Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Privatização: contexto e caminhos de resistência

Debatedores analisam o cenário de desmonte de direitos e as formas de lutas que se organizam no México, na Colômbia e no Brasil.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 02/04/2015 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“Não entendemos por que se constrói uma Frente contra a privatização num país que tem um sistema de saúde público e universal”. O espanto de Mauricio Torres-Tovar, professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade Nacional da Colômbia, que participou de uma das mesas do primeiro dia do seminário da ‘Frente’, deixou ainda mais clara a importância do processo de internacionalização das lutas em defesa do SUS, que era um dos objetivos do encontro. “O Brasil é uma referência constante para a América Latina. Aqui está se dando um processo de contrarreforma e temos que lutar contra ela”, defendeu.

Outro sinal da urgência de integração das lutas no continente é a coerência do modelo (privatista) que se construiu em outros países e que agora ameaça também o sistema de saúde no Brasil. Para isso, a descrição que Torres-Tovar fez da situação colombiana é exemplar. Segundo o palestrante, instituições como o Banco Mundial têm elogiado muito o sistema de saúde da Colômbia, divulgando indicadores que parecem muito positivos, como o aumento de 24% para quase 100% no acesso da população à seguridade social. “O que não se diz é que o que está assegurado não é o direito”, contestou, explicando que no seu país se paga por pacotes de serviços para que as seguradoras privadas atendam as pessoas. Trata-se de um processo que, na avaliação do professor, passa também por uma tentativa de captura e mudança por dentro da própria linguagem. Foi assim, segundo ele, que, num novo vocabulário coerente com as reformas neoliberais, a proteção social passou a ser o “manejo social do risco”, a seguridade social se limitou à segurança individual, a universalidade foi reduzida a “pacotes de seguro para todos”, o direito à saúde se tornou um “pacote de serviços”, a equidade se afastou da justiça social e o cliente ocupou o lugar do cidadão de direitos.

As mudanças estruturais no sistema de saúde colombiano se deram com a controversa Lei 100, promulgada em 1993, que significou um processo deliberado de privatização da saúde. Um exemplo, segundo Torres-Tovar, é que a Colômbia foi o único país da América Latina que acabou com todos os seus institutos de seguridade social. “O governo representa a defesa da saúde como mercadoria”, disse. Um indício da falta de efetividade desse sistema, segundo o debatedor, é a alta quantidade de ações judiciais (“ações de tutela”) de cidadãos contra as seguradoras no país. E, como ainda existem cortes progressistas que reconhecem como legítimas as reivindicações dos usuários, o professor disse que o Banco Mundial tem defendido que é preciso limitar o processo de judicialização da saúde no país. Essas são formas individuais de resposta à ineficiência do sistema privatizado, mas, segundo Torres-Tovar, têm-se organizado na Colômbia também mobilizações coletivas, que envolvem diversas instituições e movimentos sociais, com destaque para as organizações sindicais.

A coerência das reformas neoliberais que estão desmontando os direitos conquistados na América Latina se confirmou com o cenário apresentado pelo mexicano José Antonio Galícia, da Aliança dos Trabalhadores da Saúde e Empregados Públicos. Segundo ele, há 30 anos o México enfrenta políticas neoliberais que, por meio de reformas parciais, tem privatizado a vida das pessoas e retirado os direitos sociais. Trata-se, segundo ele, de uma “revolução de direita” generalizada, que chegou ao conhecimento do mundo meses atrás quando 43 jovens normalistas que protestavam contra a reforma educacional do país desapareceram nas mãos da polícia. “O governo não consegue aplicar as reformas, por isso há terrorismo de Estado. O povo não aceita que tenham matado os jovens, que se aplique a reforma educacional, como não aceita a reforma da saúde e da seguridade social, que já aconteceu. O povo está se insurgindo”, disse Galícia. Especificamente no campo da saúde, contrariando os números oficiais, ele disse que 60% dos trabalhadores mexicanos não têm acesso à seguridade social e que a saúde pública chega a no máximo 30% da população. “Hoje, tudo é mais caro, com a previdência nas mãos dos fundos de pensão. A banca não perde nunca”, disse.

Mas como enfrentar esse processo de desmonte dos direitos? Galícia enumerou várias frentes de atuação, como a luta contra a corrupção no sentido de democratiza as instituições de saúde e seguridade social e a pressão por uma maior participação da população nas decisões sobre políticas de saúde. Ele destacou também o que chamou de “luta ideológica no âmbito conceitual”, que passa por desconstruir, por exemplo, a ideia de que o setor privado é mais eficiente e de que ter direito é o mesmo que poder pagar por um serviço de saúde. “Diziam que os funcionários públicos eram privilegiados. Obrigamos os canais de TV a nos darem espaço para resposta”, exemplificou.

