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Silêncio em nome de qual desenvolvimento?

Estudo ouviu a versão dos grupos indígenas afetados por Belo Monte e revelou os impactos na vida dessas populações que os discursos e relatórios oficiais subestimam
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 06/06/2012 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O que os grupos indígenas afetados pela hidrelétrica de Belo Monte teriam a dizer sobre o assunto se tivessem a chance de se pronunciar sobre o empreendimento? A busca por respostas a essa pergunta levou alguns pesquisadores até a região do Pará conhecida como Volta Grande do Xingu, em referência à geografia sinuosa do rio, moradia secular da população afetada. Uma dessas pesquisadoras é Cecília Mello, professora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ippur/UFRJ), que falou sobre o trabalho, baseado em entrevistas, no seminário ‘Desigualdade Ambiental e Regulação Capitalista: da acumulação por espoliação ao ambientalismo-espetáculo’, promovido nos dias 31 de maio e 1º de junho pelo Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN).

Foram ouvidas duas etnias no trabalho: os Juruna e os Arara. De acordo com a professora, além da pergunta que abre essa matéria, outras questões nortearam o estudo, sempre na perspectiva da justiça ambiental. “E se os processos de tomada de decisão política incorporarem como critério que não deverá haver impactos desproporcionais de grandes obras sobre grupos sociais vulnerabilizados? E se esses grupos puderem fazer valer seus modos de vida?”, mencionou, para caracterizar a situação oposta, que ocorre com os indígenas da região da Volta Grande, que veem seus modos tradicionais de fazer, criar e viver em xeque.

A hidrelétrica de Belo Monte tem suas origens no quadro de desenvolvimentismo autoritário brasileiro em que o investimento em grandes obras de infraestrutura obedecia à lógica de reordenamento territorial que visava à integração da Amazônia ao restante do país, explicou Cecília. Para ela, desde então, muito e pouco mudou. “Apesar dos ganhos da Constituição de 1988, que permitiram que a sociedade civil organizasse um processo de luta e resistência sem paralelos em defesa dos povos do Xingu, hoje o que se observa é a retomada de um processo controverso e sua aprovação, à revelia da legislação ambiental e das convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, como a 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], além da própria Constituição, da medida cautelar impetrada pela OEA [Organização dos Estados Americanos] e das inúmeras ações judiciais que correm na justiça brasileira, enfim, de todas as tentativas da  sociedade de salvaguardar minimamente os direitos e impedir um desastre socioambiental de grandes proporções”, citou.

A professora explicou que, ao longo da última década, o projeto de Belo Monte foi se modificando para evitar a inundação das terras indígenas. Mas, o que poderia parecer um mérito, é, na avaliação da pesquisadora, uma mudança inócua. “Na prática, a mudança conduz a outro impacto tão ou mais grave: ao invés de alagar as terras indígenas, o projeto, ao desviar do curso do rio Xingu, prevê a secagem de cem quilômetros da Volta Grande. Uma série de comunidades ribeirinhas e indígenas será afetada não pelo excesso de água, mas pela falta”.

Segundo os relatórios técnicos do Ibama e o Estudo de Impacto Ambiental, não há garantia de manutenção da biodiversidade, da navegabilidade do rio, da reprodução das espécies, da viabilidade da pesca, do comércio e, portanto, das relações sociais em geral, lembrou Cecília. “A construção da barragem e dos gigantescos canais por onde se desviará o rio [um deles é da ordem de grandeza do Canal do Panamá] e a instalação da hidrelétrica propriamente dita, afetarão por completo o regime de cheias e vazantes em torno do qual se organiza a vida dos povos da região. Umas das atividades afetadas será a agricultura de vazantes”, exemplificou, acrescentando: “Os indígenas explicam que com o rio permanentemente cheio acima da barragem, dificilmente será possível capturar os peixes, que fugirão facilmente. Com o rio permanentemente seco abaixo, vai haver uma rápida escassez desse recurso”.

Além disso, a pesquisadora relatou que a secagem da Volta Grande vai ter como consequência a formação de poças, o que vai favorecer o aparecimento de epidemias nas aldeias. “O próprio RIMA [Relatório de Impacto Ambiental] de Belo Monte afirma que as consequências negativas da formação de poças são muitas: a água fica parada prejudicando não só a sua qualidade como também formando ambientes mais fáceis para a proliferação de mosquitos que transmitem doenças como a malária. O que o RIMA não diz, mas é a consequência lógica do que afirma, é que o aparecimento de epidemias de malária inviabilizaria a vida não só nas aldeias, como nas comunidades ribeirinhas e assentamentos da região. Os indígenas afirmam que logicamente não permanecerão em um local onde haja doenças e que, portanto, serão obrigados a se mudar para as cidades”, explicitou.

Impactos silenciados

Durante a realização das entrevistas, chamou atenção da professora a completa desinformação dos indígenas sobre questões essenciais para sua vida, como a qualidade da água. “Mais do que afirmativas, eles traziam questões. Um deles afirmou: ‘Hoje a gente bebe água do rio e toma banho, vivemos em paz. Acho que somos pessoas sadias, ninguém anda com dor, coceira, tomando remédio. Numa obra, usa muita química, bomba para destruir pedra, cimento... como vai ficar a água?’”, citou, completando: “As autoridades dizem que ‘vão dar um jeito’, mas não explicam que jeito é esse”.

