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Crise no capitalismo, contrarreforma na saúde

Pesquisadores de Portugal, Venezuela, Colômbia e Cuba abordaram diferentes ângulos da crise e seus efeitos no campo da saúde.
Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz | 02/04/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47
Pesquisadores debatem crise e contrarreforma na saúde Foto: EPSJV/Fiocruz

O que caracteriza a atual crise do capitalismo, se o modo de produção capitalista é conhecido por suas crises cíclicas? Como essa nova configuração da crise avança sobre as políticas sociais? Qual a situação do campo da saúde nesse processo? Esses foram os pontos de partida da mesa que inaugurou o segundo dia do V Seminário da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde, que aconteceu entre os dias 27 e 29 de março, no Rio de Janeiro. Participaram do debate, Raquel Varela, do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa; Oscar Feo, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Carabobo na Venezuela; Mauricio Torres-Tovar, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Livre da Colômbia; e Jesus García Brigos, do Instituto de Filosofia de Cuba.

“Nunca o Estado foi tão dominante na economia como é hoje”

É errado pensar que o capitalismo neoliberal tem como característica central a ausência de participação do Estado na economia. Esse foi o recado dado por Raquel Varela, que recorreu ao caso português para mostrar que a acumulação do capital depende cada vez mais do avanço do setor privado sobre o fundo público facilitado pelos governos de plantão. “O paradigma explicativo keynesiano diz que o problema central da política neoliberal é a ausência de intervenção do Estado na economia, sendo o neoliberalismo uma excentricidade do modo de produção capitalista e não, como muitos acreditam, uma parte essencial da fase de decadência histórica do capitalismo como modo de produção. Aqui, a característica central não seria, então, a ausência de participação do Estado na economia, mas justamente o seu contrário. Nunca o Estado foi tão dominante na economia como é hoje”.

Contudo, para entender como o papel do Estado no neoliberalismo, é preciso compreender o papel da crise no capitalismo. Segundo Raquel, as crises no capitalismo nunca se dão por escassez, como na Idade Média quando uma praga arruinava a colheita de um ano inteiro. As crises capitalistas se dão por excesso ou, em outras palavras, por superacumulação de capital. Ocorre que a superacumulação vem acompanhada, sempre, pela queda da taxa de lucro.  “O que se passa é que há um momento em que a valorização do lucro cai e, para fazê-la subir de novo, se destrói riqueza. É isso que se chamam de ‘medidas recessivas’. Aliás, não devemos repetir a linguagem dos carrascos porque essas não são medidas de austeridade nem de ajuste, mas de destruição da capacidade produtiva para aumentar a rentabilidade dos capitais desvalorizados”.

E, aí, entra o Estado. “A tendência dos economistas keynesianos é dizer que o Estado desregulamentou o mercado de trabalho. Ora, isso não é verdade. A precarização laboral é profundamente regulada pelo Estado que determina, através de um emaranhado de leis e mecanismos, a construção de um exército de desempregados”, afirmou Raquel. Ela explicou que os trabalhadores com direitos, que vinham do processo de pleno emprego, foram mandados para casa no regime de pré-aposentadoria. A partir daí, foram massivamente substituídos por trabalhadores em condições de precariedade. “É o eletricista ou o operário naval que saem da empresa nos anos 1990 e voltam como patrões de si próprios. Mantém-se como trabalhadores com uma diferença: a grande empresa diminuiu os custos do trabalho – o que significa aumentar a rentabilidade do capital – transferindo para o trabalhador o pagamento da segurança social, dos impostos e, sobretudo, o risco”, exemplificou. Raquel observou que a flexibilização do mercado de trabalho implicou também um deslocamento da justificativa do lucro. “Na década de 1970, os capitalistas justificavam o lucro pela relação com o risco. Eu invisto os meus capitais e em momento de queda na produção, assumo o risco. O lucro seria o prêmio pelo risco. Isso desapareceu porque todo o risco é assumido pelos trabalhadores ou pelo Estado”.

