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PNDH 3: símbolos e ensino religioso no Estado laico

Movimentos sociais defendem que a primeira versão do PNDH 3 deve ser mantida sem cortes. Na primeira reportagem da série sobre o programa, confira discussões acerca da diversidade religiosa e a escola.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 27/05/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Movimentos sociais defendem que a primeira versão do PNDH 3 deve ser
mantida sem cortes. Na primeira reportagem da série sobre o programa,
confira
discussões acerca da diversidade religiosa e a escola.



 



Há pouco mais de cinco meses, em 21 de dezembro do ano passado, o presidente Lula e 28 ministros publicaram o decreto 7.037 de criação do 3º Plano Nacional de Direitos Humanos - o PNDH 3 . De lá para cá, o texto foi alvo de críticas de setores como a bancada ruralista no Congresso, a Igreja Católica, a mídia comercial e militares, que começaram uma batalha contra o programa. Enquanto isso, movimentos sociais e organizações de defesa dos direitos humanos tentavam contra-atacar em defesa do plano, mas numa correlação de forças desfavorável, sobretudo pela diferença de publicidade das opiniões. O PNDH 3 deixou às claras também as profundas divergências existentes dentro do próprio governo, com o ministro da Defesa Nelson Jobim claramente capitaneando a oposição à iniciativa e o secretário especial de direitos humanos, Paulo Vannuchi, na defesa.



No início do mês de maio, cedendo à pressão dos setores contrários ao Plano, o presidente Lula publicou um novo decreto modificando itens do PNDH 3. Movimentos sociais e organizações que participaram da Conferência Nacional de Direitos Humanos, de onde partiram as propostas norteadoras da política, começaram a se articular mais fortemente em defesa do plano.



O PNDH 3, como foi lançado originalmente, reúne em mais de 200 páginas uma série de diretrizes e objetivos a serem alcançados no campo dos direitos humanos. Os setores da sociedade que defendem a proposta a consideram um avanço em relação aos dois PNDHs lançados anteriormente, o de 1996 e de 2002, por formular as ações de maneira a considerar "a interdependência, indivisibilidade e transversalidade dos direitos humanos".



Várias organizações lançaram, então, um manifesto em defesa do Plano e pedem que o decreto presidencial 7.177 , de 12 de maio de 2010, que retira partes consideradas polêmicas do PNDH 3, seja revogado.



Ao mesmo tempo estão em curso no Câmara dos Deputados seis projetos de decretos legislativos (PDC) que retiram outros pontos do programa. O deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ) é o relator de quatro deles e é contrário às alterações no PNDH 3. "Todos eles contestam o PNDH3 a partir de uma interpretação de que o Executivo estaria usurpando prerrogativas do Poder Legislativo. Esse entendimento é equivocado. O Programa é, na verdade, um marco de orientações de políticas, que resultarão em algumas ações que competem ao Executivo e outras tantas que dependem da proposição de iniciativas legislativas no Congresso.  É o caso da Comissão da Verdade, apresentada agora ao Congresso na forma de Projeto de Lei, aliás bem ‘amenizado' pelo próprio governo", argumenta o deputado.



Chico Alencar lembra que o PNDH 3 é uma atualização do plano anterior, de 1996, e que foi construído por meio de um processo participativo que envolveu cerca de 70 mil pessoas. O deputado avalia o decreto 7.177, que modificou pontos do programa. "Minha avaliação é de que a onda conservadora venceu, e a abrangência do programa facilitou esse ataque forte, de diversos lados.  No geral, entendi que esse recuo é ruim para o Brasil, mas como também nem tudo que se consegue de avanço tem que estar num papel escrito, num decreto ou, se fosse o caso, numa lei, isso não prejudica demais não. Vamos continuar lutando para conseguir sedimentar uma cultura de direitos no país", diz.

 

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), que entrou nesse debate quando convidou o ministro Paulo Vannuchi para a aula inaugural deste ano, inicia com esta reportagem uma série sobre temas abordados de alguma maneira pelo 3º Plano Nacional de Direitos Humanos em discussão no país. Entre os pontos nos quais o governo voltou atrás está uma das ações programáticas que diz: "desenvolver mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União". Esta parte foi suprimida da redação original do plano. Além disso, na redação do programa, há um trecho que sugere o estabelecimento da história das religiões, especificamente as de matriz africana, nas escolas públicas. É com esse tema, que envolve religião e Estado, que começamos essa série de reportagens.



