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Técnico em Citopatologia

O câncer de colo do útero é o terceiro tipo de tumor com maior incidência sobre as mulheres no Brasil — embora, na região norte, ocupe o primeiro lugar. Segundo estimativas do Instituto Nacional do Câncer (Inca) publicadas em 2011, 17.540 novos casos surgiriam em 2012. De acordo com o mesmo documento, os dados mais recentes sobre o panorama mundial mostram que, em 2008, 275 mil mulheres morreram vítimas desse câncer e que mais de 85% delas viviam em países em desenvolvimento. “Uma provável explicação para as altas taxas de incidência em países em desenvolvimento seria a inexistência ou a pouca eficiência dos programas de rastreamento”, diz o texto. Foi exatamente esse o salto que o Brasil deu a partir da década de 1980, quando, no contexto da reforma sanitária, mudou e intensificou o controle do câncer de colo de útero que, no país, havia começado nos anos 1960. Os resultados desse trabalho já começam a ser vistos: de acordo com o informativo ‘vigilância do câncer’ que o Inca acaba de divulgar, “após longo período de estabilidade”, o número de casos desse tipo de tumor “apresenta-se em declínio”.

O que pouca gente sabe é que um dos personagens principais dessa experiência exitosa da saúde pública brasileira é um trabalhador de nível médio que não tem sua profissão reconhecida e atua, em geral, sem formação. Responsável pela análise de laboratório das lâminas do teste de Papanicolaou, apelidado de ‘preventivo’, esse profissional é conhecido como citotécnico mas, desde a padronização de nomenclatura feita pelo Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos , do Ministério da Educação, passou a ser chamado de ‘técnico em citopatologia’. Em 2011, o Ministério da Saúde publicou um conjunto de ‘diretrizes e orientações’ para a formação desse técnico e vai incentivar financeiramente a criação desses cursos nas Escolas Técnicas do SUS.

Perfil do citotécnico

Mas o que faz exatamente o técnico de citopatologia? Leandro Medrado, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), diz que é mais fácil entender na comparação com outros profissionais. “Patologia é uma grande área médica, que estuda as doenças. Ela usa vários mecanismos de diagnóstico, que são funções técnicas: as análises clínicas, a histologia e a citologia. O técnico de análises clínicas trabalha com amostras de sangue ou secreção, por exemplo, buscando identificar padrões específicos. O técnico de histologia atua em relação à morfologia dos tecidos. Já o técnico em citopatologia é responsável pela observação dos componentes celulares para a identificação de doenças, principalmente câncer”, explica.

Mas há ainda outra particularidade: esse é um profissional que nasceu para atuar especificamente em um tipo de câncer, o de colo de útero. Simone Evaristo, trabalhadora do Inca e presidente da Associação Nacional de Citotecnologia, explica que foi o médico Papanicolaou quem descobriu que era possível diagnosticar algumas lesões observando células soltas — e não os tecidos, como se fazia até então. Essa se tornou, a partir daí, a especialidade do médico citopatologista e do citotécnico. “Quando a técnica foi aceita, começou-se a usá-la não apenas para descobrir células de câncer, mas também para identificar células que poderiam, um dia, se tornar um câncer. Com isso, surgiu o rastreio. Como não havia médicos suficientes disponíveis para fazer isso, treinou-se um ‘técnico’”, conta. No artigo ‘A expansão do rastreio do câncer do colo do útero e a formação de citotécnicos no Brasil’, Luiz Antonio Teixeira, Marco Antonio Porto e Leticia de Souza explicam: “No âmbito do teste de Papanicolaou, ele tem como principal função examinar as lâminas elaboradas a partir do material colhido e encaminhar os casos considerados atípicos para avaliação do médico citopatologista. Dessa forma, é o responsável pela triagem do material citopatológico, permitindo que o médico examine somente os casos suspeitos, em geral, de 10 a 30% do total”. Mas a atuação do citotécnico está se ampliando. Tanto que, a partir da última reformulação feita no curso técnico que o Inca oferece, e que agora conta com a parceria pedagógica e a certificação da EPSJV/Fiocruz, foram incluídos também conhecimentos iniciais de citologia não ginecológica. Nas ‘Diretrizes e orientações para a formação’ publicadas pelo Ministério da Saúde essa ampliação também foi feita.

Formação

O primeiro curso de formação de citotécnicos no Brasil foi criado em 1968 pela Fundação das Pioneiras Sociais. Depois, surgiram e desapareceram vários outros, mas sobreviveram até os dias de hoje dois principais: um promovido pela Fundação Oncocentro de São Paulo (Fosp), que atua em parceria com as Escolas Técnicas do SUS do estado, e outro oferecido pelo Inca, a partir do início da década de 1980, primeiro como técnico e depois como qualificação. Segundo Leda Küll, uma das coordenadoras do curso, o currículo era muito inspirado nas experiências dos Estados Unidos e Europa. “Naquela época, a formação era voltada exclusivamente para leitura de lâminas citológicas, principalmente para o colo do útero. Hoje temos um outro perfil para esse profissional”, explica.

