embora seja] verdade que tem [assalariado] sem carteira [de trabalho assinada]. Entre os plataformizados, 85%, 83% se dizem autônomos, mas o índice de assalariamento em geral é muito alto, em torno de 70% do total dos ocupados hoje estão na condição de assalariado. Cresceu [o trabalho] por conta própria, cresceu o autônomo, mas o assalariamento continua muito alto e continua sendo predominante. Uma parte [dos trabalhadores identificados como] por conta própria, como é o caso dos plataformizados, não são de fato autônomos, são assalariados disfarçados, não reconhecidos nos seus direitos.
Do ponto de vista mais estrutural, o que você tem é um processo de subordinação do trabalho à dinâmica econômica, à forma como se organizam a economia e o processo de acumulação de capital
O que eu estou dizendo para responder a sua questão é que, do ponto de vista mais estrutural, o que você tem é um processo de subordinação do trabalho à dinâmica econômica, à forma como se organizam a economia e o processo de acumulação de capital. Dentro do capitalismo, é isso que tem definido as ocupações. Portanto, na minha perspectiva, nem tudo vai se tornar plataformizado, trabalhadores em plataforma, mas [esse tipo de trabalho] tende a avançar e crescer, abrangendo um conjunto maior de trabalhadores e espalhando esse tipo de atividade pelos setores econômicos. Eu acho que o motorista de passageiros, por exemplo, vai crescer uma margem, entregadores também. A pesquisa mostrou o pequeno crescimento de entregadores [por aplicativo] entre 2022 e 2024, já não está crescendo muito.
Mas eu queria lhe perguntar sobre esse último comentário. Porque, segundo essa última pesquisa do IBGE, o número de motociclistas plataformizados, que são basicamente os entregadores, principalmente de comida, cresceu 140 mil, mas reduzindo os não plataformizados. Ou seja, hoje, 1/3 dos trabalhadores de aplicativos por motocicletas são plataformizados, enquanto em 2022 eles eram ¼ do total. Isso não tem relevância?
Não se pode permitir essa situação de desproteção e barbárie
Tanto entre os motoristas de passageiros por aplicativos, como entre os motoristas de entregas, a tendência é avançar a plataformização. Entre os motociclistas, claramente há uma diminuição dos não plataformizados e um aumento dos plataformizados. Mas o crescimento deles não é tão expressivo como o de motoristas [de aplicativos de passageiros]. Eu acho que é uma tendência, por exemplo, que os táxis funcionem no esquema plataformizado: é mais ágil, mais fácil para o cliente do que telefonar para uma central de táxi, como era anteriormente, ou ir para um ponto de e táxi. Então eu acho que a tendência é, nesses dois segmentos, de entrega e de passageiros, a plataformização continuar avançando, mas eu não vejo possibilidade de o número total de entregadores ser o dobro do que era anteriormente. Tem uma tendência clara de avançar a plataformização, mas no total das pessoas ocupadas [no trabalho de] entrega, vai acontecer isso que a pesquisa está mostrando: você vai substituindo o não plataformizado pelo plataformizado. Continua crescendo esse tipo de atividade e, serviço, mas não é tão expressivo assim [a ponto de] alterar a composição das ocupações. O total de motoristas e passageiros vai continuar crescendo, mas não é uma proporção tão substantiva, até porque tem um limite de mercado. Por exemplo, se a gente conseguisse, do ponto de vista da política pública, melhorar para valer o transporte coletivo, esse tipo de serviço cairia. O problema é que o transporte coletivo em boa parte das cidades é ruim e caro, e esse serviço nesse esquema [plataformizado] é barato. Se trouxermos esse pessoal [os trabalhadores de aplicativos de passageiros e entrega] para o sistema de proteção [social], pode ser que esse serviço fique um pouquinho mais caro, mas do ponto de vista da sociedade, não se pode permitir essa situação de desproteção e barbárie. Então, a tendência é a plataformização avançar e o número total de motoristas e entregadores vai continuar crescendo, mas não tanto como anteriormente.
