Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Luiz Alberto dos Santos

'Têm se saído melhor na crise os países que preservaram seu Estado'

Desde que foram propostas como um modelo de gestão indireta, as fundações públicas de direito privado – ou fundações estatais – vêm sendo celebradas por alguns e condenadas por outros. A ideia do PLP 92/2007, que está tramitando na Câmara dos Deputados, é permitir a atuação dessas fundações nas áreas de saúde, assistência social, cultura, e meio ambiente, entre outras. Até que ponto isso significa um afastamento do Estado em relação a atividades pelas quais é responsável? Por que usar as regras do privado para gerir serviços públicos? O modelo atual de gestão se tornou insuficiente? O que muda nas relações de trabalho? Para discutir essas questões, conversamos com Luiz Alberto dos Santos, especialista em políticas públicas e em gestão governamental, doutor em Ciências Sociais e Consultor Legislativo do Senado Federal para Administração Pública. Luiz Alberto, que atualmente é subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas governamentais da Casa Civil da Presidência da República, também analisa nessa entrevista as mudanças que os países da América Latina atravessaram nas últimas décadas, no que diz respeito à atuação do Estado nas áreas sociais.
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/05/2009 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Nas últimas décadas, houve uma tendência mundial à retração do papel do Estado. Como o Brasil atravessou esses anos de neoliberalismo?

O neoliberalismo, particularmente fundado nas premissas do Consenso de Washington, foi mais um receituário para os países em desenvolvimento do que um conjunto de medidas adotadas pelos países desenvolvidos. Na verdade, o papel do Estado sofreu uma modificação não tanto no que se refere ao seu tamanho ou ao volume do gasto público, mas na forma utilizada para a prestação de certos serviços e na estruturação de certas atividades, e o foco principal dessa mudança foram os países em desenvolvimento.

Ocorreu uma tentativa de mudar o padrão de gestão do Estado pela utilização de atores privados gerindo recursos públicos. Esse modelo partia de uma premissa que tentou se reproduzir no Brasil: a da ineficiência da gestão estatal. Buscavam-se parâmetros de gestão mais próximos do setor privado que levassem a um ganho de eficiência. Mas isso não aconteceu conforme o esperado: o volume de gastos total por meio de atores privados até cresceu, mas sem necessariamente corresponder a uma redução no gasto público total.

Já no Terceiro Mundo a discussão foi um pouco mais profunda. Países que não tinham implantado ainda o seu Estado de bem-estar social, como Brasil, Argentina, Peru, Bolívia e outros, passaram — para cumprir metas de ajuste fiscal impostas ou propostas por organismos internacionais como o Banco Mundial — a reduzir o tamanho do seu gasto público em área social, particularmente na seguridade. A reforma da previdência foi quase um símbolo desse processo, pois atingiu quase todos esses países, com o objetivo claro de redução de direitos, por meio da introdução de sistemas privados de provisão social. Os países da América Latina seguiram algumas propostas e metodologias defendidas pelas organizações internacionais que, mesmo nos países europeus, não foram implantadas com tanto entusiasmo assim. Mas o Brasil não concluiu esse processo, até porque a reforma da previdência aprovada em 1998 não chegou a ser implementada na sua plenitude. Ainda assim, houve, de lá para cá, um crescimento forte da previdência privada no Brasil. Hoje, temos uma visão bem distinta da que orientou a discussão sobre a reforma do Estado nos anos 1990, porque praticamente descartamos o discurso que associava a gestão pública à ineficiência: buscamos mecanismos para enfrentar as dificuldades, tornar o serviço público mais apto a dar respostas e suprir as lacunas resultantes de um processo de quase desmonte do aparelho do Estado orientado pela necessidade de ajuste fiscal.

Durante a crise econômica atual, o Estado foi chamado novamente a intervir de forma mais concreta. Como o senhor avalia isso?

Acho que tirar conclusões desse processo ainda é um pouco precipitado. Mas se olharmos o que ocorreu nos anos 1930, em função da crise de 1929, a lição que temos é que a crise fortaleceu o Estado enquanto provedor de bens e serviços, como orientador da atividade econômica. E o elemento fundamental foi a construção do Estado de bem-estar-social, que é também resultado da crise dos anos 1930. Hoje, observamos que têm se saído melhor na crise os países que sempre preservaram seu Estado e não permitiram que a doutrina neoliberal fincasse estacas profundas, como a China, um país hoje importantíssimo na economia mundial, onde o Estado tem um papel decisivo na economia. Não estou defendendo com isso o intervencionismo do Estado, mas seu papel como definidor de políticas, fomento e investimento. Essa nova crise tende a fortalecer um perfil de atuação do Estado mais competente, atento e participativo quanto à provisão de serviços públicos e à garantia de direitos sociais e também um fortalecimento da atividade regulatória, que já é exclusiva e permanente do Estado.