Esse novo perfil começou com a transformação de um curso de qualificação em curso técnico novamente,  o que implicou o aumento de carga horária para 1920 horas e um novo currículo dividido em cinco grandes grupos temáticos: Iniciação à Educação Politécnica, que envolve discussões sobre concepções de saúde e doença, relação entre ciência e sociedade, políticas de saúde e gestão do trabalho; Metodologia Básica para Laboratório de Saúde; Estrutura e Funcionamento do Corpo Humano; Citotecnologia, envolvendo citologia ginecológica e não ginecológica; e  estágio curricular, com 600 horas de prática.

Pelas Diretrizes e Orientações para a formação do técnico em citopatologia construídas pelo Ministério da Saúde os conteúdos se organizam em cinco módulos: planejamento e organização do trabalho na área de citopatologia; e processo de trabalho em saúde e na área da citopagologia (ambos relativos aos campos da citologia e da histologia); processos educativos e comunicação em saúde e interfaces com os serviços de atenção à saúde na área de citopatologia; procedimentos e técnicas para a realização de exames citológicos; e procedimentos para a realização das técnicas histológicas.
Leandro Medrado, que coordena, pela EPSJV/Fiocruz, o curso realizado em parceria com o Inca, aponta que o resultado final desses referenciais construídos pelo Ministério da Saúde traz avanços no debate dessa área, mas apresenta um problema importante: incluir conteúdos e atribuições do técnico de histologia no perfil de formação do citotécnico. “As técnicas tradicionais da histotecnologia são comumente vistas como técnicas simples, e que podem ser apreendidas pela repetição e adestramento, mas a cada dia é mais demandado deste profissional o conhecimento mais profundo dos princípios que fundamentam estas técnicas”, explica. E completa: “Embora estes profissionais possam trabalhar com amostras ‘semelhantes’, tanto os procedimentos de preparo das amostras quanto a natureza de sua análise é distinta, e é esta especificidade que caracteriza e distingue tanto suas práticas profissionais como, consequentemente, suas demandas formativas”, diz.

Leandro destaca ainda que essa inclusão de conteúdos referentes à histologia nos referenciais do citotécnico não foi acordada com o grupo de trabalho que apoiou a construção desse documento, do qual fizeram parte, entre outras instituições, a EPSJV/Fiocruz e o Inca. “Ajudamos a desenhar o mapa de competências, que foi para consulta pública, e depois validamos o documento final, que era muito bom. Depois de finalizado o processo, sem consultar as instituições envolvidas, o Ministério incluiu a histologia como campo de atuação do citotécnico”, reclama.?

De qualquer forma, essas orientações devem servir de guia para a formação desses profissionais em nível nacional. De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (SGTES/MS) — que não comentou a crítica aos referenciais —, até agora as Escolas Técnicas do SUS dos estados do Acre, Bahia, Ceará, Pará, Minas Gerais, Pernambuco, Rio de Janeiro, Roraima e São Paulo apresentaram projetos solicitando financiamento para a execução do curso, o que significa a garantia de formação de 443 alunos. Os outros estados estariam aguardando a aprovação do curso pelo Conselho Estadual de Educação.

Um profissional invisível

O principal objetivo da Associação Nacional de Citotecnologia é descobrir quem é esse profissional. Isso porque, de acordo com a presidente da Associação, a inexistência da profissão e o fato de a maioria dos profissionais dessa área ter sido formada em serviço, faz com que muitos trabalhadores nem saibam que são citotécnicos. Hoje, os ‘técnicos’ em serviço são profissionais administrativos ou de diversas outras áreas da saúde. “Eu mesma sou contratada como técnica de análises clínicas”, exemplifica Simone.

Segundo ela, o problema é que, para acabar com essa invisibilidade, será necessário mexer em interesses corporativos. “O que emperra é que, para regulamentar a nossa profissão, vai ser preciso admitir que é o técnico quem libera o laudo da citologia com resultado normal. E isso a medicina não quer”, diz, e completa: “Todo mundo sabe que somos nós, os técnicos, que fazemos a primeira leitura das lâminas, mas nosso nome não aparece em nenhum documento. O citotécnico faz o laudo, mas é o médico quem assina. Por isso não existimos”. E, de acordo com Simone, esses interesses já nem são apenas da categoria médica. Outros profissionais de nível superior brigaram e conseguiram o direito de assinar os laudos citológicos, o que, na falta de qualquer regulamentação, significa ocupar o lugar de ‘supervisor técnico’ do citotécnico. Atualmente, segundo ela, esse é o caso dos biólogos, biomédicos e farmacêuticos.

Ela acredita que agora, com a manifestação do interesse do Sistema Único de Saúde (SUS) nesse profissional, a criação da profissão pode começar a ganhar corpo. Mas esse processo se inicia pelo campo da formação e não da regulação do trabalho. “O primeiro sinal de que nós existimos foi o catálogo de cursos técnicos do MEC”, diz.

Cátia Guimarães

* Texto publicado na revista Poli - saúde, educação e trabalho n° 26 - han/fev 2013