Temos tido, principalmente ao longo de 2025, indicadores positivos, que apontam uma redução dos níveis de desemprego. No trimestre encerrado de abril a junho, a taxa de desocupação era de 5,8%, o menor da série histórica da Pnad Contínua. Esse dado geral, no entanto, não mostra o tipo de vínculo nem a formalidade. Essa mais nova pesquisa do IBGE mostra um crescimento de 25% no número de trabalhadores por plataformas entre 2022 e 2024, a maioria por conta própria. A pergunta é: é possível afirmar que esse trabalho precarizado por plataforma que o estudo do IBGE mostra seja um fator relevante no que se tem considerado uma melhora nas taxas de desemprego? É, em parte, às custas do trabalho plataformizado que se tem reduzido o desemprego e a desocupação no Brasil? Ou são fenômenos independentes?
Eu não estou com os números aqui mas, se você pegar o número total de ocupações geradas pela queda do desemprego, ele é muito mais expressivo do que os 360 e poucos mil plataformizados a mais [identificados] nesses dois anos da pesquisa. Entre os plataformizados, houve pouco menos de 400 mil novas ocupações. Isso é muito menor do que o total de ocupações criadas. Então, não é o trabalho por plataforma que explica a queda do desemprego. A taxa de desemprego, o número de pessoas desempregadas, cai de 10 [milhões], em 2022, para 6 milhões de pessoas. São 4 milhões de pessoas que são ocupadas. O que explica a queda da taxa de desemprego é a forma como a economia foi operacionalizada nesse período recente, com os efeitos, inclusive, pós-pandemia. Não aumentou tanto a participação das pessoas no mercado de trabalho, ela continua relativamente estável. A queda da taxa de desemprego se explica, primeiro, pela criação de ocupações pela dinâmica da economia, mas também se explica por uma outra razão, que é uma pressão menor de pessoas disponíveis para trabalhar. Isso tem a ver com a questão demográfica, com o envelhecimento da população, com o número de pessoas disponíveis para entrar no mercado de trabalho. Tem uma melhora das rendas das famílias que vai retardando, por exemplo, a entrada do jovem no mercado de trabalho. E os membros da família cobrem isso.
O que alguns não admitem é que esse tipo de atividade pegou porque o mercado de trabalho é muito ruim, os salários são muito baixos, as condições de trabalho são muito draconianas, a jornada é muito extensa
Em terceiro lugar, alguns setores econômicos, especialmente os que pagam salários muito baixos, têm reclamado que, como o desemprego está muito baixo, eles não conseguem preencher as vagas existentes. Claro que o setor empresarial sempre vai jogar a responsabilidade para outros: aí joga a responsabilidade para o Estado, para o Bolsa Família, que não têm nada a ver. O que de fato eu acho que o dado da Pnad sobre plataformas mostra é o seguinte: esse é um trabalho absolutamente precário, não tem segurança nenhuma, mas o rendimento médio dos [trabalhadores] menos qualificados, que teoricamente comporiam esses empregos mais elementares, como serviços gerais, comércio e construção, [é muito baixo porque eles] pagam muito pouco. Esse tipo de atividade, de fato, concorre com o trabalho por plataforma. Para essas pessoas que estão nessa situação mais baixa [de remuneração], o trabalho por plataforma é uma, entre outras, alternativas à precariedade existente no nosso mercado de trabalho. Se você trabalhar na construção civil, como servente de pedreiro, trabalhando no sol, naquele serviço pesado, oito horas para ganhar R$ 2 mil por mês, obviamente que, se tiver condição, você vai buscar fazer outra coisa. Então, [o trabalho por plataformas] é uma alternativa que as pessoas têm buscado dentro de uma área de precariedade que é o nosso mercado de trabalho. E o trabalho precário envolve, principalmente, essa coisa da informalidade, da desproteção, que é um negócio assustador. O que alguns não admitem é que esse tipo de atividade pegou porque o mercado de trabalho é muito ruim, os salários são muito baixos, as condições de trabalho são muito draconianas, a jornada é muito extensa. Então, mesmo que não tenha direitos [no trabalho por aplicativos], as pessoas estão pensando é em como se manter no curto prazo, em como pagar as contas. Quando o mercado de trabalho é muito ruim, o trabalho por plataforma se torna uma alternativa para as pessoas. Essa pesquisa do IBGE não mostra, mas tem um dado que a Uber falou na audiência pública de dezembro [de 2024], no Supremo Tribunal Federal, que é o índice de rotação muito grande desses trabalhadores. Não é tão constante, não é tão estável, roda muito o número de pessoas. Porque muitas pessoas percebem que não conseguem ter um rendimento [adequado] porque, por exemplo, seu equipamento vai sendo detonado e elas não conseguem repor. Algumas pessoas conseguem desenvolver estratégias e acabam se saindo melhor, outras não.
