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Votação do Ato médico reacende discussão sobre atividades privativas

Após dez anos de criação, a PLS 286/2002 volta a ser pauta entre as comissões do Senado, mas o tema ainda não é consenso entre trabalhadoresda saúde.
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 21/12/2012 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

"Para tratar um paciente obeso, já foi o tempo em que pensávamos que ele precisaria apenas de um médico. Hoje temos de contar com um psicólogo, um nutricionista, um fisioterapeuta, entre outros, um complementando o trabalho do outro. Por conta disso, manter ou retornar o monopólio do diagnóstico terapêutico para o médico é um retrocesso". Com essas palavras, o professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, Gastão Wagner, define o substitutivo da senadora Lúcia Vânia (PSDB-GO) ao projeto que regulamenta o exercício da Medicina, conhecido como Ato Médico (PLS 268/2002), que pretende regulamentar a profissão, além de definir, entre outros pontos, as atividades privativas destes trabalhadores da saúde.

Criado há uma década, ele voltou para aprovação das comissões do Senado nestas últimas duas semanas. No dia 12 de dezembro, as Comissões de Constituição, Justiça e Cidadania e de Educação, Cultura e Esporte (CE) aprovaram o projeto e nesta quarta-feira, dia 19, ele foi avaliado pela Comissão de Assuntos Sociais (CAS). Agora o substitutivo segue para o plenário da casa com o compromisso de não ser votado em regime de urgência para que pontos polêmicos possam ainda ser debatidos nesta instância de decisão. A tramitação ainda se estenderá por algum tempo, mas o consenso entre os trabalhadores da saúde parece que não terá um fim próximo.

Para o coordenador da Comissão em Defesa da Regulamentação da Medicina do Conselho Federal de Medicina, Salomão Rodrigues, o foco da discussão sobre o PL mudou durante estes dez anos. "Essa discussão mudou o foco porque o interesse deve ser da sociedade e não o corporativo entre as profissões. Todos devem ter a sabedoria de entender isso e colocar em primeiro plano a sociedade brasileira. Com o Ato Médico, os pacientes vão saber qual é o papel daquele profissional e o que pode esperar dele", analisa.

E é justamente esta crítica que o Conselho Federal de Psicologia (CFP), por meio do Conselheiro Federal, Celso Tondin, faz ao PLS. "É com muita dor que vemos esses atos corporativistas, de ofensa à história da saúde brasileira. Na área da saúde não é possível ser tão pragmático de saber onde começa a atuação de um e onde termina a de outra. E devemos pensar na realidade de hoje, como todos têm atuado e a impacto que isso pode causar do atendimento à saúde. Se isso não é defesa de mercado, o que é então?", indaga.

Por conta de tantas divergências é que trabalhadores, entidades e parlamentares estão se dividindo em frentes opostas. De um lado, os defensores do ato médico representados por entidades como o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Médica Brasileira (AMB) e a Federação Nacional dos Médicos (Fenam). Já, do lado oposto, estão as entidades dos 13 profissionais da saúde que podem ser afetados, caso o projeto seja aprovado. Entre elas estão os Conselhos Federais e Regionais de Biologia, Biomedicina, Educação Física, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Fonoaudiologia, Nutrição, Odontologia, Psicologia, Serviço Social e de técnicos como em Radiologia e Enfermagem. Para a defesa de interesse opostos, dois movimentos foram formados: a Comissão Nacional em Defesa do Ato Médico e a Coordenação Nacional do Movimento contra o Ato Médico. "Eu não critico os médicos por regular aquilo que deveria estar regulado há muito tempo, e vale ressaltar que não o fizeram porque não era de interesse deles. A minha pergunta é: por que agora e por que interferir transversalmente nas nossas profissões? Isso não vai resolver o problema da falta de profissionais, pelo contrário, vai tirar de circuito quem já está atuando dando assistência aos usuários do SUS", avalia Gelson Albuquerque, do Conselho Federal da Enfermagem (Cofen).

Questões diversas

No primeiro parágrafo do artigo 4º do PLS, é apontada a exclusividade dos médicos na formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica. Esta é uma das questões mais polêmicas porque afeta profissionais da saúde como psicólogo e fisioterapeuta. De acordo com Gelson, do Cofen, os conceitos dão margem a diversas interpretações. A questão do parto, por exemplo, está dentro ou não do quadro nosológico? Se não, qualquer profissional da saúde pode fazer ou só o enfermeiro que está definido na nossa lei e não está no ato médico?", indaga. E explica: " Vamos ter uma série de vieses que vão ser estabelecidos por muitas demandas jurídicas, ou seja, vamos judicializar a saúde". O artigo 4º, §6º aponta ainda que este tipo de diagnóstico pode ser realizado também pelo odontólogo e médicos veterinários, ambos em suas áreas específicas.

A limitação da direção e chefia de serviços médicos no artigo 5º como atividade privativa do médico também causa polêmica. No entanto, Salomão, do CFM, mostra que não é de exclusividade destes profissionais este tipo de restrição. "Se você olhar a lei que regulamenta a enfermagem, a chefia deve ser feita por enfermeiros, a dos psicólogos também é privativa dos psicólogos e isso é correto. E isso é da mesma forma para nós, porque a lei diz que é privativa dos médicos a chefia dos serviços médicos e não os de saúde", explica.

Mas Celso Tondin questiona a redação dos serviços médicos que são formados muitas vezes por equipe multidisciplinar. "Não tenho dúvidas de que a classe médica está em busca de garantir espaço de trabalho, mais do que de regulamentar sua profissão conforme justificam", defende Celso. E ainda acrescenta: "É claro que a equipe formada por psicólogo tem de ser chefiada por psicólogo e a de enfermeiros a mesma coisa, mas o que a redação do artigo diz é que as equipes de serviços médicos, ou seja, as equipes multidisciplinares devem ser chefiadas por médico. Isso é uma desqualificação dos demais", justifica.

