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Em evento paralelo à 15ª CNS, movimentos sociais debatem saúde das populações do campo, floresta e águas

Centenas de militantes de diversos movimentos sociais se reúnem em Brasília para debater temáticas que, segundo eles, não foram contempladas pela conferência
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 03/12/2015 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“Cuidar, promover, preservar: saúde se conquista com luta popular” foi o tema escolhido para pautar os debates no 1º Encontro Nacional de Saúde das Populações do Campo, Floresta e Águas, evento que acontece paralelamente à 15ª Conferência Nacional de Saúde. Acampados no Parque da Cidade, em Brasília, onde ocorre o evento, estão centenas de militantes dos mais diversos movimentos sociais do campo brasileiro – entre eles, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) – que se reuniram na capital federal para debater questões relevantes para a saúde de populações que, para eles, foram deixadas de fora da 15ª Conferência Nacional de Saúde. São agricultores familiares, quilombolas, pescadores artesanais e sem-terra, entre outras populações. “A leitura que a gente fazia é que nós não estaríamos no espaço institucional da conferência. E isso é devido a um processo histórico de não acesso das populações do campo em alguns espaços políticos, institucionalizados, e a dificuldade de acesso e de participação efetiva em conselhos e conferências locais, municipais”, afirma Mercedes Queiroz, da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). “Há sim uma burocratização e uma institucionalização desses espaços, mas acho que isso é reflexo da correlação de forças da luta de classes hoje. O fortalecimento das posições mais conservadoras, da tentativa inclusive de criminalização dos movimentos sociais e populares, tudo isso tem feito com que a participação não se efetive no concreto”, completa Mercedes. Para ela, as populações do campo, floresta e águas são especialmente afetadas. “Elas estão impossibilitadas ainda de participarem de reuniões de conselhos, que são geralmente na cidade. Como é que um agricultor que tem seu período de plantio, colheita, vai ficar se deslocando pra cidade pra acompanhar? São processos que tem que ser repensados, do ponto de vista do método e também da condução política”.

Ela avalia que o encontro é uma oportunidade que os movimentos têm de criar unidade e impulsionar a organização e mobilização dos trabalhadores que estão nos diversos territórios. “Queremos identificar os problemas que estão na origem das doenças e dos males que atingem a população brasileira: nós fazemos a denúncia do processo da mineração, da agricultura baseada no agronegócio, dos grandes projetos de portos e hidrelétricas para exportação de matérias-primas, que têm isso tem causado todo tipo de adoecimento dos sujeitos que estão nesses territórios e também do meio ambiente”, diz Mercedes. Ela também destaca que a ideia é que os movimentos tragam propostas para a saúde das populações do campo, floresta e águas. “Defendemos práticas tradicionais de cuidado em saúde, uma relação mais horizontal entre profissionais de saúde e que a saúde de fato seja coletiva e não seja centrada no indivíduo, que ela traga as determinações sociais do processo saúde-doença. Esse encontro tem caráter de formação, de denúncia, de organização, de identificação dos movimentos e também de luta”, destaca Mercedes.

Conjuntura da saúde no Brasil é tema de debate

 No segundo dia do encontro, na quarta-feira, Bruno Pedralva, da Rede de Médicos e Médicas Populares, Maria Valéria Correa, nova reitora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e integrante da Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, e o sanitarista Fernando Carneiro, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) foram os convidados para debater o tema “A análise da saúde no Brasil, a construção do SUS e a 15ª Conferência Nacional de Saúde”.

