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14ª CNS: desafios em relação ao acesso estarão na base das discussões

Fortalecimento da atenção básica, gestão de filas de espera e ampliação de horários de atendimento são apontados como medidas importantes para ampliar o acesso
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 13/05/2011 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

As imagens são comuns a muitas reportagens apresentadas na televisão, em jornais ou revistas sobre os problemas do Sistema Único de Saúde (SUS): enormes filas para conseguir atendimento, espera nos corredores de hospitais, pessoas que aguardam meses para conseguir fazer exames e outros exemplos de dificuldade no acesso aos serviços são constantes. O reconhecimento desse problema e a busca por soluções vão nortear a 14ª Conferência Nacional de Saúde. Com o tema ‘Todos usam o SUS! SUS na Seguridade Social, Política Pública, patrimônio do Povo Brasileiro', a Conferência terá ‘Acesso e acolhimento com qualidade: um desafio para o SUS' como eixo para as discussões.

Na verdade, todo mundo é, de uma forma ou de outra, usuário do SUS. O alcance das campanhas de vacinação e a distribuição gratuita de medicamentos para doenças crônicas talvez sejam alguns dos maiores exemplos disso. Mas e na hora de agendar consultas com especialistas ou exames, será que o acesso se dá satisfatoriamente? Será que todo mundo consegue ser bem atendido - e pelos profissionais adequados - quando procura uma unidade de saúde? E de que forma as barreiras encontradas pela população nesse processo
interferem no princípio da universalidade do sistema? "A universalidade implicaria que qualquer pessoa, a qualquer momento, frente a uma necessidade, independentemente da sua condição de pagar, teria o cuidado de que necessita", define a pesquisadora Cláudia Travassos, do Instituto de Comunicação de Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz). E, de acordo com ela, essa ainda não é a realidade no Brasil.

Apesar disso, o percentual da população que usa serviços públicos de saúde vem aumentando consideravelmente. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE) tem aplicado, a cada cinco anos, um
questionário suplementar sobre saúde que permite observar essas mudanças. Segundo a pesquisa, entre 1998 e 2008 cresceu de 41,8 para 56,8 o percentual de pessoas entrevistadas que afirmaram usar regularmente postos ou centros de saúde. A Pnad traz ainda outro dado importante: no mesmo período, houve um crescimento de 49% para 56% no número de atendimentos e internações realizados pelo SUS.

Tipos de acesso

Mas ‘entrar' no sistema usando algum serviço não significa necessariamente ter um acompanhamento continuado. Cláudia observa que, ao se discutir acesso, é preciso em primeiro lugar definir a que estamos nos referindo. "O termo sempre diz respeito à oferta. Entretanto, ele pode ser visto de mais de uma maneira. A primeira é uma forma restrita, considerando o processo que vai desde o momento em que uma pessoa decide usar um serviço de saúde até usá-lo. Esse conceito restrito, da entrada, é muito útil", explica, completando: "E existe um outro importante ponto de vista que diz não ser suficiente apenas entrar no sistema. É preciso entrar, ter o tratamento adequado, no momento correto, com o profissional certo, e ter o melhor resultado daquele acesso".

A pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz) Cristiani Machado considera fundamental ter esse acesso ampliado. E, para ela, um aspecto importante para garantir isso é a integração entre os serviços. "Uma pessoa pode ter acesso a um atendimento na atenção básica, mas aquele serviço precisa estar articulado a outros para garantir a continuidade: ela precisa ser encaminhada para fazer um exame, para um especialista, para fazer determinados tratamentos e assim por diante", explica.

Cristiani considera que a atenção básica é uma chave para estruturar o sistema de saúde e melhorar o acesso a outros níveis de complexidade e, de acordo com ela, a Estratégia Saúde da Família (ESF) tem sido fundamental para esse fortalecimento. O Ministério da Saúde calculava, em 2003, que 35,7% da população brasileira era atendida pelo então chamado Programa Saúde da Família (PSF). Em 2008, o IBGE mostrou um aumento considerável nesse percentual: 47,7% dos domicílios que participaram da Pnad declararam estar cadastrados na ESF.

Mas, para realmente garantir o fortalecimento do sistema, é preciso assegurar a tal continuidade a que Cristiani se refere. Um elemento positivo nesse sentido, de acordo com ela, é a implementação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), criados em 2008. Enquanto as equipes de saúde da família são compostas por médico, enfermeiro, auxiliar ou técnico de enfermagem e agente comunitário de saúde, podendo contar também com dentistas, os Nasf têm outros tipos de profissionais, como assistentes sociais, fisioterapeutas, ginecologistas, pediatras e psicólogos. "Eles podem ajudar as equipes a receber melhor pessoas com diferentes problemas. Essa iniciativa tem impacto no acesso a determinados tipos de serviços e na sua qualidade", avalia Cristiani.

