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Saúde e crise do capital

A garantia do direito à  saúde no contexto de crise do capital pauta intervenções de palestrantes internacionais durante seminário. 
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 02/04/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“O SUS é um patrimônio da América Latina”. Assim o professor Oscar Feo, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Carabobo, na Venezuela, começou sua fala na mesa de debate sobre a ‘saúde frente à crise do capital’, que abriu o V Seminário da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, no dia 27 de março. Sensível ao chamado da Frente para a internacionalização das lutas contra o avanço do capital e da lógica privada sobre o sistema de saúde no país, ele lembrou a importância que teve para todo o continente a definição que Sergio Arouca deu ao movimento da Reforma Sanitária Brasileira como um “projeto civilizatório”. “Desde aquele momento, o SUS não é só brasileiro. Por isso estamos aqui com vocês para defender o SUS da privatização”, disse.

Que crise é essa?

O professor venezuelano caracterizou o atual momento do capital como de uma crise “civilizatória, multidimensional, global”. Mais do que uma crise econômica, como vem sendo anunciada, trata-se, segundo Oscar Feo, de uma crise do modelo de acumulação. “O mundo é cada vez mais rico, não há crise na produção de riqueza. Mas cresce a pobreza”, explicou, destacando que os 10% mais ricos do mundo detêm 85% da riqueza, enquanto 50% da população mundial conta apenas com 1% dessa produção. De acordo com o professor, a crise alimentar, energética e ambiental são algumas das muitas expressões dessa crise generalizada. E, citando documentos norte-americanos que mostrariam como os Estados Unidos dependem da América Latina para garantir recursos estratégicos, ele alertou: “Em épocas de crise, os impérios se tornam muito mais agressivos”. A militarização do continente — segundo ele há mais de 60 bases militares na América Latina — seria uma evidência desse processo. Mas Oscar Feo considera que as estratégias atuais são muito mais complexas, porque compõem o que ele chamou de “guerra de 4ª geração”, que, combinando elementos de guerras econômica, psicológica e tecnológica, se desenvolveria por “golpes suaves”. “Os meios de comunicação são fundamentais para gerar neuroses na população”, exemplificou.

Adotando a perspectiva da “epidemiologia crítica”, o professor Jaime Breilh, da Universidade Andina Simón Bolivar, do Equador, abordou a crise atual a partir de três características principais. Segundo ele, vivemos um processo inédito e acelerado de acumulação, que tem gerado iniquidade crescente e uma exclusão social massiva, que se torna negócio. Consequência direta e específica da crise é, de acordo com o professor, a expansão de espaços insalubres a partir do controle privado. Para Breilh, exemplos desse processo são o fato de a Coca-Cola ser proprietária de 60% da água privada mundial e de 60% da circulação de alimentos no mundo estar também nas mãos de grandes conglomerados empresariais, sem contar a prevalência da soja transgênica em países como Brasil, Uruguai e Paraguai. Mas tudo isso é acompanhado ainda por uma crise das organizações populares, já que. Segundo o equatoriano, os partidos perderam a capacidade de representar os interesses das classes.

Ao falar dessa dimensão da crise que atinge os movimentos sociais, Breilh gerou polêmica quando defendeu que as redes sociais são um espaço de privatização e controle da vida íntima e um obstáculo à organização da sociedade. “A presença do controle capitalista acelerado sobre a internet é um dos fatores para a dificuldade de organização”, disse. E completou: “Está sendo destruída a organicidade. A substituição do espírito de classe pelo espírito individual de participação é um problema”. Na fala seguinte, a portuguesa Raquel Varela, do Instituto de História Contemporânea da Universidade nova de Lisboa, discordou dessa abordagem, defendendo a potencialidade das redes sociais para as lutas dos trabalhadores.

Como parte do mesmo contexto de fragmentação que ele associou às redes sociais, Breilh destacou uma tendência a se “queimar” tudo que tem origem europeia, o que, segundo ele, tem afastado as ideias marxistas do caminho do enfrentamento dos problemas. “Defendo Marx como um guia de navegação, o melhor que eu conheço”, disse. Da obra desse autor, mais precisamente dos Grundrisse e da Ideologia Alemã, ele disse ter sistematizado o que chamou de “4 S” necessários para uma “sociedade da vida” e não da morte: sustentabilidade, que requer uma mudança na relação com a natureza; solidariedade, como caminho para uma maior equidade social; soberania, como requisito para a liberdade; e seguridade integral, que se opõe à fragmentação setorial.