73% das pessoas ocupadas ganham até dois salários mínimos
Mas, no fundo, é o seguinte: não existe espaço para todo mundo se dar bem. As pessoas que estão buscando uma situação melhor dentro do mercado de trabalho têm [as plataformas] como opção dentre as opções existentes nesse mercado de trabalho precarizado. Mas é bem importante que se afirme a situação de precariedade desse segmento. Para entender isso, tem que entender o que é esse mercado de trabalho nosso: 73% das pessoas ocupadas ganham até dois salários mínimos, no caso brasileiro. Acabou de sair dado na Caged: só 2,5% ganham mais que dez salários mínimos. É muito pouco. É um mercado de trabalho de baixos salários, de ocupações que não têm perspectiva de ascensão profissional e jornadas muito alargadas, tanto que tem a campanha pelo fim da escala 6x1, que ‘pegou’ do ponto de vista popular. A gente tem que entender que todo esse trabalho de plataforma se dá no contexto de um mercado de trabalho muito ruim. No passado também você tinha ocupações mais ou menos qualificadas. Mas no momento do fordismo, por exemplo, como é que se compensou isso? Elevando os salários e reduzindo a jornada. No período recente, você cria empregos cada vez mais precários e piora as condições de trabalho. Os salários estão congelados ou continuam sendo absolutamente insuficientes para a pessoa ter o mínimo padrão de vida decente em uma sociedade em que o consumo é muito valorizado. Diminuiu-se fortemente a proteção social e a perspectiva de pensar o futuro – a aposentadoria, por exemplo, é uma preocupação das pessoas. As pessoas falam: ‘não vou me aposentar mesmo nessas regras, com essas reformas. E se me aposentar, vou ganhar tão pouco que nem vale a pena’. Você está fazendo alteração do sistema de proteção social e do assalariamento, que foi desvalorizado demais no período recente, com esse movimento de precarização, com as reformas trabalhistas que reduzem direitos e com as reformas previdenciárias que reduzem a possibilidade de a pessoa ter uma aposentadoria decente.
Tanto a pesquisa de 2022 quanto esta de agora, referente a 2024, mostram que o rendimento médio dos trabalhadores plataformizados é maior do que o dos não plataformizados, embora essa diferença tenha caído de lá para cá. Essa diferença é maior entre aqueles que têm menos instrução formal. E, em todos os casos, refere-se a uma jornada de trabalho maior, com 5,5 horas semanais a mais, em média, o que torna o valor da hora de trabalho menor para os plataformizados (R$ 15,4 contra R$ 16,8). Mas esta pesquisa de 2024 mostra também uma queda, pequena, na jornada desses trabalhadores. Queria que você analisasse esses dados.