O que fez com que, com a proposta da Fundação Estatal, uma parte da esquerda passasse a defender que determinados serviços, apesar de permanecerem públicos, devessem funcionar com as regras do privado?

O governo Lula tem defendido um Estado ativo, que participa efetivamente do desenvolvimento nacional, por meio do incentivo ao investimento na infra-estrutura e também da prestação de serviços públicos, seja através de empresas estatais, ou da sua administração direta, autárquica ou fundacional. E a nossa Constituição prevê expressamente vários desenhos que o Estado pode utilizar para prover serviços públicos e executar suas funções. O primeiro é a administração direta, em que o Estado exerce as suas funções através da Presidência da República e dos ministérios, no plano federal.

Ora, historicamente, o modelo de gestão via administração direta se mostrou insuficiente para responder aos anseios de um Estado mais complexo e dinâmico, e isso fez com que, desde os anos 1920, fossem criados no Brasil e em vários países entes da administração indireta. Primeiro surgiram as autarquias, que têm patrimônio, receita e personalidade jurídica próprios mas exercem funções e prerrogativas típicas ou exclusivas de Estado e, portanto, só podem ser regidas pelo direito público. Algumas instituições de natureza autárquica, no entanto, assumiram funções de caráter empresarial, próximas da atividade econômica, e foram classificadas como tais. Outras já surgiram como empresas, portanto, regidas pelo direito privado.

As empresas estatais se dividem em empresas públicas e sociedades de economia mista. Nas empresas públicas o Estado domina totalmente o capital: não há nenhum sócio privado. Elas são de direito privado, mas têm um caráter mais público. A sociedade de economia mista tem sócios privados e é mais próxima do setor empresarial propriamente dito, mas também sofre consequências por fazer parte da administração pública, como a necessidade de concurso público para a contratação de pessoal e sujeição à lei de licitações. No terceiro grupo estão as fundações, que têm uma natureza um pouco confusa. Se buscarmos fontes bibliográficas de estudos feitos ao longo de 50 anos, teremos dificuldade em achar um consenso sobre o que são essas fundações. Elas surgem no direito privado, como entes que não integram a administração pública – estão lá, no antigo código civil de 1916. Mas o Estado, a partir principalmente dos anos 1950 e 1960, introduz no seu ordenamento a figura da fundação, que era inicialmente de direito privado, para prestar serviços que não sejam exclusivos do Estado, mas precisem do seu apoio. Em 1987, as fundações públicas são finalmente incorporadas efetivamente como um modelo da nossa organização administrativa, mediante uma alteração ao Decreto-Lei 200/67, que define os tipos de instituições que existem.

Aí, a lei fala em ‘fundações de direito público’. A discussão é incorporada pela nossa Constituição, em 1988, e as fundações, que eram originalmente de direito privado, passam a ser trabalhadas como exclusivamente de direito público. Muitos juristas entenderam que, de fato, dali para a frente, não se admitiria mais fundação pública de direito privado. Mas esse entendimento não é unânime. Alguns especialistas renomados continuaram defendendo que poderia haver essas fundações. Essa situação fez com que, durante a tramitação da Emenda Constitucional 19, o deputado Moreira Franco, relator, resolvesse sepultar a polêmica colocando na Constituição (no artigo 37, inciso XIX) que as fundações poderiam também ser de direito privado. Mas isso não basta. Porque a Constituição é um corpo normativo complexo e as referências às fundações como instituições públicas aparecem em diversos outros momentos do texto.

Um dos aspectos mais complexos diz respeito ao regime jurídico do pessoal. Para alguns, a mudança no texto constitucional permitiria que as fundações públicas de direito privado pudessem ser deixadas de fora do regime jurídico único, ou seja, do regime estatutário. Mas a tendência hoje é entender que não se pode adotar regime jurídico de direito privado porque a Constituição determina a adoção do regime jurídico único para a administração direta, autarquias e fundações públicas. Com isso, teríamos um fator a menos de controvérsia em relação às características de privatismo das fundações. A Constituição também é clara quando determina que as fundações se sujeitem às normas gerais de licitação e contrato e que integrem o orçamento da União. Mas, sendo regidas em parte pelo código civil, elas podem ter uma autonomia maior do ponto de vista administrativo e financeiro e, portanto, estabelecer uma relação menos rígida com a administração direta. Ou seja, são uma figura intermediária entre as fundações públicas de direito público e as empresas estatais.

Mas a ideia inicial não era que os trabalhadores tivessem vínculo CLT?