Para Gastão Wagner, este movimento por parte de diferentes profissões está ferindo o princípio da integralidade e caminhando na contramão do que é defendido pelo SUS. "Se for levada ao pé da letra toda esta regulamentação, o trabalho interdisciplinar do SUS será totalmente prejudicado. Outros sistemas nacionais de saúde incorporaram a questão interdisciplinar desde a atenção primária até a atenção hospitalar, mas com tantas barreiras isso vai ficar inviável", analisa. E exemplifica: "Hoje em dia, no mundo todo, a qualidade da prática clínica é vista também pelo autocuidado. Cuidadores, familiares e pacientes balizaram alguns procedimentos que antes eram monopólio dos médicos, por exemplo, o controle de glicemia, da pressão arterial. Estamos descentralizando e capacitando o usuário para que ele se cuide e a maioria destes profissionais quer tirar essa possibilidade de outras profissões ou do usuário comum. A relação entre as práticas profissionais e a interprofissionalidade, da clínica compartilhada, do ideal do autocuidado, se contrapõem ao Ato Médico e aos outros atos. Isso é interesse de mercado e corporativismo".

Limitação para os trabalhadores técnicos

Técnicos como o de citopatologia também serão afetados pelo projeto do Ato Médico, mas hoje já sofrem para ter sua atuação reconhecida, como você pode ver na coluna profissão da última edição da revista Poli, que aborda a formação e o papel do Técnico em Citopatologia -"Todo mundo sabe que somos nós, os técnicos, que fazemos a primeira leitura das lâminas, mas nosso nome não aparece em nenhum documento. O citotécnico faz o laudo, mas é o médico quem assina. Por isso não existimos", diz Simone Evaristo, trabalhadora do Inca e presidente da Associação Nacional de Citotecnologia em entrevista para revista Poli.

De acordo com Gastão Wagner, outras questões dentro do próprio projeto e entre outras profissões devem ser levadas em consideração. O professor lembra que os profissionais de enfermagem também já causaram limitações de atuação entre eles, os técnicos e auxiliares de enfermagem e os agentes comunitários de saúde com o PL 1317/03 , chamado ‘ato de enfermagem'. "Cabe uma crítica ao corporativismo das outras profissões. A lei da enfermagem é muito corporativa também e prejudica o SUS porque os enfermeiros estão delimitando atividades que prejudicam os técnicos de enfermagem e os agentes comunitários de saúde", lembra.

Entre as atividades que o PLD define como privativas dos enfermeiros estão o planejamento, organização, coordenação, execução e avaliação dos serviços de assistência de enfermagem, cuidados de maior complexidade técnica, prescrição de medicamentos estabelecidos em programas de saúde pública e em rotina aprovada pela instituição de saúde; e prevenção e controle sistemática de infecção hospitalar e de doenças transmissíveis em geral. A lei 7498/86 define ainda quais são as atribuições do enfermeiro, do auxiliar e do técnico de enfermagem. Os agentes comunitários de saúde, embora não façam parte da equipe de enfermagem formalmente , são, em sua maioria, supervisionados ou acompanhados por enfermeiros lotados nas unidades de saúde. "A realidade do país é que todas as atividades da assistência de enfermagem vêm sendo exercidas pelos auxiliares e técnicos, ficando como exclusividade dos enfermeiros as atividades de chefia e supervisão. Mas pelo ato de enfermagem, os técnicos e auxiliares não podem exercer estas funções que fazem parte do seu dia a dia", questiona Jorge Viana, diretor do Sindicato dos Auxiliares e Técnicos de Enfermagem do Distrito Federal.

Para Gelson Albuquerque, do Conselho Regional de Enfermagem, esta delimitação não prejudica a atuação de cada profissional do campo da enfermagem. "A nossa legislação define com clareza quais são os papéis dos enfermeiros, dos técnicos e dos auxiliares e as atividades que são compartidas. Quando elaboramos esta regulamentação já pensávamos e acreditamos que este deve ser o caminho", explica.

O conselheiro do CFP, Celso Tondin, acrescenta que a formação profissional dos trabalhadores da saúde está voltada para a multiprofissionalidade."Temos que ter um ato de saúde, no qual o profissional multidisciplinar atende e deve buscar atender a integralidade das demandas do processo saúde-doença da população brasileira. A formação hoje, inclusive da medicina, é voltada para a integralidade, a multiprofissionalidade, e esses projetos vêm na contramão", argumenta. Nesta última década, além do Ato Médico e o da Enfermagem, outros atos também viraram projetos de lei como o dos farmacêuticos PL6435/05 - que delimita a dispensação de medicamentos somente aos farmacêuticos - e dos biomédicos com o lei 6.684/79 e atualizado com a resolução 78/02 - que interfere também na atuação de técnicos como os de análises clínicas e de radiologia.

"É claro que existem atividades exclusivas para determinados profissionais, mas é muito restrito e temporário, como qualquer coisa. Quem imaginava que o exame de glicose pudesse ser feito em casa e fora do laboratório? Isso é dinâmico e as profissionais se contrapõem. É uma luta técnica e política. O ato médico tem mais visibilidade porque temos uma visão antiga de que o médico é o líder do tratamento, mas precisamos ficar atentos a todo este movimento que vem ocorrendo nestas últimas décadas", indica Gastão.

Comentários

voto a favor do ato médico.