Nessa perspectiva, o Estado se reinventa para evitar as revoltas sociais causadas pela condição de precariedade e desemprego estrutural. Com o aval de entidades como o Banco Mundial, foram criados programas assistencialistas para atender uma massa cada vez maior desse exército de reserva do capitalismo contemporâneo. “É o Bolsa Família no Brasil, o Cesta Básica na Argentina, o Rendimento Mínimo em Portugal. A Alemanha é o país que mais introduziu esses programas. Funcionam dessa forma: quando a pessoa entra no desemprego não cai na miséria absoluta só na miséria vegetativa”, ironizou, completando: “Não sou contra os programas, desde que sejam usados de forma emergencial. Não é isso que acontece. Os programas assistencialistas viraram uma forma estrutural e central de reconversão do mercado de trabalho nos últimos vinte anos. E são massivos: 17% da população de Berlim vivem do rendimento mínimo. Isso tem consequências”.

Na chamada Europa do Sul, a população de países como Portugal e Espanha inventaram outras formas de driblar o empobrecimento causado pelo desemprego e pelos baixos salários. Raquel contou que o principal meio de sobrevivência dos desempregados em Portugal não são os programas assistencialistas, embora eles tenham triplicado, nem o trabalho informal, que também aumentou, mas, sobretudo, o chamado ‘salário-família’. Os pais foram financiando o prolongamento dos filhos em casa para evitar um processo de imobilidade ou regressão social. “Há um grau absolutamente inédito de desagregação política das camadas mais jovens, para não falar do processo histórico de infantilização no qual todos eles acham que com 35 anos são jovens”, observou. 

Especificamente sobre o avanço sobre o fundo público, Raquel Varela identificou algumas formas não clássicas de privatização em curso.  Na Europa, uma forma cada vez mais comum de subsídio estatal acontece num quadro de quebradeira geral das empresas, que entram primeiro em recuperação ou ‘layoff’, depois em pré-falência e, finalmente, em falência. “As empresas que não pagam os salários de seus funcionários e todos os custos são assumidos pela seguridade social”. Há também uma multiplicação das Parcerias Público-Privadas, que, segundo Raquel, tem taxas de rentabilidade de 18%. O processo que mais chama atenção, no entanto, é o salvamento dos bancos que quebraram (seis em Portugal). “Toda a banca está virtualmente ligada a um catater de fundos estatais chamado empréstimo da Troika que corresponde nesse momento em garantias diretas e indiretas a 47 bilhões de euros, 28% do PIB português”, afirmou.

Negócio da saúde

Oscar Feo, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Carabobo na Venezuela, afirmou que nos últimos 30 anos a saúde entrou nos circuitos de acumulação e produção do capital, se convertendo em espaço fundamental da economia. Segundo ele, um dos atores fundamentais das políticas de saúde hoje é o chamado ‘Complexo Médico Industrial Financeiro da Saúde’, compostos por grandes corporações privadas com ações nas bolsas de valores, que produzem vacinas, insumos, medicamentos e equipamentos, mas também vendem seguros, planos de saúde e serviços. “Isso marca a contradição fundamental que há hoje no mundo. Para nós, a saúde é um direito social humano fundamental que deve ser garantido pelo Estado, mas para o capital é fundamentalmente mercadoria que se compra e vende, cabendo ao Estado intervir só para facilitá-la aos mais pobres”, afirmou.

Oscar abordou o impacto desse Complexo nos sistemas de saúde. Segundo ele, o grande negócio da saúde é, paradoxalmente, a doença. “Adoecer pessoas sadias, inventar doenças, cronificá-las, vender medicamentos, planos e seguros de saúde. Henry Gadsden, ex-diretor da Merck, disse há 30 anos que seu sonho era vender medicamentos às pessoas sadias. Com esse conceito, a indústria expandiu inventando enfermidades, convertendo médicos em prescritores e pessoas sadias em consumidores”, disse.

