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Modelo de gestão por Organizações Sociais pode ser inconstitucional

Fóruns de saúde popular e em defesa do SUS se articulam para pressionar STF a barrar o modelo das OS.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 11/06/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


 Fóruns de saúde popular e em defesa do SUS se articulam para pressionar STF a barrar o modelo das OS.



 



Proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) questiona se as Organizações Sociais (OS) são compatíveis com a Constituição brasileira. A Adin pode ser julgada ainda neste semestre no Supremo Tribunal Federal (STF). Pela lei 9.637/1998 , que institui as Organizações Sociais, podem ser declaradas OS pessoas jurídicas sem fins lucrativos que atuam em diversas áreas de interesse público, entre elas, a área da saúde. Desde então, este modelo de gestão passou a ser mais fortemente vislumbrado como uma possibilidade para resolver alguns problemas enfrentados na saúde pública.



Os Fóruns populares de saúde do Paraná, Alagoas, Rio de Janeiro, São Paulo e Londrina iniciaram uma campanha pela procedência da Adin. Circula pela internet um abaixo-assinado contra as Organizações Sociais.



Lucas Rodrigues, do Fórum Popular de Saúde do Paraná, afirma que a articulação tem o objetivo de mostrar ao Supremo o descontentamento da sociedade civil organizada com o modelo de gestão das OS. "A desculpa era que as OS trariam economia de recursos, facilitariam a gestão, só que o que temos visto na prática é uma precarização tanto das condições de trabalho, quanto dos serviços de saúde nos locais em que elas foram implantadas", diz. Lucas denuncia que as Organizações Sociais que passaram a gerenciar os serviços de saúde estão visando ao lucro, ao invés de priorizarem um atendimento eficiente à população. Ele cita o exemplo do estado de São Paulo. "No serviço de ambulância do estado de São Paulo, a OS que o administra ganha por quilômetro rodado, então, mesmo podendo carregar duas pessoas, eles carregam uma só porque com isso lucram mais. Na verdade, o lucro acabou sendo colocado acima da política pública", critica.



De acordo com o Fórum de Saúde de São Paulo, cerca de 60% dos serviços de saúde do estado já estão sob gestão das Organizações Sociais. Paulo Roberto Spina, integrante do Fórum, relata que quando foi aprovada a lei estadual que garantiu a existência das OS apenas instituições novas poderiam ter o modelo de gestão convertido. Entretanto, em 2009, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo alterou a lei e, atualmente, hospitais e serviços antigos também estão sendo administrados via OS. "O modelo tem suscitado muitas críticas. No início, há uma injeção maior de recursos, pintam o prédio, contratam mais profissionais, mas depois o atendimento volta a piorar e, se aquela região não interessa mais, simplesmente a OS a abandona", afirma.



No município do Rio de Janeiro, as Organizações Sociais estão sendo implantadas na gerência dos Programas de Saúde da Família (PSF). De acordo com o vereador Paulo Pinheiro (PPS/RJ), um dos que votaram contra a proposta, instituições que se tornaram OS tem problemas jurídicos, como processos por desvio de verbas. "Até agora não melhorou em nada o atendimento aqui no Rio de Janeiro. Temos muitas confusões, muitos problemas trabalhistas, carteiras presas não assinadas, pagamentos atrasados, não funcionamento das unidades", aponta.



Para Paulo Roberto Spina, o modelo fragmenta o sistema de saúde. "Temos chamado de Sistema Fragmentado de Saúde", avalia.



O professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), Ruben Mattos, lembra que o modelo das Organizações Sociais não é novo. Para ele, é o que já se fazia antes com o reconhecimento de determinadas instituições como de utilidade pública. "A diferença é que como está sendo desenvolvido no governo federal, em alguns estados e municípios o modelo tem sido acompanhado de algumas facilitações do ponto de vista da execução de contratos com o governo", explica.



Ruben ressalta também que o Sistema Único de Saúde (SUS) é composto por prestadores de serviço tanto governamentais quanto privados, de acordo com o desenho do SUS elaborado na 8ª Conferência de Saúde. Desta maneira, de acordo com o professor, o que está em curso com as OS não é propriamente um processo de privatização, mas um problema de outra natureza. "A crítica é de duas ordens. Primeiro, significa um processo de fragmentação da prestação de serviço em saúde. Segundo, com a OS, estabelecem-se certas formas de prestação de serviços condicionadas a determinados dispositivos que de fato são profundamente conectados à lógica da produção. Sendo na lógica da produção, uma empresa que é uma instituição privada opera isso com certa tranquilidade, mas deixa de ser capaz de inovar, crescer, acrescentar mudanças que consigam aprimorar as práticas do SUS", analisa.