Ainda em relação à qualidade da água, outra preocupação dos grupos entrevistados pelo estudo é a possível contaminação da vegetação que vai ficar submersa nas barragens. “Uma das grandes fontes de metano do efeito estufa é a decomposição dessa vegetação. Além disso, algumas árvores e cipós, como jaburandi e timbó, são conhecidas pelos indígenas como tóxicos ou venenosos e podem levar a uma grande mortandade dos peixes. Eles têm a experiência histórica do que aconteceu em Tucuruí [hidrelétrica construída no rio Tocantins entre 1974 e 1985, segunda maior do país], muitos têm parentes nessa região. Em Tucuruí, durante 15 anos, não tinha um peixe para pescar. Eles acreditam que não vai ser diferente em Belo Monte”.

Cecília contou que outra angústia dos indígenas é o sangradouro, um vertedor por onde o excesso de água da barragem será extravasado. “Quando o nível de água sobe, rapidamente na época das chuvas, essa água será lançada a jusante [abaixo] da barragem, fazendo com que o nível do rio suba repentinamente. Há uma comunidade Juruna embaixo do sangradouro e há medo de a barragem não suportar a pressão das águas”.

De acordo com a professora, para arrematar, nenhuma autoridade reconhece o mínimo de qualidade de vida que os grupos indígenas conquistaram nas aldeias em termos de infraestrutura. “Essa dimensão das vidas não aparece em nenhum momento tanto nos estudos quanto nos discursos dos técnicos da Eletronorte. Os índios são invariavelmente representados como pobres ou miseráveis. Uma jovem liderança indígena afirmou: “Hoje, a nossa aldeia tem um posto de saúde, auxiliar de enfermagem, escola, cada um tem a sua casa com banheiro dentro, planta feijão, tem arroz, mandioca, faz farinha. Se a barragem chegar, como é que vamos nos estruturar novamente? Ou vão dar uma aldeia nova para gente com tudo dentro?”. De acordo com Cecília, a Eletronorte dá a entender para os indígenas que vai construir tudo novo em outro lugar.

Mudanças deletérias

A professora lembrou que, de acordo com o RIMA, um dos impactos imediatos da construção de Belo Monte será a pressão populacional sobre as terras e áreas indígenas. “O que quer dizer pressão da população migrante sobre essas terras e seus recursos naturais, disseminação de doenças sexualmente transmissíveis, exposição ao alcoolismo, prostituição e drogas. Principalmente em relação à comunidade indígena que vive no quilômetro 21, a poucos quilômetros do principal canteiro de obras que vai receber centenas de milhares de trabalhadores”, enumerou Cecília.

O mesmo RIMA que prevê um boom populacional na região subestima – e muito – o número de pessoas afetadas pela obra e pela operação da usina. “O estudo se utiliza de uma média de três pessoas por família nuclear, uma lógica urbana e mesmo assim subestimada. Na prática, essa média pode variar entre oito e 10 pessoas por família tranquilamente”, afirmou a pesquisadora.

Além disso, segundo ela, o RIMA define que somente as áreas inundáveis e as áreas de obras poderão ser consideradas como diretamente atingidas por Belo Monte. “Não se explicita em nenhum momento quais foram os critérios de definição de áreas direta e indiretamente atingidas. A consequência disso é que das nove terras indígenas afetadas por Belo Monte, apenas duas são definidas pela Eletronorte como dentro da área direta de influência. As outras estariam em áreas de influência indireta. Por exemplo, os Xipaia [tribo da etnia Juruna], que estão à montante [acima] do reservatório, serão afetados por uma mudança na hidrodinâmica do rio Iriri, que vai passar a correr mais lentamente, o que deve afetar a agricultura de vazante”.

Cecília lembrou que, do mesmo modo, os indígenas que moram na cidade de Altamira e habitam áreas de igarapés não recebem nenhum tratamento diferenciado. A questão é que esses grupos são dinâmicos, mudam da cidade para aldeias e vice-versa. “Os impactos ambientais incidem sobre um território no qual não se encontra uma população estagnada, mas grupos sociais que circulam. A intervenção no fluxo do rio através da barragem vai além da ruptura de um fluxo material e da consequente imposição de limites à viabilidade da vida aquática. A barragem interrompe adicionalmente fluxos de trocas simbólicas e materiais entre grupos que serão apartados abruptamente por uma barreira artificial. Suspende-se, assim, as práticas cotidianas de visitas, comércio, transporte, lazer, práticas rituais e religiosas e solidificam os laços de parentesco e amizade entre grupos, que mesmo morando em localidades distintas, se veem enquanto unidade, como é o caso dos indígenas que vivem ora na aldeia, ora nas cidades e também nas áreas ribeirinhas, que são os espalhados, como eles dizem, que têm na mobilidade uma dimensão importante da sua organização social”.