Existe uma variação muito grande de jornada entre esses trabalhadores. Muitos têm jornadas de 13, 14, 15 horas por dia. E outros têm menos. O que as entrevistas mostram é o seguinte: essa jornada de 13, 14, 15 horas, as pessoas aguentam por um certo período da vida. Porque logo começam os adoecimentos, as sequelas. O corpo não aguenta por muito tempo fazer esse tipo de jornada. Como me disse um motorista: ‘eu não vou ficar rico mesmo, por que vou trabalhar 14 horas? Estou acabando com a minha saúde. Hoje eu reduzi, trabalho menos’. Nesse sentido, eu acho que você tem uma pequena redução do número de horas trabalhadas, no geral dos trabalhadores e também entre os plataformizados. Mas, mesmo assim, ainda é importante destacar que a jornada [dos plataformizados] é 5,5 horas maior, em média, do que a dos outros trabalhadores. Não é pouco, né? O que explica uma pequena queda [da jornada] é uma questão física, eu acho. As pessoas não conseguem manter uma rotina de 15, 16, 14 horas por dia por muitos anos. Um motorista [que deu entrevista para a] pesquisa falou: ‘eu estou ficando doente. Acabei com três carros, acabei com a minha saúde, e não saí do lugar do ponto de vista financeiro. Por isso, agora eu trabalho só oito horas, não trabalho mais 12 horas, 14 horas, porque quebrou a minha vida’. Mas aí, claro, a pessoa já ficou doente.
Os condutores de motocicletas que trabalham por plataforma ganham em média mais de 17% a mais que os não plataformizados por hora. Há uma intensificação do trabalho, com a corrida por mais entregas, por vezes incentivada pelo aplicativo e riscos à saúde desses trabalhadores?
Primeiro, na média geral, quem não é plataformizado ganha mais do que quem é plataformizado por hora. [O plataformizado] acaba ganhando em média mais do que o não plataformizado no rendimento bruto porque trabalha mais horas, no geral. Acho que esse é o dado mais importante. O outro dado importante da pesquisa é o que mostra que a diferença no salário nominal entre o plataformizado e o não plataformizado era de 9,2 em 2022 (a mais para o plataformizado) e agora é 4,2. Então, a situação do não plataformizado melhorou um pouco mais. A única coisa que a pesquisa mostra diferente é que, de fato, entre os motociclistas, os salários do plataformizado e do não plataformizado são muito próximos. Se pegarmos os assalariados e os motociclistas não plataformizados, de fato, a pesquisa mostra que o salário dos motociclistas que são entregadores é um pouquinho maior. Eu acho que isso tem a ver com estratégias que esses trabalhadores vão adquirindo de como organizar melhor esse tipo de atividade do que anteriormente. Vão aprendendo. E tem a ver também com [o fato de] que foram [esses] os setores que fizeram manifestações, se organizaram, pressionaram. Existe uma certa organização desses trabalhadores também, que pode ajudar a explicar isso. Mas também tem que ser relativizado isso. Por quê? Primeiro porque, mesmo ganhando um pouco mais, o rendimento total anual não é maior, porque essas pessoas não têm acesso a décimo terceiro, não têm férias... Não têm acesso ao seguro-desemprego, não têm fundo de garantia. Ou seja, mesmo que nominalmente o salário seja maior, de fato, o rendimento total é menor, porque não tem todos os direitos embutidos. E outro problema também de difícil de mensuração por parte de quem lida com a pesquisa é quanto efetivamente a pessoa gasta com seus equipamentos, com celular, com a internet, com a depreciação [da moto ou do carro], com o seguro, com todas as despesas que ela tem para realizar essa atividade. Isso também é um componente que mascara um pouco aquilo que é declarado rendimento total. O processo de depreciação do celular, do carro, o preço da internet, do seguro, a oficina mecânica, a manutenção, tudo isso são custos que nem sempre são facilmente calculados. Esse dado tem que ser relativizado também por isso.
