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Estatuto da Criança e do Adolescente

Um balanço dos avanços e debilidades na garantia dos direitos da criança e do adolescente aos 20 anos do ECA
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 14/09/2010 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47


Reportagem publicada na revista Poli nº 12, de julho/agosto de 2010.



No dia 13 de julho deste ano, completam-se 20 anos da aprovação da lei 8.069, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. Nesta edição, a Poli inicia uma série especial de reportagens sobre os 20 anos do ECA, tratando dos princípios que regem o Estatuto, dos principais avanços e debilidades no setor e contextualizando os debates feitos na sociedade sobre a questão. Além disso, apresentamos uma avaliação específica sobre a garantia de um dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes: o direito à saúde.



André Netto - PMPAContexto



Em 1990, a conjuntura no Brasil era de institucionalização das conquistas democráticas que marcaram a promulgação da Constituição Federal (CF) em 1988. Foi instituída,  por exemplo, a Lei Orgânica da Saúde, que regulamentou o direito universal à saúde. A criação do ECA se deu nessa mesma esteira, buscando institucionalizar e aprofundar aquilo que a Constituição havia determinado dois anos antes, no seu artigo 227: “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.



O texto da carta magna trata, ainda, da obrigação do Estado em promover programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente. São estabelecidos, para esse item, os seguintes preceitos: aplicação de percentual dos recursos públicos destinados à saúde para a assistência materno-infantil e criação de programas de prevenção e atendimento especial para portadores de deficiência física, sensorial ou mental, que devem ter assegurada a sua integração social através de ‘treinamento para o trabalho’, da convivência e da garantia de acesso aos bens e serviços coletivos.



A proteção especial às crianças e adolescentes determinada pela Constituição abrange ainda o estabelecimento da idade mínima para o trabalho, a garantia dos direitos previdenciários, trabalhistas e do acesso do trabalhador adolescente à escola e trata dos procedimentos a serem tomados em relação a jovens que cometem atos infracionais, especificando as particularidades da condição de pessoa em desenvolvimento característica de crianças e adolescentes. Em 1988, também foi instituído o estímulo, pelo Estado, ao acolhimento de crianças e adolescentes órfãos ou abandonados; a responsabilidade do Poder Público em elaborar programas de prevenção e atendimento específico para menores de 18 anos dependentes de drogas; a punição severa de abuso, violência e exploração sexual de crianças ou adolescentes; o papel do Estado em assistir os processos de adoção; e a inimputabilidade penal de menores de 18 anos.



Com essas garantias, o Brasil se tornou pioneiro em assegurar legalmente princípios que vinham sendo discutidos em todo o mundo. Um ano depois, em 1989, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprovou a Declaração dos Direitos da Criança, baseada nos mesmos princípios assegurados na Constituição brasileira. O Brasil adotou a convenção da ONU, que começou a ter vigência internacional em outubro de 1990. Mas antes disso, em julho, os pilares elaborados em 1988 já tinham virado legislação específica no Brasil, com a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente.



Aprofundando e detalhando os direitos constitucionais, o ECA é dividido em dois livros: o primeiro trata da proteção e garantia de cada um dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes; e o segundo aborda os órgãos responsáveis por essa garantia e detalha os procedimentos de proteção, inclusive nos casos em que crianças e adolescentes cometem atos infracionais. O ECA define como crianças as pessoas de até 12 anos incompletos, e como adolescentes aqueles que têm de 12 anos completos até 18 anos.



Da situação irregular à proteção integral



“Art. 1º - Esta lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente”. A primeira frase do ECA, que pode parecer apenas uma introdução do que virá a seguir, explicita, na verdade, a principal mudança por ele instituída. A noção de ‘proteção integral’ defendida pelo Estatuto rompe com anos de práticas baseadas na culpabilização das próprias crianças e adolescentes por suas condições precárias.



É o que explica Ana Karina Brenner, pesquisadora do Observatório Jovem da Universidade Federal Fluminense (UFF): “A promulgação do ECA foi um avanço enorme em relação à legislação anterior, o Código de Menores, que baseava-se na culpabilização do sujeito criança por sua pobreza e outras mazelas. Isso porque o Código partia da doutrina da situação irregular, que encarava tudo aquilo que fugia da ordem – como pedir dinheiro, estar fora da escola, estar na rua – como irregularidade e responsabilidade dos sujeitos. O papel do Estado era recolher os responsáveis pela irregularidade e tirá-los do convívio social. Depois pensava-se no que fazer com eles”, conta.



A grande mudança do ECA é basear-se na doutrina da proteção integral, que entende que crianças e adolescentes precisam ser protegidos em todas as situações e que a responsabilidade de garantir isso é do Estado. “Se uma criança está vivendo na rua, há uma razão para isso. Com o ECA, o Estado passa a ser responsável por buscar essas razões e modificá-las. Se os pais estão sem condições de mantê-la em casa, o Estado tem que proporcionar aos pais essas condições. É preciso olhar para o contexto e atuar sobre  ele para proteger a criança. O ECA altera a situação desse indivíduo: a ideia não é mais de institucionalizá-lo e depois pensar no que fazer, e sim garantir a sua convivência familiar e comunitária”, explica Ana Karina.