Não, isso não está escrito em lugar nenhum. Isso é um mito que tem sido apregoado. Em momento algum o texto que foi aprovado na Comissão de Trabalho diz isso. O que se fez foi dizer que, independentemente do regime jurídico adotado para cada fundação, a admissão de pessoal depende de concurso público e o trabalhador só pode ser demitido naquelas situações que geralmente são associadas à demissão por justa causa, ou associadas à conduta irregular do servidor — falta grave, acumulação ilegal de cargos e a regra geral, que vale para servidores estatutários ou não, que é a necessidade de redução de gastos por excesso de despesas e a demissão por insuficiência de desempenho, prevista no artigo 40 da Constituição.

Não caberia estabelecer que o regime deve ser estatutário?

O entendimento majoritário hoje é que, por decisão do Supremo Tribunal Federal, o regime terá que ser estatutário. Mas se houver uma alteração válida na Constituição que permita mais de um regime jurídico, poderá ser o celetista. Isso não está colocado agora. Hoje, o que temos em vigor na Constituição é um dispositivo que manda haver regime jurídico único para administração direta, autarquias e fundações públicas, e o conceito de fundação pública se desdobra em personalidade jurídica de direito público e personalidade jurídica de direito privado.

Em que tipos de serviço e políticas o Estado deve estar presente como protagonista, regulador ou estar ausente?

A Constituição é ampla em relação a isso. O Estado tem deveres inafastáveis em relação à saúde, assistência, meio ambiente, previdência social, pesquisa, além dos mais típicos ou exclusivos, aqueles relacionados ao poder de polícia, fiscalização tributária, arrecadação de impostos, defesa, fiscalização, controle e por aí afora. As atividades exclusivas só podem ser exercidas sob regime de direito público e por entidades da administração direta e autárquica. Já no caso das não exclusivas, pode-se usar provedores privados. A saúde é uma área interessante para essa discussão. Temos um modelo de provisão universal de saúde pública feita não apenas através de hospitais públicos, mas também de convênios com a rede do sistema único de saúde – hospitais particulares que recebem recursos, são contratados para que prestem serviços à sociedade e recebam em função dos serviços que prestam. Na educação, a participação do Estado se dá de maneira dupla: ele é provedor de serviços por meio das escolas de educação básica, e também na esfera do ensino superior e pós-graduação. Mas em todos esses níveis também existem provedores privados. Há escolas particulares e o governo vem propiciando, através de incentivo fiscal, que universidades particulares ofereçam bolsas a alunos carentes, como é o caso do ProUni, que é uma forma alternativa de provisão de serviço público. O Estado cumpre o seu dever por esses dois tipos de instrumentos.

A necessidade de implantar as fundações estatais significa que o direito público não é mais viável para garantir o bom funcionamento de alguns serviços?

Essa é uma indagação difícil de responder. Acho que ninguém tem condições de fazer uma afirmação categórica em relação a isso, no sentido de dizer que o direito público não serve. Ele é muito importante para permitir que a gestão pública se dê como estabelece a Constituição, ou seja, observando os princípios da moralidade, impessoalidade, publicidade, legalidade e, mais recentemente, o da eficiência. Ocorre que o regime de direito público é, por definição, mais rigoroso e restritivo em certas questões e pode trazer algum embaraço para quem opera em ambientes econômicos de competição com atores privados. A discussão sobre a eficiência que uma entidade pode ou não ter no regime de direito público é antiga e não está totalmente superada. As empresas privadas utilizam outros parâmetros para orientar sua atuação, principalmente a busca do lucro. Nas instituições públicas, valem mais os princípios da Constituição. Mas em alguns casos elas precisam ter mais agilidade para fazer negócios e tomar decisões e algumas características do direito privado podem ser facilitadoras. Precisamos saber distinguir essas situações para adotar o regime mais apropriado a cada caso e não adotar uma panacéia, dizer que o regime de direito privado é melhor e, portanto, é preciso privatizar ou tirar tudo da esfera pública.

A votação do projeto vem sendo adiada por conta da pressão do movimento sindical e do Conselho Nacional de Saúde. Como o sr. analisa essa correlação de forças?

É verdade, o CNS tem uma posição contrária, basicamente porque não compreendeu que o modelo não é privatizante. Parece-me uma avaliação um pouco dura, que poderia ser resolvida facilmente com uma discussão mais aprofundada. Mas é uma discussão que no âmbito do Congresso temos feito com bastante transparência e clareza. O nível de tensionamento que temos com essa matéria, na verdade, é pequeno. Temos esperança de que em breve ela seja apreciada pelo plenário da Câmara.

Quanto aos movimentos sindicais, houve, aqui e ali, manifestações contrárias, mas não temos observado uma resistência sistemática das entidades sindicais ao projeto. Na área da saúde e da educação, algumas entidades têm, sim, se mostrado contrárias, mas acho que é por conta de não terem compreendido ainda a amplitude e o escopo da proposta.