O Ensino Religioso e o PNDH 3



O PNDH 3 é composto por seis eixos orientadores e em cada um deles há várias diretrizes. Às diretrizes, estão relacionados objetivos estratégicos, que por sua vez, contemplam ações programáticas. Por exemplo, no 3º eixo Universalizar direitos em um contexto de desigualdades, está a diretriz 10: Garantia de igualdade na diversidade. E nesta diretriz, o 6º objetivo estratégico é: Respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado. Para garantir este objetivo há algumas ações programáticas, entre elas a que versa sobre os símbolos religiosos em instituições públicas, e a ação programática (d), que fala sobre o ensino da história das religiões: "Estabelecer o ensino da diversidade e história das religiões, inclusive as derivadas de matriz africana, na rede pública de ensino, com ênfase no reconhecimento das diferenças culturais, promoção da tolerância e na afirmação da laicidade do Estado".



Em palestra na EPSJV/Fiocruz , o ministro Paulo Vannuchi justificou a inclusão do trecho que sugere o impedimento de ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos pelo fato de o Estado brasileiro ser laico. A laicidade implica que nenhuma religião deve ser professada pelo Estado e, ao mesmo tempo, assegura a existência de todos os cultos. Dessa maneira, explicou, ter um crucifixo em um Tribunal de Justiça, por exemplo, é uma agressão a quem não professa aquela crença. Ele exemplificou ainda com situações em que a própria religião estivessem em pauta na questão judicial a ser resolvida. Como garantir a isenção com a ostentação de um símbolo religioso nesse tipo de prédio público?



Já a discussão sobre o estudo da história das religiões se confunde muitas vezes com a defesa do ensino religioso. O professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Carlos Jamil Cury, concorda com a importância de se estudar a história das religiões na escola, conforme sugere o PNDH. "Eu sou favorável que se conheça a história das doutrinas religiosas, sobretudo num país como o Brasil, que tem uma vinculação no seu nascedouro com o cristianismo, e que tem depois as religiões dos nossos indígenas e as advindas da África Negra. É fundamental estudar isso", diz.



O professor ressalta, entretanto, que isso não significa de nenhuma maneira se praticar proselitismo religioso, ou seja, a pregação de determinada religião. Ele lembra o exemplo da França, onde já na educação primária, as crianças têm uma introdução sobre o que são as religiões. "Deste ensino [da história das religiões] não deve decorrer outra coisa que não o conhecimento, o respeito e a tolerância", opina.



Formas de ensinar





Diferente dessa história das religiões, que o PNDH propõe, é a discussão sobre o ensino religioso como parte do currículo escolar, que é antiga e polêmica. A mesma Constituição que diz que o Estado brasileiro é laico, garante a existência de ensino religioso nas escolas, o que por vezes, se manifesta de forma confessional (sobre determinada religião em detrimento de outras), já que a Constituição não especifica de que forma devem ser os conteúdos.  A Carta diz que a oferta da disciplina é obrigatória no ensino fundamental, mas a adesão dos estudantes à matéria é facultativa. Em 1997, a lei federal 9.475 modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) no que diz respeito ao ensino religioso, incluindo que é vedado qualquer tipo de proselitismo e que os sistemas de ensino devem ouvir uma "entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso".



Em 2008, no entanto, o governo federal assinou um acordo com a Santa Sé - órgão máximo de deliberação da Igreja Católica - que prevê, entre outros termos, a garantia do ensino religioso confessional nas escolas públicas de ensino fundamental, tanto católico, quanto de outras confissões. Na ocasião, várias entidades e movimentos sociais protestaram dizendo que o acordo feria a laicidade do Estado, entretanto tanto a Câmara, quanto o Senado ratificaram a proposta.



Carlos Jamil Cury não concorda que o ensino religioso seja uma disciplina nas escolas. "Minha opinião pessoal sempre foi contrária, o melhor lugar para se desenvolver este tipo de sentimento e conhecimento é nos respectivos cultos. Hoje, há vários cultos que detêm emissoras de rádio, televisão. E existem as famílias também, que podem promover este conhecimento. A escola deve ter uma posição de neutralidade", diz.