Só para países desenvolvidos?



A compreensão de crianças e adolescentes como sujeitos de direito, respeitados em suas condições de pessoas em desenvolvimento, tem uma série de implicações. Além da garantia da prioridade absoluta na formulação de políticas públicas, a ruptura com a doutrina da situação irregular estabelece a priorização de medidas de proteção socioeducativas, o que rompe com a lógica da punição e ‘encarceramento’ dos abrigos. A partir daí, muitas das críticas conservadoras ao ECA apontam que a lei, num país como o Brasil, serviria para ‘proteger infratores’. O argumento se baseia na lógica de que, em países com altos índices de criminalidade, a proteção a crianças e adolescentes serve de respaldo para que esses cometam crimes. A conclusão é a de que leis como essa ‘são muito boas para países de primeiro mundo, mas não servem para nós’.



Ana Karina Brenner rebate essa afirmação. Segunda a pesquisadora, são justamente as características do Brasil que fazem o Estatuto ser ainda mais necessário: “Nos países desenvolvidos já há garantias básicas, não há necessidade de uma lei que imponha isso. No Brasil,  o ECA é absolutamente necessário do modo como está posto, porque é assim que vamos correr atrás do básico para conseguir chegar no segundo plano da discussão de direitos. As desigualdades no Brasil são profundas e precisamos de leis que incidam muito fortemente sobre elas, e não que as naturalizem”, defende.



O papel dos conselhos



A criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente foi determinada pelo ECA como uma das principais diretrizes da política de atendimento às pessoas em desenvolvimento. Esses conselhos, segundo a lei, são órgãos deliberativos e controladores das ações de atendimento em todos os níveis, com participação popular paritária assegurada através de organizações representativas.



Para João Batista Saraiva, juiz de direito do Rio Grande do Sul e titular do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Santo Ângelo, os conselhos cumprem papel muito importante para a perspectiva de democracia participativa. “Temos, porém, que avançar em alguns aspetos. O primeiro é a legitimação da composição desses conselhos, que deve ser mais democrática e representativa possível. O segundo é a possibilidade, que ainda hoje existe, de coerção às suas deliberações. Elas acabam ficando muito no plano das recomendações, e avançam pouco efetivamente. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, o Conanda, faz um grande esforço para sua efetividade, mas ainda é preciso aprimorar esses instrumentos”, avalia.



Políticas públicas e setor privado



“O grande desafio do ECA ainda é o de ter políticas que acompanhem o avanço da legislação, para que ela possa ser efetivada”, sintetiza Ana Karina Brenner. O balanço é compartilhado por João Batista Saraiva: “Somos muito críticos e exigentes, mas se fizermos um balanço dos últimos 20 anos, veremos que avançamos muito. Isso se dá especialmente do ponto de vista da consciência. Há ainda pessoas que têm uma percepção equivocada, que acham que a luta pela garantia dos direitos das crianças e adolescentes é ‘utópica’ ou mesmo ‘defesa de marginal’, o que é uma retórica reacionária. Mas avançamos muito, a consciência da sociedade tem mudado e os governos têm conseguido avançar na linha da implementação da doutrina da proteção integral por via das políticas públicas, o que segue sendo o grande desafio”, avalia.



Como principal carência para a formulação das políticas públicas na atualidade, a pesquisadora aponta a debilidade para a  produção de diagnósticos da realidade social das crianças e adolescentes. Segundo ela, faltam pesquisas que analisem historicamente mesmo a evolução do número de crianças e adolescentes na população brasileira: “Isso é um problema para elaborar políticas públicas. Como atender um segmento específico da população sem saber quem é essa população e o que ela demanda?” questiona. Ana Karina destaca que essa função deveria ser cumprida pelos conselhos, que hoje carecem de técnicos e recursos financeiros para elaborar diagnósticos. Ela destaca que, quando isso foi feito, os resultados foram muito positivos. “Há dois anos o Conanda abriu uma linha de financiamento para diagnóstico de unidades de internação, o que foi bem interessante. O objetivo era conhecer o perfil dos trabalhadores das unidades de internação e dos jovens que lá estão. A partir daí se desenvolveram pesquisas, os estados e municípios apresentaram projetos que foram aprovados e financiados para implementar o diagnóstico”, exemplifica.



Nesse cenário, um dos grandes debates referentes à implementação das políticas públicas refere-se ao papel desempenhado por fundações privadas e, sobretudo, Organizações Não Governamentais (ONGs), que têm muito peso no setor. Segundo Ana Karina Brenner, a relação entre ONGs e Estado tem sido complexa, com pontos positivos e negativos: “Hoje há uma escassez de recursos, o que acaba gerando uma disputa pelas verbas. Políticas públicas devem ser executadas pelo Estado e não por ONGs, que podem ser ‘tubos de ensaio’, promovendo experiências inovadoras para que se veja se e como dão certo. Mas é o Estado que tem condições de implementá-las em larga escala, porque as ações das ONGs serão sempre pontuais”, analisa.



Saúde  das crianças e adolescentes