Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Direito à saúde: entre os planos e a universalização do SUS

Iniciativas que contribuem para o aumento do consumo de planos de saúde geram debate sobre caráter universal do SUS.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 04/05/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


A Caixa Econômica Federal está realizando estudos para oferecer planos de saúde à população de baixa renda. Embora, segundo a Assessoria de Comunicação do banco, ainda esteja no campo das intenções, sem nenhuma possibilidade concreta, esse ‘projeto' retoma a discussão sobre os investimentos na universalidade do SUS. Para Gastão Wagner, médico e professor da Unicamp, essa e muitas outras ações, como os planos de saúde de servidores públicos, mostram que o país precisa debater se de fato quer ter uma cobertura de saúde pública universal, como existe em outros países. E completa: "Há a ideia equivocada de que o SUS é um plano para pobre ou para ações estratégicas de alta complexidade", diz.



A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que é responsável pela regulamentação dos planos de saúde, divulgou que o setor faturou em 2009, R$ 63 milhões. A cobertura aumentou 4,9%, índice mais baixo, entretanto, que em 2008, quando foi verificado um aumento de 5,4%.



Para Gastão, a expansão dos planos de saúde revela a falta de políticas públicas para transformar o SUS, de fato, em um sistema universal. "As autoridades, até o momento, falam nos discursos que apóiam o SUS, mas na prática não vejo esforços efetivos. O que vemos é um subfinanciamento, uma política de pessoal muito ruim, expansão muito heterogênea. O SUS está na lei, mas não se consegue implementá-lo. Nenhum presidente até hoje assumiu a defesa do SUS", critica. O professor lembra que o próprio presidente Lula, no discurso de posse em 2003, declarou que ao final de seu mandato todos teriam um plano de saúde. "O SUS não ganhou a classe média e nem os trabalhadores, que nunca o apoiaram de fato. Sempre colocam na negociação coletiva a questão do plano de saúde. Não houve um momento em que o país debateu essa questão", opina.



A médica e professora Ligia Bahia, do Laboratório de Economia da Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, também aponta a contradição existente nas políticas públicas do país com relação à saúde. Para ela, não é possível que saúde privada e pública coexistam com investimento público. "Se nós estamos tornando o fluxo de recursos muito mais favorável para subsidiar plano de saúde fica difícil encontrar recursos para financiar o SUS, porque na realidade são as mesmas fontes. Nenhuma sociedade tem um grande sistema público e um grande sistema privado financiados com recursos públicos", observa.



Ela lembra o projeto de lei 194/2009, de autoria do Senador César Borges (PR-BA), já aprovado no Senado e enviado para tramitação na Câmara dos Deputados, que propõe a dedução fiscal do imposto de renda para os patrões que pagarem planos de saúde aos empregados domésticos. Para ela, políticas como esta, que estratificam o atendimento, já que empregados domésticos terão um plano muito pior do que os patrões, impedem a efetivação do direito universal ao SUS. "É uma proposta completamente diferente do sistema universal no qual as pessoas não são discriminadas em função da maior ou menor capacidade de pagamento", assegura.



Como funciona em outros países



O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, Gustavo Matta, explica que atualmente, em todo o mundo, três países possuem um sistema de saúde com a perspectiva do atendimento universal como um direito - Reino Unido, Canadá e Cuba. "Essas experiências acontecem de forma igual ao Brasil, o que não significa que não exista medicina privada na Inglaterra, mas é completamente residual, só para determinados serviços que o sistema de saúde não cobriria. Por exemplo, uma cirurgia plástica que não é restauradora, mas estética", pontua.



O professor relata que no caso do Reino Unido e Canadá, é permitida a existência do sistema privado, mas que em nenhum dos dois casos ela é tão sistemática quanto no Brasil. Isso sem considerar a prestação de serviço para o setor público, como acontece também aqui, mas sem que signifique custo para a população.



Gustavo lembra que na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 houve um impasse quando se discutiu se o SUS deveria ser complementado pelo privado ou não."Mas no jogo de forças e no acerto para que se fizesse avançar o texto constitucional essas emendas [de complementação do sistema público pelo privado] passaram. Então, se alterou inclusive o projeto original, que era o da 8ª Conferência Nacional de Saúde, de 1986", recorda.



Reverter a privatização



Ainda sobre os sistemas de saúde na Europa, Gustavo Matta conta que após a reforma Tatcher [implementada pela primeira ministra britânica Margaret Tatcher] alguns serviços de saúde que antes eram públicos foram privatizados, em função da política neoliberal. Entretanto, o modelo privatizante não ganhou força. "O sistema de proteção do Reino Unido era tão forte que ela [Margaret Tatcher] não conseguiu nem fazer cosquinha. A sociedade britânica tinha uma grande identidade com o sistema de saúde e se sentia protegida por ele".



No caso do Brasil, Matta afirma que uma grande dificuldade é que as pessoas não se sentem protegidas pelo SUS. "Qual é a confiança que nossos usuários de SUS têm de serem imediatamente atendidos em suas necessidades? Nas grandes metrópoles isso é praticamente inexistente, você vai encontrar filas, falta de pessoal, marcação de consulta com senhas, necessidade de se chegar de madrugada", reflete.



Ligia Bahia destaca que o Brasil está caminhando no sentido inverso ao dos Estados Unidos, que, com a recente proposta de reforma da saúde, tenta reverter a grande participação dos planos e incrementar o sistema público. "A reforma Obama se baseou nos problemas de negação de cobertura dos planos de saúde. Porque não basta ter o plano: é só ver o que acontece nos EUA, que é o país com o maior consumo de planos do mundo. Há uma ideia completamente errônea de que este tipo de consumo significa boa saúde", afirma.



Para a professora, a existência de planos de saúde é uma "proposta atrasada do ponto de vista da modernidade". E, inclusive, já foi rechaçada por muitos países capitalistas por eles entenderem que a saúde é um campo complexo, no qual é preciso que o Estado atue fortemente na regulação tanto do lado da demanda quanto do lado da oferta.



Ligia acrescenta que é preciso que os profissionais da saúde e pessoas envolvidas com o tema sejam mais veementes na defesa do sistema público e contra os planos, para que a saúde não seja encarada como mais um bem de consumo. E convida à reflexão sobre o modelo consumista que reforça a existência de classes sociais: "Os trabalhadores são consentidores passivos desta agenda da transformação dos brasileiros em consumidores de baixo impacto. São consumidores de geladeira, de automóveis, de planos de saúde baratos...É importante que o poder de consumo aumente. Mas de qual consumo estamos falando? Do relacionado a melhores condições de saúde ou daquele relacionado à inserção do Brasil como apêndice periférico da economia mundial? Para onde esse modelo nos leva? Vamos ter um país que é poluído, onde as pessoas compram geladeiras, mas não têm lazer, um país que continua com altíssimos índices de violência e uma imensa desigualdade", conclui.





Leia mais:



Especial Público e Privado na Saúde