Barreiras

No entanto, ela diz que é preciso reconhecer as limitações que ainda existem na organização da atenção básica. Para a pesquisadora, uma das questões fundamentais, e que nem sempre é tratada pelos municípios, é o horário de atendimento. "Quando se pretende ampliar o acesso por meio de uma atençãobásica de qualidade e resolutiva, é necessário disponibilizar horários expandidos para isso. Unidades que só funcionam no horário comercial representam uma barreira, pois as pessoas trabalham e acabam adiadiando o atendimento", observa. A disponibilidade de profissionais também é importante: "Muitas vezes, as pessoas procuram um posto de saúde, por exemplo, mas o profissional não está lá ou a unidade está fechada. Em outros casos, se o usuário não for bem recebido e bem atendido, ele pode não conseguir o atendimento adequado", afirma Cristiani.

Outra questão que dificulta o acesso são as longas esperas para determinados procedimentos. E, para a pesquisadora, a falta de gerenciamento das listas de espera faz com que o problema se agrave. "Ter listas organizadas e conhecer os problemas das pessoas pode melhorar as condições de acesso. Se os usuários precisam esperar quatro meses para uma determinada consulta, o percentual de falta quando a data finalmente chegar será altíssimo - a essa altura, as pessoas já terão resolvido seus problemas de outra forma. E, muitas
vezes, a unidade não consegue colocar outras pessoas para serem atendidas no lugar das ausentes", aponta Cristiani.

Cláudia concorda: "É difícil imaginar um sistema absolutamente destituído das filas. O problema é que às vezes sequer temos as filas devido ao alto grau de desorganização. Quando se sabe quantas pessoas precisam de determinada cirurgia, é porque elas já foram ao médico, ele já fez a indicação e elas entraram em uma fila organizada para serem atendidas de acordo com suas necessidades. Esse é o processo correto. É diferente de a gestante que está parindo ser ‘empurrada' de uma maternidade para a outra porque não há como
ser atendida. Isso não é fila, é desorganização".

Sobrecarga

Barreiras como as descritas acima dificultam a entrada no sistema e acabam congestionando as emergências, onde a questão do acesso aparenta ser mais grave. No entanto, Cláudia chama a atenção para o fato de que essa sobrecarga é apenas uma consequência de problemas anteriores no acesso: "Quanto maior a proporção de casos não emergenciais atendidos nesses locais, mais forte é o indicativo de problemas de acesso nos locais corretos - na atenção básica ou em especialistas, por exemplo", diz. Cristiani concorda: "Se uma pessoa procura uma unidade de saúde da família, por exemplo, e ela está fechada ou sem profissionais, ou ainda se ela só consegue marcar uma consulta para dali a três meses, é claro que vai acabar indo para uma emergência ou para uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA)", diz.

Assim, nem sempre uma pessoa chega ao sistema pela atenção básica, embora essa deva ser a porta de entrada preferencial. Se alguém não costuma ter acesso a serviços de saúde e, de repente, em um momento de crise, precisa ir a uma UPA ou uma emergência, como deve ser o acolhimento para que essa pessoa entre e permaneça no sistema? "Os profissionais desses locais não devem apenas solucionar o problema imediato, mas também encaminhar aquela pessoa para que ela seja acompanhada. Nosso objetivo é ter uma atenção básica de qualidade e que seja a porta de entrada preferencial do sistema, mas qualquer ponto da rede tem que estar preparado para servir como porta de entrada e como facilitadora do acesso", diz Cristiani.

Cláudia lembra que esses problemas, especialmente as filas, não são exclusividade do sistema brasileiro: "Sempre que há sistemas que se pretendem universais, essas questões aparecem", observa. Mesmo em países com sistemas antigos e desenvolvidos, como Canadá e Inglaterra, os tempos de espera são longos. Cristiani aponta que, nesses países, a gestão de listas e o estabelecimento de horários flexíveis têm sido apontados na literatura internacional como medidas importantes. "Além disso, a organização da atenção primária também
é fundamental. Na Inglaterra, em que procuramos nos inspirar, há médicos generalistas responsáveis por populaçõesespecíficas que mediam a integração com outros serviços", diz.

Leia mais sobre a 14ª Conferência Nacional de Saúde aqui.