Para Ruben, com este modelo, o que para ele é o principal desafio do SUS fica prejudicado.  "Se a gestão fosse pública, ações como educação permanente tomada do seu sentido pleno, ações que façam intermediações para mudança da qualidade dos profissionais, poderiam ser impetradas com mais facilidade", exemplifica.



Falta de participação e transparência



Lucas Rodrigues lembra que outro problema no modelo das Organizações Sociais é a inexistência de controle público, como está previsto no Sistema Único de Saúde (SUS). O que há na OS é um Conselho de Administração, sem caráter deliberativo e composição não paritária.



Ruben Mattos concorda e completa: "Até onde eu vi, não há nenhuma abertura ou exigência nas propostas de OS para que elas se subordinem aos processos de controle social. Aliás, esta proposta seria interessante para o aprimoramento da gestão nesta modalidade", diz. O professor ressalta, entretanto, que é difícil as OS aceitarem esse tipo de participação.



Modelo de contratação



Um aspecto bastante controverso das Organizações Sociais é a forma de contratação dos trabalhadores. "Quem vai determinar quem trabalha ali não é mais o concurso publico, mas o dono da OS. Dependendo de quem for o governo, muda-se a equipe da OS e perde-se a experiência daqueles trabalhadores que já estavam lotados ali. E aí isso gera uma série de problemas para a continuidade da política pública de saúde", observa Lucas.



Ruben Mattos pontua que a questão dos trabalhadores dentro do SUS também é uma reflexão importante a ser feita, já que a pressão por diminuição dos gastos com pessoal e os salários baixos provocam a saída destes profissionais do serviço público. Apesar disto, ele afirma que as OS não são também a solução para o problema. "O problema é que no arranjo do sistema de saúde do Brasil, o SUS disputa profissionais com o setor de saúde suplementar a preço de mercado. A criação da OS abre a possibilidade de oscilar a diferenciação de remuneração entre os profissionais. Por exemplo, se não há médico num PSF, a OS pode aumentar o salário até ter este profissional", comenta. O professor completa, entretanto, que a medida elimina, por exemplo, as possibilidades de um plano de carreira para os servidores. "Claro, isso se dá às custas de se borrar por completo qualquer tipo de normas internas e qualquer coisa que seria equivalente ao plano de carreira do servidor. Mas também acho que o processo de saída pela tangente por OS ou fundações públicas de direito privado não resolveria este problema, apenas taparia determinados buracos às custas de sacrificar uma coerência e uma organização maior da ação publica", localiza.



O vereador Paulo Pinheiro explica que no município do Rio de Janeiro um dos principais argumentos para a aprovação das OS foi o de que não há mais recursos financeiros para serem aplicados com pessoal. "Essa terceirização tem seguido um caminho muito ruim no Rio: primeiro foram as cooperativas, depois as fundações e agora as Organizações Sociais e isso tem sido um fracasso constante na política de saúde do Rio de Janeiro", comenta.



Soluções



O vereador conta que já protocolou o pedido de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre as Organizações Sociais. Para ele, não seria necessário modificar a gestão para se resolver os problemas do Sistema Único de Saúde. "O mesmo contrato de gestão que é feito com a Organização Social poderia ser feito com a instituição pública, cobrando dos gestores, com os próprios funcionários públicos. Eles poderiam cumprir metas", sugere.



Lucas Rodrigues acredita que apesar de existir um problema de gestão no SUS, este não é o principal empecilho para o bom funcionamento do sistema. "Passamos por todo um processo de sucateamento do Estado, sem recursos suficientes e aí se coloca todo o problema como se fosse de gestão. Mas não há como você gerir um recurso X se você tem um gasto X mais 2", reflete. O participante do Fórum Popular de Saúde do Paraná lembra que só o seu estado passou 20 anos sem concursos públicos na área da saúde.



Para Ruben Mattos, as discussões em torno de outros modelos de gestão para a saúde pública como as OS e as fundações públicas de direito privado revelam, na realidade, uma reflexão crítica sobre os limites da gestão pública, mas que isso não significa que se deve abandonar este modelo. "Eu estou de acordo com os movimentos sociais que acham que reconhecer dificuldades na gestão pública não nos leva a abandoná-la, mas sim empreender esforços de aprimoramento", diz.



O professor acredita que deve haver uma reflexão profunda sobre como resolver estes problemas. "Existem estrangulamentos produzidos pelas regras que visam a garantir transparência, mas que por vezes comprometem a ação. Este ponto exige uma discussão muito mais ampla e profunda no sentido de inventar formas de superação que, preservando efetivamente a transparência da gestão pública, não tolham a eficiência e a capacidade da ação pública", argumenta.