O governo federal formulou e apresentou ao Congresso um Projeto de Lei (nº 12) de regulamentação do trabalho por plataformas que, por divergências nas mesas de negociação, acabou referindo-se apenas aos motoristas de aplicativos de passageiros, embora tenha sofrido críticas e resistência forte também das associações desses trabalhadores. Recentemente, o deputado Guilherme Boulos (Psol-SP) apresentou outro PL (nº 2.479/25), que parece ter sido construído com a participação dos entregadores. Qual a sua avaliação sobre esses projetos? Na sua avaliação, o que deve ser feito em termos de legislação para regulamentar esse tipo de trabalho?
Como falei no começo, eu acredito que a gente tem três posições no debate sobre a regulamentação dos trabalhos. O projeto do Boulos, que, de fato, foi negociado com a União Nacional dos Entregadores, não entra na discussão sobre o tipo de vínculo de trabalho. Ele simplesmente estabelece algumas condições para elevar o ganho e a condição de quem exerce esse tipo de atividade, como, por exemplo, [a definição de valor] mínimo por emprega e um valor adicional por quilômetro rodado. Mas não entra nessa polêmica sobre como, de fato, [deve-se] estabelecer a regulação do trabalho. O projeto do governo, o PL 12, foi um desastre. A categoria se rebelou contra esse projeto porque, de fato, não trazia nenhum ganho objetivo no curto prazo e ainda trazia muitas dúvidas e incertezas. Foi um desastre total, na sua concepção e na forma como foi apresentado. Tudo bem, ele tinha algum tipo de vantagem na representação sindical, tinha a questão da previdência, que é uma coisa mais ou menos regulamentada em todos os países, de que, para a pessoa poder exercer esse tipo de atividade, tem que ter pagado a previdência.
O risco do negócio tem que ser da empresa, não do trabalhador
A minha posição particular é de que se deve incorporar esses trabalhadores como assalariados, como qualquer outro, com acesso aos direitos que são definidos para outros trabalhadores. Você tem trabalhos muito distintos sendo regulamentados. Tem vários desenhos de jornadas que se pode efetuar no sentido de estabelecer mais liberdade [para os trabalhadores]. Ah, vai pagar quanto? Por quantidade de horas à disposição da plataforma. Vai exigir da empresa uma certa organização disso. Porque não é justo o trabalhador ficar à disposição 12 horas, fazer quatro corridas e ganhar uma miséria. As empresas estão lucrando em cima disso. O risco do negócio tem que ser da empresa, não do trabalhador. Aqui se transferiu o risco para o trabalhador. Tem que ter, na minha perspectiva, também um limite de jornada diária. O corpo humano não aguenta esse tipo de jornada, então, tem que limitar, por causa da saúde das pessoas, mas também pelo bem-estar geral. Porque as pessoas estão conduzindo um veículo e podem, com o tempo e com o cansaço, diminuir a sensibilidade para dirigir, a coordenação motora. Há estudos que mostram que isso é provocador de acidente. Então, isso tem um efeito também para a coletividade. Não só para o sistema de saúde, mas para outras pessoas que usam a via pública. É por isso que ela tem que ser regulamentada.
Ter, diante desses trabalhadores, um mercado de trabalho com direitos: é assim que se valoriza o trabalho. Foi assim que Getúlio Vargas, para superar a noção negativa do trabalho vinda do período escravocrata, dizendo que tinha que viabilizar a industrialização, que teve como consequência o assalariamento, teve que reconhecer esse sujeito que trabalha como sujeito de direito. Aqui, também: tem que reconhecer esse trabalhador como sujeito de direito. Minha posição particular é de que essas pessoas trabalham para uma empresa, a empresa tem um lucro sobre elas, que varia de 25% a 50% de apropriação do valor da corrida. A empresa gasta muito recurso com advogado ou lobby para manter essa situação. Podia gastar menos com advogado ou lobby e pagar melhor e proteger esses trabalhadores. Porque agora o que se tem é uma situação tóxica, em que uma empresa mobiliza esses trabalhadores, explora, lucra em cima deles. Portanto, é preciso reconhecer como vínculo de emprego. Alguma adaptação sobre a jornada eu acho que você pode fazer, como tem para outras categorias. Há vários tipos de adaptação. Por exemplo, no hospital, porque se precisa de processo contínuo, se tem uma forma de realizar a jornada. Nas indústrias, é outra. No comércio é outra. Todas são possíveis de serem realizadas sem prejudicar as pessoas e sem deixá-las em condição de risco.