Crise e resistência

O objetivo da fala da professora Maria Inês Bravo, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e do Fórum de Saúde do Rio, foi apresentar a Frente Nacional contra a Privatização da Saúde como a construção de um espaço de resistência com base social, que recuperasse os princípios estruturantes da Reforma Sanitária Brasileira que deu vida ao SUS. Para isso, ela fez um histórico das lutas pela saúde no Brasil, voltando até os anos 1940, mas com destaque nas mobilizações da década de 1970, que se davam no contexto da luta pela democratização do país. Ela ressaltou que, embora a origem da crise do capital possa ser remetida aos anos 1970, no Brasil as suas consequências diretas, expressas na contrarreforma do Estado, chegaram nos anos 1990, com impacto no financiamento da saúde pública e na precarização do trabalho. Em termos teóricos, disse, vivia-se um momento de valorização de posturas contrárias a projetos coletivos e solidários, muito centrados na pós-modernidade.

Como reação a essa conjuntura, em 2010 nasceu a Frente, como um movimento que, segundo Maria Inês, queria retomar os princípios da Reforma Sanitária sem a flexibilização que ela sofreu nos anos 1990. E isso significa, entre outras coisas, a luta por um SUS não só público mas também 100% estatal. Entre as principais preocupações do movimento estão, portanto, a necessidade de recompor a esquerda no Brasil na perspectiva do internacionalismo; de articular as lutas dos movimentos sociais, que se encontram fragmentadas; e de recolocar o socialismo na agenda. “É fundamental hoje tentar criar uma frente suprapartidária, mas anticapitalista, anti-imperialista, que articule partidos, movimentos sociais, movimento sindical e movimento estudantil”, defendeu.

Esse processo de reorganização das lutas no Brasil a partir de um momento de crise foi atualizado na fala de Paulo Henrique Rodrigues, professor da UERJ que estava representando o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) no evento. “Estamos em retomada das lutas no Brasil”, disse, contrariando o pessimismo generalizado com o avanço das pautas de direita no país. E alertou: “Nem começamos a ver o que vai acontecer no Brasil este ano. É nossa obrigação trazer essa massa que foi para a rua no dia 15 de março para o nosso lado. Nem todo mundo que foi para a rua é de direita. Não podemos deixar os Bolsonaros ganharem essa gente”.

Também fazendo um resgate histórico, Paulo Henrique lembrou que, até 1964, menos de 14% dos serviços de saúde eram privados no Brasil. Foi em 1966, em plena ditadura, que se mudou o código tributário acrescentando subsídios à saúde privada. Para se ter uma ideia da importância dessa decisão, o professor lembrou que, hoje, saúde é o único serviço que os brasileiros descontam integralmente no imposto de renda, gerando uma perda de recursos públicos que equivalente a 22% do orçamento do Ministério da Saúde. “É o governo transferindo recursos para o capital. No Brasil, os pobres estão pagando para quem tem mais”, explicou, ressaltando ainda a contradição desse modelo com a existência de um sistema universal, já que, em outros países, as pessoas têm que escolher entre saúde pública e privada, enquanto, no Brasil, quem tem serviço privado também pode ter acesso ao público. E, mostrando a atualidade do problema e das relações de força que ele evidencia, Paulo Henrique caracterizou a política econômica do governo como “uma das mais reacionárias que já se viu”. “O governo, diante da crise, chamou a direita para cortar direitos dos trabalhadores, da saúde, da educação. Mas não fala em cortar subsídios para a área da saúde”, criticou.

Como reagir? O representante do Cebes acredita que a 15ª Conferência Nacional de Saúde, que vai acontecer em dezembro deste ano, é uma oportunidade fundamental para se responder aos ataques que o direito à saúde está sofrendo no Brasil e no mundo. “E este evento é muito importante como preparação para a conferência”, opinou, referindo-se ao Seminário da Frente. Durante o debate, questionado sobre por que o Cebes, que representa o braço brasileiro da Associação Latino-americana de Medicina Social (Alames), não tem levado para os eventos e fóruns internacionais informação mais completa sobre as diversas formas de privatização da saúde no Brasil, Paulo Henrique se comprometeu institucionalmente a ampliar a abordagem do problema nas discussões futuras. O pano de fundo da crítica foi o fato de, depois de mais de uma década de ataques privatistas, pesquisadores, profissionais e militantes da saúde de outros países do continente ainda expressarem espanto e o desconhecimento sobre um processo de privatização que inclui não só os subsídios mas também mecanismos como, por exemplo, a mudança nos modelos de gestão de serviços públicos. “Estamos retomando as bases do Cebes, que é marxista. Queremos dar os
braços à Frente para fortalecer a luta contra a privatização”, disse.