Já o professor e pesquisador do Instituto de Filosofia de Cuba, Jesus Brigos, ressaltou que as crises, como o que se vive atualmente, são importantes por representarem também momentos de ruptura. Para ele, no entanto, é fundamental entender que o aspecto central da crise não está na distribuição do que é produzido. “A humanidade não resiste mais a esse modo de produzir e reproduzir a riqueza. Não se trata de distribuir: isso queriam os socialistas utópicos. Para uma transformação socialista, riqueza é o pleno e livre desenvolvimento dos indivíduos como livre desenvolvimento da sociedade em seu conjunto”, explicou.

Saúde como direito ou mercadoria: experiências internacionais

Embora tenha alertado a plateia de que sua intervenção se daria a partir de uma análise social, e não especificamente do campo da saúde, Jesus Brigos falou um pouco sobre a experiência de organização do sistema de saúde cubano associado à revolução socialista. Ele contou que, até os anos 1950, a medicina do país era prioritariamente privada e os poucos serviços públicos que havia funcionavam a partir de práticas e relações corruptas. Boa parte dos poucos médicos que havia emigraram para os Estados Unidos, o que colocou o desafio de formar mais profissionais. “A revolução concebeu que saúde era transformar as condições de vida”, disse.

Para dar uma dimensão das dificuldades por que o país passou, o professor contou que, nos piores momentos de crise, o consumo médio de calorias da população cubana chegou a ser inferior à do Haiti, que é um dos países mais pobres do mundo. “A diferença é que lá alguns comiam bem e outros não comiam nada. Em Cuba, todos comíamos pouco”, comparou.  Passaram-se mais de 50 anos e, segundo ele, hoje Cuba tem um sistema de saúde universal que é resultado de uma sociedade diferente. “A força do sistema cubano é seu caráter social”, resumiu.

As conquistas da revolução também foram o ponto de partida para que a pesquisadora Raquel Varela falasse sobre o sistema de saúde português. Segundo ela, a construção do que existe hoje como sistema nacional se deu nos anos 1970, durante a Revolução dos Cravos, num processo que mobilizou mais de três milhões de pessoas. Com a nacionalização do sistema bancário e de outras empresas, e a transferência de parte do rendimento do capital para os trabalhadores, construiu-se o que ela chamou de Estado Social. “E um dos pilares foi a saúde gratuita e universal”, contou. Embora reconheça que, nessa concepção, esse Estado Social só  funcionou até os anos 1990, ela destacou méritos que ainda sobrevivem como resultado das conquistas revolucionárias. “O filho do mais pobre ainda será tratado no mesmo hospital que o filho do presidente da república”, exemplificou.

Mas, além dessa breve descrição do processo de construção e desmonte dos direitos sociais em Portugal, Raquel Varela se dedicou a analisar também os obstáculos que existem nesse processo de privatização da saúde e que poderiam ser resumidos como a contradição entre valor de uso e valor de troca. “Saúde no capitalismo significa manutenção da força de trabalho e mercantilização desse bem. Mas às vezes os dois entram em contradição”, disse, completando: “O mesmo se passa com a educação: é um drama para o capital ter trabalhadores mal formados, mas a questão é se isso se compensa com a transferência da educação para o setor privado de modo a gerar lucro”. No caso da saúde, ela exemplificou com a taxa de espera nas urgências de hospitais que hoje, em Portugal, chega a 22 horas. “Isso tem um custo para quem espera mas também para a acumulação porque parte da produção fica descoberta”, analisou. Outra dificuldade para a mercantilização de direitos como saúde e educação, segundo Raquel, estaria dada pela resistência dos profissionais dessas áreas, que seriam permanentemente confrontados com a dimensão humana da sua “mercadoria”. “No fim da linha, estão seres humanos cuidando de outros seres humanos”, disse.

Resumindo... e indo além

Responsável pela sistematização dos temas abordados na mesa, a vice-diretora de pesquisa e desenvolvimento tecnológico da EPSJV/Fiocruz, Marcela Pronko, destacou como transversal a todas as falas a contradição entre a socialização do trabalho e a apropriação privada dos resultados do trabalho que, segundo ela, se evidencia nos momentos de crise. Lembrando que a privatização se dá tanto pela entrada direta do capital nos bens públicos quanto pela adoção de formas empresariais de gestão no serviço público, ela disse ter sentido falta e uma problematização do papel do Estado nesse avanço privatista. “A Constituição diz que saúde é dever do Estado. Mas que Estado é esse? No capitalismo, o Estado é de classe”, concluiu.