A informalidade não estrutura a vida em sociedade
Outra coisa importante é o seguinte: essa pressuposta liberdade, que não existe na prática, não pode justificar que se imponha um sistema de ausência de proteção social e de acesso a direitos como hoje está colocado. Isso tem que ser revertido imediatamente. A informalidade não estrutura a vida em sociedade. Ela, pelo contrário, tende a gerar uma situação de barbárie. Proteção significa acesso [dos trabalhadores por aplicativos] à seguridade social, aos direitos sociais e aos direitos trabalhistas na sua integralidade, como qualquer outro trabalhador.
Tem algum tipo de plataforma em que [o prestador de serviço não] é trabalhador? Pode ter, sim. Em que, de fato, é a pessoa que define o preço, a forma de realizar o serviço e, portanto, estão presentes as características do trabalho por conta própria. Mesmo assim, acho que tem que obrigar que todos contribuam para a previdência. Mas, no caso dos motoristas de [aplicativos de] passageiros e dos entregadores, isso não é trabalho por conta própria. É assalariamento, uma relação de emprego disfarçado. Quem determina o que fazer, como fazer, o valor do que faz e a forma de pagamento é a plataforma. Uma coisa que as pessoas têm é uma certa liberdade para dizer quando e onde trabalham mas a pesquisa mostra que isso também é [marcado] por incentivos e estímulos [por parte das empresas], pelos algoritmos. Então, nada justifica que você tenha uma relação de autônomo, entre empresa e prestador de serviço.
O problema, como você mesmo mencionou, é que essas empresas não se reconhecem como empregadoras, se apresentarem como intermediadoras e gastam muito dinheiro na justiça e com lobby para manter esse status. Há relatos de experiências internacionais em que se faz a regulação e as plataformas simplesmente não cumprem. Como fazer isso? Existe alguma experiência que tenha alcançado isso? Ou existem formas específicas para, no Brasil, se seguir esse modelo de regulamentação e garantir que as empresas cumpram?
Tem, sim. Tem a diretriz da União Europeia, que reconhece [o trabalhador de plataforma] como assalariado.
Mas que ainda não está não está em vigor, né? O prazo para começar vai até 2026...
Eu fui dois anos atrás para a Espanha. Em Sevilha, peguei um Uber. E [o motorista] me relatou o seguinte: ele trabalha cinco dias por semana, oito horas por dia. Tem um salário e uma remuneração. Tem todos os direitos trabalhistas assegurados. Tem uma disputa, mas a Espanha está reconhecendo o vínculo. Na Califórnia [EUA], a justiça também reconheceu o vínculo. Obviamente essa legislação trabalhista é muito diferenciada de país para país e esse é um campo ainda em disputa. Não está uniformizado. Mas o caso da Espanha é claramente de reconhecimento [desse trabalho] como um vínculo de emprego. Eu acho que a enormidade dessa coisa hegemônica liberal que as empresas [de plataformas] tiveram nesse primeiro momento não é duradoura. Na repercussão dessa pesquisa de agora, [referente a] 2024, houve muito mais [discurso] favorável a essa tese de reconhecimento de que [as plataformas] são empresas [com relações] trabalhistas do que quando foi divulgada a pesquisa de 2022. A nota das empresas, inclusive, foi bem defensiva.
Há algum ponto relativo a essa mais nova pesquisa do IBGE que eu não tenha perguntado e você queira comentar?
Eu acho que o que aqueles dados estão mostrando é o seguinte: tem o crescimento e o espalhamento [do trabalho por plataformas], mas as condições de precariedade são reafirmadas na nova rodada da pesquisa. Eu acho que essa é a conclusão mais importante.