Para o professor, é difícil avaliar a situação da oferta de ensino religioso em todo o Brasil, já que não há uma pesquisa abrangente o suficiente para se garantir um panorama. Ele afirma, entretanto, que se pode dizer que há uma diversidade muito grande na oferta, já que cabe aos sistemas de ensino normatizarem a questão. Além disso, ele pontua que existem muitas dificuldades para que funcione uma entidade civil, como garantido pela LDB, com a função de definir o conteúdo do ensino religioso."Eu tenho uma suspeita, pelo que já avaliei e estudei, que a constituição desta ‘sociedade civil' é bem pequena. Você não pode comparar o grau de organização que a igreja católica tem com igrejas reformadas que são articuladas, mas que não têm uma centralização de poder como tem a católica. E, nas igrejas pentecostais, budistas, espíritas e para outras formulações de caráter transcendental, existe uma variabilidade muito grande".



Segundo ele, uma questão a ser levantada também é se as escolas deixam claro no momento da matrícula que o ensino religioso é facultativo. O professor explica ainda que a LDB afirma que caso o estudante opte por não assistir a disciplina, a escola deve oferecer uma outra atividade. "Nas antigas legislações educacionais isto estava colocado em lei, atualmente foi normatizado em dois pareceres do Conselho Nacional de Educação. O Conselho deixou claro que os alunos que não optam não podem ficar ao léu, devem ter atividades paralelas cujo conteúdo e metodologia devem fazer parte do projeto pedagógico da escola", aponta Carlos Jamil Cury, que era presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação quando os pareceres foram aprovados.



O jornalista Márcio Alexandre Gualberto, do Ilê Axé Iya Omo Eja e da Plataforma Brasileira pelas Ações Afirmativas, também acredita que o ensino religioso não deve se constituir como uma disciplina nas escolas. "Se vai falar de uma religião, seria necessário falar de todas e para estudar a história das religiões, inclusive a de matriz africana, há outras disciplinas que dão conta disso. No caso das religiões africanas poderia se estudar dentro de história da África", opina.



Carlos Cury argumenta que o ensino deve ter uma abordagem transversal, como a LDB incita. "Isso você pode aprender, por exemplo, se eventualmente ler uma poesia, um conto, que de repente envolva uma dimensão religiosa, e aí se diz que o autor da poesia, por exemplo, é mulçumano. E aí você diz: o que é mulçumano? E pode começar a explicar", distingue. O pesquisador identifica que em alguns casos, onde há a sociedade civil constituída como regula a LDB, a comissão tem apostado em um estudo mais aberto, baseado em valores transcendentais, de forma mais ecumênica, sem falar de alguma religião especificamente.





Intolerância religiosa



Márcio Alexandre lembra o caso de uma professora da cidade de Macaé, no Rio de Janeiro, que sofreu uma punição da direção da escola por ensinar conteúdos relacionados à religião africana. A professora chegou a ser afastada da sala de aula. "Ela foi explicar o que significa Exu, que é o responsável pela comunicação entre os seres humanos e os orixás. Mas existe uma interpretação equivocada que relaciona a imagem de Exu com o diabo, quando na verdade não existe esta dicotomia entre bem e mal no candomblé. Aí, por a professora ter tentado fazer essa explicação, virou um banzé na escola", conta.



Para Márcio, existe esta intolerância, sobretudo, com relação às religiões de matriz africana, porque as pessoas não as conhecem de fato. "Há uma visão reducionista de que o candomblé é todo mundo recebendo santo e nada mais, quando na verdade, isso é apenas a ponta do iceberg. Quando a pessoa conhece, passa a não discriminar. Quando as pessoas entenderem o que é o candomblé, verão que não tem nenhum bicho de sete cabeças", aposta. O jornalista conta que está em curso a campanha Quem é de axé diz que é! promovida pelo Coletivo de Entidades Negras (CEN) e com o apoio de várias organizações. A campanha pretende incentivar as pessoas que professam religiões de matriz africana a responderem corretamente sobre a religião que pertencem no censo de 2010. Segundo Márcio, pelo preconceito que ainda há em torno dos praticantes dos cultos africanos, muitas pessoas omitem esta informação.



"Para além do Plano Nacional de Direitos Humanos, queremos sensibilizar o governo federal para a necessidade de convocar a Conferência Nacional de Liberdade Religiosa", afirma. Márcio diz que a expectativa é a de que a Conferência seja realizada em 2011 e que já começou o diálogo com outras religiões e com o próprio governo para que a atividade aconteça. "A gravidade deste preconceito é muito maior do que a gente imagina, podendo causar até a morte, como já aconteceu", conclui.