Em defesa da visão da Medicina Social e da Saúde Coletiva, Oscar crê na defesa dos sistemas públicos, universais, únicos e integrados. Contudo, alerta que muitos desses conceitos foram cooptados e, hoje, são usados ao sabor dos interesses do capital, se transformando em cavalos de Tróia. “Temos que ter muito cuidado. No marco de uma grande disputa pelo discurso, termos como direito, determinação, participação, universal, foram apropriados pela direita. As políticas neoliberais se camuflam e acabam privatizando em nome da universalidade. No mundo globalizado, quem decide a saúde? Em países como México, Peru e Colômbia, o Complexo entra pela porta da frente. Já na Bolívia, Venezuela e Brasil, essas ideias entram pelas janelas, se colam e terminam impondo-se, apesar da Constituição”.

Batalha de ideias

A batalha das ideias no campo da seguridade social e da saúde também foi abordada por Mauricio Torres-Tovar, da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Livre da Colômbia. Segundo ele, a crise levou a um processo de ajuste e recomposição das formas de acumulação, abrindo os serviços públicos à exploração do mercado. “A estratégia para justificar a intrusão do mercado foi ideológica. O pensamento neoliberal estabeleceu que o público é mau, corrupto e ineficiente. Já o privado, é bom, eficiente”, afirmou.

Mauricio contou que a captura ideológica da população colombiana permitiu a liquidação do Instituto de Seguridade Social do país. Para isso, no entanto, também houve uma estratégia em que as pensões da saúde foram separadas da administração e da prestação. “O último passo da aniquilação do seguro social foi um feito militar no qual o ministro da Saúde colocou tanques militares na maior clínica para tirar a equipe de saúde”, relatou. Hoje, instituições privadas tomaram o lugar do Instituto e a Colômbia aprovou uma Lei Estatutária que resume o direito à saúde a um pacote de serviços. “Temos uma saúde para ricos, outra para trabalhadores e uma terceira para pobres, cada um tem o seu pacote de acordo com o poder de compra”. 

“Mais socialismo, não menos”

Jesus García Brigos, do Instituto de Filosofia de Cuba, defendeu a importância da visão estratégica para orientar a ação política. “Temos que saber onde queremos chegar, senão não chegamos a lugar nenhum. Marx dizia que muitos querem interpretar o mundo, mas o que faz falta é transformá-lo. Um passo prático vale mais do que dezenas de programas, sem tirar importância das ideias. Para os que estão aqui, essa missão estratégica é o socialismo”, afirmou. Segundo Brigos, é preciso compreender o capital em toda sua complexidade, pois “capital não é só dinheiro, é o tipo de relação e intercâmbios entre as pessoas, povos e países”.

Ele lembrou que a luta contra o capital para os cubanos tem também um inimigo identificado, os governos dos Estados Unidos que, desde o século XVIII, enxergam Cuba como sua propriedade. “Em 1959, tomamos o poder de nossas vidas e eles utilizaram todos os meios militares e econômicos para tirá-lo de nós. Estamos enfrentando novas formas desse governo de querer nos mudar. Eles hoje falam em mudanças nas relações com Cuba, em normalizar relações. Creio que não faz sentido quando eles mesmos estão expressando abertamente que vão seguir tratando de mudar Cuba por outros meios”. O professor explicou que a mudança da tática dos Estados Unidos acontece em um momento sensível para Cuba. “Estamos fazendo mudanças em Cuba e se não fizermos bem feito podem ser utilizadas para destruir-nos com nossa ajuda. É esse o grande desafio. Não foi suficiente ter tomado o poder nem tê-lo mantido. É necessário que os cubanos tenham clareza do momento que vivemos e que façamos as mudanças necessária para ser mais socialistas e não menos”.