Bruno Pedralva fez um balanço dos últimos 12 anos de governo do PT na área da saúde, destacando os avanços e retrocessos no período. Entre os avanços, Bruno destacou a ampliação do acesso dos brasileiros a serviços de saúde, principalmente por meio da ampliação da cobertura das equipes de Saúde da Família. “Hoje temos 48 mil equipes de saúde da família, que atendem 123 milhões de brasileiros”, destacou. A ampliação do Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu) e da cobertura das equipes de saúde bucal foram outros avanços destacados por Bruno nesse período. “Temos que reconhecer que as condições de saúde melhoraram nesse período. Tem um estudo recente do British Medical Journal que apontou que a mortalidade por doenças cardiovasculares caiu em torno de 40% de 2000 a 2009 no Brasil, e caiu mais onde tinha equipes de saúde da família nos territórios”, disse Bruno. Outras reduções importantes observadas no período segundo Bruno foi nas taxas de mortalidade infantil e de mulheres no parto, números que significaram um aumento na expectativa de vida do brasileiro nos últimos 12 anos, de 69 para 75 anos. “Outro avanço importante foi o Programa Mais Médicos, que hoje atende 63 milhões de pessoas atendidas. Muitas delas em cidades do interior que não tinham muita dificuldade em atrair médicos antes do programa. Uma pesquisa apontou que 95% das pessoas satisfeitas com o trabalho desses profissionais”. Mas o período trouxe também muitos retrocessos, ressaltou Bruno. E o maior deles foi o fortalecimento do setor privado de saúde. “De 2002 a 2013 os planos de saúde cresceram 68%. Hoje 51 milhões de pessoas tem planos de saúde. O número de médicos trabalhando no setor privado cresceu muito no país. Na Bahia, a chance de alguém com plano de saúde se consultar com medico é 15 vezes maior do que alguém sem plano de saúde na Bahia”, ressaltou Bruno. Para ele, nos últimos 12 anos não houve um debate sobre a necessidade de reforma no sistema político brasileiro, que para ele é um problema estrutural da saúde no país. “Em 2002 os planos de saúde tinham investido R$ 840 mil em campanha eleitoral. Em 2014, foram R$ 55 milhões. Quem mais investiu foi a Amil, que foi comprada pela maior empresa de seguros dos EUA: R$ 27 milhões doados para campanhas em 2014. E o que ela ganhou com isso? Ganhou a garantia que o capital privado internacional pudesse investir em saúde no Brasil, o que era proibido. Só a Dilma recebeu R$ 25 milhões dos planos de saúde. O dinheiro dos planos de saúde ainda ajudou a eleger três governadores, em São Paulo, Rio Grande do Sul e Pernambuco, 29 deputados federais e três senadores”, destacou Bruno. Entre os deputados eleitos com dinheiro doado por planos de saúde, Bruno destacou o atual presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). “O Cunha é inimigo da saúde, é o terceiro deputado que mais recebeu recursos de plano de saúde e engavetou CPI dos planos de saúde, propôs emenda para perdoar divida de plano de saúde. Ele inda está propondo PEC 451 para que todas as empresas ao invés de contribuírem para o SUS paguem plano de saúde para funcionários”, ressaltou.

Maria Valéria Costa Correa, recém-eleita reitora da Ufal e integrante da Frente nacional contra a privatização da saúde alertou para o que chamou de destruição por dentro do Sistema Único de Saúde (SUS). Para ela, a conferência é um momento importante para resgatar alguns pilares da reforma sanitária estabelecidos durante 8ª Conferência Nacional de Saúde, que completa 30 anos em 2016, e que segundo ela foram esquecidos inclusive por aqueles que defendem o SUS atualmente. “Lá atrás se dizia que o fundo público tinha que ser destinado para a ampliação do sistema público de saúde. Hoje o fundo público está sendo capturado para responder à crise do capital. É por isso que grandes associações de hospitais privadas e filantrópicas são signatárias do Saúde+10, elas querem colocar o dinheiro público no bolso”, critica Maria Valéria. “O Estado tem ampliado a oferta de serviços de saúde na rede privada. os governos vêm cada vez mais colocando subvenções e incentivos para que hospitais privados atendam usuários do SUS e também para a ampliação dos planos de saúde São formas do Estado incentivar a ampliação do mercado privado de saúde e promover a captura dos recursos públicos pelo setor privado”, destacou Maria Valéria. Outro pilar da reforma sanitária que ela alerta que foi esquecido foi a questão da determinação social do processo saúde-doença. “A saúde é resultado de condições de vida e trabalho. Para ter saúde precisamos ter outra forma de sociabilidade, outra forma de relações sociais que não as do capitalismo. Só vamos ter saúde quanto tivermos sociedade emancipada onde não exista a exploração do homem pelo homem, a apropriação do trabalho pela mais-valia. O movimento pela reforma sanitária tinha um horizonte socialista, mas isso foi esquecido. Temos que resgatar essa perspectiva”, defendeu a reitora da Ufal.

Fernando Carneiro, sanitarista da Fiocruz, defendeu a necessidade da reforma agrária no Brasil, que segundo ele foi um processo que foi interrompido pelo golpe militar de 1964. “O Brasil pulou a etapa da reforma agrária, o golpe não deixou com que ela acontecesse. No Brasil se fez a modernização conservadora, com a Revolução Verde, mecanização do campo, entregando as terras para as multinacionais”, destacou Fernando. Atualmente,  o modelo de desenvolvimento em curso no país está baseado na extração de recursos naturais, o que afeta a saúde principalmente das populações que estavam ali reunidas. “Quem está no olho do furacão desse modelo, que os teóricos chamam de modelo neoextrativista, baseado na venda das  nossas terras, rios, minérios, florestas? Não é o povo da cidade, são vocês, povos do campo, da floresta e das águas”, alertou. Ele também chamou atenção para a necessidade de resgatar as discussões da 8ª Conferência de Saúde. “Ali se afirmou que saúde também é direito a terra. Só que quando isso foi para a Constituição a bancada ruralista retirou esse trecho. Passaram a mão na terra como sempre e como continuam fazendo até hoje. E atualmente a bancada ruralista está ainda mais forte”, lamentou.